Raymond Williams – a dimensão política

Wassily Kandinsky, Azul do Céu, óleo sobre tela, 100x73 cm, 1940.
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Por DANIEL G. WILLIAMS*

Williams desenvolveu sua carreira intelectual em estreita relação com a esquerda britânica, em um período decisivo de sua história

Raymond Williams abre Notas sobre o marxismo na Grã-Bretanha desde 1945 (1976) assim: “‘A esquerda neomarxista que hoje domina o Partido Trabalhista’, disse um orador na conferência do Partido Conservador deste ano. Ou poderia ter sido ‘esquerda quase-marxista’, dada a dificuldade do inglês da classe dominante com a consoante ‘r’”’.

Como John Barnie observou em um recente e comovente relato para a Raymond Williams Foundation,[1] Williams – nascido e criado em Pandy, nas proximidades de Abergavenny – “falava com um suave sibilo de Herefordshire, do tipo que se encontra na região de fronteira próxima ao Golden Valley”. Ler os escritos de Williams consciente desse pano de fundo leva-nos, repetidamente, a momentos em que uma perspectiva oposicional – de classe, nação e sotaque – está sendo acionada.

Ao relembrar a gestação do livro que fez seu nome, Cultura e sociedade (1958) – uma dissecação do significado de “cultura” no pensamento inglês desde a industrialização –, Williams afirmou que “minha distância do País de Gales era a mais completa possível”. Mas, mesmo aqui, a habilidade de discutir a cultura intelectual inglesa como um objeto de análise, e não como uma posição inarticulada a partir da qual se fala, demandava a perspectiva de um outsider.

Isso é, presumivelmente, o que Williams queria dizer quando destacou que, apesar dessa distância, “minha experiência galesa ainda assim operava na estratégia do livro”. De fato, a posição de Williams como um galês escrevendo sobre a cultura inglesa em um Estado britânico era, em alguma medida, como aquela de outros outsiders coloniais discutidos em seu livro por suas importantes contribuições para a cultura inglesa: T. S. Eliot e George Orwell.

Esse fundamento inconsciente se tornou abertamente consciente à medida que a obra de Williams se desenvolveu; informando a ação de todos os seus sete romances, de Border Country (1960) aos dois volumes póstumos de The People of the Black Mountains (1989), e sendo invocado cada vez mais e com maior insistência nas introduções de seus trabalhos seminais de crítica literária e cultural.

Deslocamento

Leitores de Nation Cymru podem estar particularmente interessados na mudança de filiações políticas que ocorreram nos anos 1960. Tendo sido um comunista quando de sua ida para Cambridge em 1939, Williams não esteve filiado a nenhum partido após a guerra – na qual ele foi capitão em um regimento antitanque na campanha da Normandia –, embora compartilhasse, em linhas gerais, a lealdade de seu pai ao Partido Trabalhista e tenha feito campanha para Harold Wilson em 1964.[2]

O May Day Manifesto – desenvolvido em colaboração com o historiador E. P. Thompson e o crítico Stuart Hall, distribuído para discussão e contribuições entre grupos socialistas em 1967, com uma versão completamente revisada aparecendo em forma de livro pela Penguin sob a editoria de Williams em 1968 – refletia uma desilusão profunda com o governo trabalhista, pretendendo unir uma gama de influentes vozes socialistas em torno de um programa coerente capaz de revitalizar a esquerda dentro do partido.

O manifesto foi ignorado (mesmo por Tribune, o jornal da esquerda trabalhista), e, em 1969, Williams estava filiado ao Plaid Cymru. Nos ensaios reunidos em Who Speaks for Wales? (2003, com uma nova edição lançada este ano por ocasião de seu centenário), Williams localizava o ativismo linguístico de Cymdheitas yr laith e o “nacionalismo minoritário radical” do Plaid Cymru dentro da mais ampla coalização de movimentos – pelos direitos civis nos Estados Unidos e do Ulster, o feminismo e o nascente movimento ecológico – que constituíram a Nova Esquerda.[3]

Informado por essa nova perspectiva, O campo e a cidade (1973) é uma crítica apaixonada dos modos dominantes e metropolitamos de ver a periferia, argumentando a favor da luta anticolonial e da revolta camponesa. Essas lutas são, como sempre para Williams, culturais tanto quanto políticas ou econômicas, e, nesse livro, a “tradição seletiva” do cânone literário inglês é confrontada não só a textos galeses e irlandeses, mas também a fontes de pesquisa africanas e indianas.

A carreira intelectual de Raymond Williams pode ser vista como cobrindo um período decisivo na história da esquerda: começando como um colaborador-chave de uma Nova Esquerda que pretendia oferecer um caminho alternativo ao stalinismo e à socialdemocracia nos anos 1950; indo dos movimentos antiguerra e estudantis dos anos 1960 ao eurocomunismo e aos novos movimentos sociais das décadas 1970 e 1980, anos que testemunharam a coincidência de seu maior interesse nos debates intelectuais e políticos galeses com um engajamento crescente com o marxismo europeu.

Ao longo desse percurso, Williams respondeu às mudanças intelectuais e políticas a seu redor permanecendo comprometido a uma política de classe, a um princípio de igualdade com pessoas comuns e a uma resistência à tendência – manifesta nos escritos da Escola de Frankfurt, dos intelectuais de Nova York, assim como de correntes centrais do marxismo europeu – a tratar a classe trabalhadora como uma vítima passiva, irremediavelmente corrompida pela TV e pelo consumo de massa.

Em uma era de divisões dogmáticas, os instintos de Raymond Williams estavam dirigidos para a conciliação e a construção de pontes, seja entre a esquerda humanista e a teórica nos anos 1960, ou entre as correntes nacionalista e socialista do pensamento galês na década de 1980. Essa tendência, que precisamos desenvolver urgentemente, talvez explique o modo pelo qual nos voltamos continuamente a Williams como uma fonte de esperança para a esquerda, particularmente em períodos de retrocesso.

Escrevendo em 1963, ele previu nossa crise atual e identificou a necessidade de uma alternativa: “Será uma terrível tragédia se trairmos a Europa sendo pseudo-europeus ou sendo tão ‘ingleses’ que nos vejamos no século errado enfrentando os problemas errados. Ainda assim, tivemos de nos contentar por anos a dois partidos, presos a um combate amplificado e ambos errados. É hora de algo novo, não?”

* Daniel G. Williams é professor de Literatura Inglesa na Swansea University e diretor do Richard Burton Center for the Study of Wales. Organizou o livro Raymond Williams. Who Speaks for Wales? Nation, Culture, Identity (University of Wales Press, 2003).

Tradução: Ugo Rivetti.

Publicado originalmente no portal Nation.Cymru.

Notas do tradutor


[1] Disponível em: https://www.raymondwilliamsfoundation.org.uk/centenary.

[2] Harold Wilson (1916-1995) foi líder do Partido Trabalhista (1963-1976) e primeiro-ministro (1964-1970/1974-1976).

[3] Plaid Cymru (Partido de Gales) e Cymdeithas yr laith Gymraeg (Sociedade da Língua Galesa) correspondem, grosso modo, a duas correntes distintas do movimento nacionalista galês. Fundado em 1925, o Plaid se firmou como protagonista do movimento galês, sobretudo após os anos 1950, ao apoiar suas iniciativas em uma concepção mais política da identidade galesa, como algo encarnado no modo de vida de seus habitantes. Já a Cymdeithas, fundada em 1962, abraçava uma concepção distinta da cultura e identidade galesas, que se definiriam por suas raízes lingüísticas.

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