Estado social sem luta de classes?

Imagem_Paulinho Fluxuz
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA*

A conjuntura atual escancara a urgência de mobilização com os projetos de base, apesar dos retrocessos no campo institucional

Para alguns estudiosos – ditos progressistas – os avanços sociais são o produto de insights de consciência que acometem a elite burocrática estatal e os convencem a concretizar alguns direitos aos indivíduos. Mais ainda: o avanço político e social do país depende apenas de um aprimoramento das instituições e dos seus arranjos jurídicos, mais do que uma formação política e um engajamento contínuo das classes sociais. Em poucas palavras, a política se faz de cima para baixo.

É evidente que as lutas sociais atravessam o Estado, constituindo um campo central de disputa para a diminuição das desigualdades sociais. Entretanto, para os institucionalistas de esquerda, o Estado é uma estrutura político jurídica autônoma, pouco influenciado pela luta de classes, com funcionamento independente, quase que apartado das disputas sociais. Segundo essa visão, luta de classes, inclusive, é um vocábulo do século XX, fora de moda, que nada tem a ver com os problemas que enfrentamos na atualidade.

Aqui vale uma nota ao leitor. A mudança estrutural que ocorreu no setor produtivo brasileiro, com o encolhimento das indústrias e com a expansão dos trabalhos no setor de serviços – somado ao enfraquecimento dos sindicatos e ascensão do infoproletariado – não é sinônimo de ausência de luta de classes, mas sim da sua reconfiguração.

Com o intuito de vestir tais ideias com um verniz científico, utilizam-se de categorias de análise sem nenhum lastro material, como a noção de povo. Não é preciso muito esforço para afirmarmos que o povo é uma mera abstração se desvinculado das diferentes classes sociais que o constitui.(1)

Para essa visão de mundo, a régua que mede os avanços e retrocessos sociais deve alcançar apenas os centímetros da institucionalidade do Estado, pouco importando o engajamento social e político da população para auferir tais medidas. O horizonte normativo que as classes sociais possuem, por exemplo, é apenas um detalhe, que não entra no cálculo. A percepção da população de que a melhora nas suas condições materiais de vida foi fruto de avanços políticos ou tão somente de benção divina também não parece tão importante.

Para ilustrarmos a discussão é útil olharmos para a formação do Sistema Único de Saúde (SUS), cuja criação não ocorreu a partir de uma ideia perspicaz de algum gestor político, mas sim mediante o engajamento e as lutas do movimento sanitarista brasileiro. Evidentemente, é necessário frisar que a mão pôde encontrar uma luva, pois o contexto político da redemocratização e da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 garantiu que as reivindicações do movimento sanitarista fossem permeáveis à política institucional e pudessem se cristalizar no texto da Constituição. Todavia, um dos maiores avanços do Estado e das políticas sociais no Brasil – escancarado com o contexto de pandemia –seria pouco provável sem a participação dos movimentos sociais.

O equívoco do neo institucionalismo é tomar a parte pelo todo, criando uma análise das instituições apartada do contexto econômico e social e conferindo, uma vez mais, uma espécie de autonomia às instituições do Estado. É como se a criação de uma institucionalidade forte fosse capaz de ser efetiva por conta própria, independentemente da conjuntura política que a atravessa e dos agentes políticos e econômicos que estão no poder. Uma espécie de Estado sem povo. Quando falam em povo se referem a um bloco homogêneo, ou seja, um povo sem classes sociais.

A implementação de uma Renda Básica no Brasil também mostra que as alterações na conjuntura política impõem determinadas pautas, criando janelas de oportunidades, que podem ser aproveitadas ou negligenciadas. Mesmo que Eduardo Suplicy já discuta a importância de uma Renda Básica de Cidadania há mais de 20 anos, apenas com as alterações sociais e econômicas decorrentes da pandemia que essa pauta foi capaz de entrar na agenda pública. Para os que possuem um fetiche na lei, basta lembrarmos que embora já existisse uma norma regulamentando a Renda Básica há mais de 15 anos – Lei 10.835/2004 – esta nunca chegou a ser implementada amplamente no país.

Se a análise das instituições possui elevada importância para a compreensão da dinâmica política do Brasil, não parece tão eficaz fazê-la de maneira formal, desvinculando-a de outras determinações sociais.

Após as críticas acima, podemos questionar como construir um olhar mais preciso sobre o Estado, que não caia na armadilha de tomar a parte pelo todo? De acordo com Poulantzas, o Estado, como fator de coesão da unidade de uma formação social, seria uma “estrutura na qual se condensam as contradições dos diversos níveis de uma formação”.(2)

O fator de coesão do Estado pode ser compreendido pela sua função de ordem política, ao impedir que os conflitos políticos de classe ocorram de forma direta. Ou seja, “o Estado impede que se aniquilem as classes e a “sociedade”, o que é uma forma de dizer que ele impede a destruição de uma formação social”.(3)

Mas o Estado não é uma estrutura autônoma, como querem alguns juristas, mas sim atravessado pelas disputas sociais e pela luta política de classes. Embora possua uma função técnico-econômica e uma função ideológica, tais funções são sobredeterminadas pela sua função propriamente política.

Mesmo que alguns insistam em olhar para o Estado de uma forma puramente técnica, como espaço que deve conter burocratas capacitados para a direção e manutenção  das instituições, o Estado capitalista não possui uma  relação com  um contexto social abstrato, mas sim, com uma sociedade dividida em classes, divisão esta que reflete a dominação política de classes.

Entretanto, o direito, ao caracterizar os indivíduos da sociedade como formalmente iguais e como sujeitos de direito, dificulta o reconhecimento desses como pertencentes a distintas classes sociais. As pessoas se reconhecem como cidadãos, pertencentes ao Estado-nação, sem visualizarem seus interesses de classe. A abertura das instituições no capitalismo, que teoricamente pode recrutar membros de todas as classes sociais, também garante o verniz de igualdade formal diante de uma desigualdade material. Assim, embora a necessidade obrigue o indivíduo a vender sua força de trabalho, é a ideologia que garante a legitimidade da exploração do seu trabalho.

Essas características próprias do Estado capitalista mostram que o ente estatal não é uma estrutura neutra, que ao ser ocupada por indivíduos progressistas, se moldará às concepções de seus ocupantes. Em poucas palavras, o Estado não deixa de ser capitalista quando ocupado por indivíduos da classe trabalhadora, considerando a subsistência de sua materialidade institucional.

Observar tais características relacionais da estrutura estatal nos permite enxergar a ingenuidade dos que querem construir um Estado Social a partir de um consenso que venha de cima, como se as funções sociais pudessem se opor às funções políticas.  A esfera pública, embora atravessada pelas instituições, não produz todos seus resultados exclusivamente a partir delas.

Não significa, também, que a institucionalidade não é importante para o desfecho das lutas sociais e políticas, importância já demonstrada minuciosamente no clássico texto de Ellen Immergut(4). Entretanto, olhar para as instituições de forma apartada das relações econômicas e sociais, conferindo-lhes total autonomia, é olhar para a parte e acreditar estar vendo o todo.

Se a frente ampla partidária parece um projeto esquecido – em virtude de interesses aparentemente mais urgentes do que enfrentar o fascismo –impõe-se a discussão de uma frente ampla popular, formada por líderes de bairros, torcidas organizadas, lideranças populares, CUFA, movimentos sociais e diversas iniciativas espontâneas surgidas durante a pandemia.  É evidente a importância da política institucional engajada para as transformações sociais. Todavia, a conjuntura atual escancara a urgência de mobilização com os projetos de base, apesar dos retrocessos no campo institucional.

*Matheus Silveira de Souza é mestre em Direito do Estado pela USP.

Notas

[1] PACHUKANIS, E. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida – 1ª ed. Boitempo: São Paulo, 2017

[2] POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019, pag. 46.

[3] POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2019,

[4] IMERGUT, Ellen. The Rules of the Game: The Logic of Health Policy-Making in France, Switzerland and Sweden. In Thelen and Steinmo, eds., Structuring Politics: Historical Institutionalism in Comparative Perspective. New York: Cambridge University Press, 1992

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ladislau Dowbor João Sette Whitaker Ferreira Ricardo Musse Manchetômetro Francisco Pereira de Farias Berenice Bento Fernão Pessoa Ramos Bernardo Ricupero Luiz Bernardo Pericás Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Eduardo Soares João Feres Júnior Ricardo Fabbrini Valerio Arcary José Costa Júnior Luiz Roberto Alves Michael Löwy Juarez Guimarães Maria Rita Kehl Fábio Konder Comparato Roberto Bueno Jorge Luiz Souto Maior Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Salles Gerson Almeida Tarso Genro Samuel Kilsztajn Vladimir Safatle Henri Acselrad Valerio Arcary Marilia Pacheco Fiorillo Francisco de Oliveira Barros Júnior Elias Jabbour Manuel Domingos Neto Ari Marcelo Solon Anderson Alves Esteves Sandra Bitencourt José Machado Moita Neto Leda Maria Paulani Tales Ab'Sáber João Carlos Loebens Heraldo Campos Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna Érico Andrade Airton Paschoa Daniel Afonso da Silva José Geraldo Couto Ronald Rocha Igor Felippe Santos Celso Frederico Celso Favaretto Paulo Martins Denilson Cordeiro João Adolfo Hansen Jean Pierre Chauvin José Micaelson Lacerda Morais Vinício Carrilho Martinez Ricardo Antunes Chico Alencar Lucas Fiaschetti Estevez Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleonora Albano Luiz Renato Martins Marcos Aurélio da Silva Eugênio Bucci Atilio A. Boron Anselm Jappe José Raimundo Trindade Liszt Vieira José Dirceu Jorge Branco Milton Pinheiro Antonino Infranca Rubens Pinto Lyra Marcelo Guimarães Lima Marcus Ianoni Marjorie C. Marona José Luís Fiori João Paulo Ayub Fonseca Yuri Martins-Fontes Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Dennis Oliveira Luiz Marques Thomas Piketty Rafael R. Ioris Marcelo Módolo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Everaldo de Oliveira Andrade Francisco Fernandes Ladeira Rodrigo de Faria Benicio Viero Schmidt Priscila Figueiredo Eduardo Borges Vanderlei Tenório Bento Prado Jr. Marilena Chauí Bruno Fabricio Alcebino da Silva Bruno Machado Eliziário Andrade Alysson Leandro Mascaro Ricardo Abramovay Carla Teixeira Andrew Korybko Luís Fernando Vitagliano Ronaldo Tadeu de Souza João Lanari Bo Leonardo Boff Walnice Nogueira Galvão Alexandre de Freitas Barbosa Claudio Katz Marcos Silva Flávio Aguiar Fernando Nogueira da Costa Lincoln Secco Gilberto Lopes Salem Nasser Carlos Tautz Caio Bugiato Daniel Costa Matheus Silveira de Souza Leonardo Avritzer Luis Felipe Miguel Tadeu Valadares Leonardo Sacramento André Singer Michael Roberts Osvaldo Coggiola Afrânio Catani Mariarosaria Fabris Roberto Noritomi Flávio R. Kothe Antônio Sales Rios Neto Gabriel Cohn Dênis de Moraes Luciano Nascimento Chico Whitaker Annateresa Fabris Mário Maestri Paulo Capel Narvai Boaventura de Sousa Santos Armando Boito Eugênio Trivinho Gilberto Maringoni Remy José Fontana Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Fernandes Silveira Renato Dagnino Henry Burnett Otaviano Helene Slavoj Žižek Sergio Amadeu da Silveira Eleutério F. S. Prado Daniel Brazil Alexandre Aragão de Albuquerque Julian Rodrigues André Márcio Neves Soares Lorenzo Vitral Jean Marc Von Der Weid

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada