O fim da Lava Jato e o patético Barroso

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO AVRITZER*

A derrota dos “justiceiros de Curitiba” constitui também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil.

A decisão do STF por sete votos a dois corroborando a tese da suspeição do juiz Sérgio Moro no processo do assim chamado “triplex” representa, efetivamente, o fim da operação Lava Jato. Os principais derrotados pelo fim dessa via inquisitória de combate à corrupção são os justiceiros de Curitiba que atuavam em conluio, Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, e seus parceiros no STF.

A derrota da Lava Jato constitui também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, lançada por Raymundo Faoro no final dos anos 1950 em seu livro Os donos do poder e resgatada pelos justiceiros de Curitiba. A tese é que a corrupção é o maior, senão o único, problema do Brasil e explicaria o fracasso civilizatório do país. Analisemos o argumento de Raymundo Faoro para entender sua expressão no Lavajatismo.

A tese principal de Os donos do poder é que o grande elemento da formação do Estado brasileiro, que explicaria o país como nação, seria a formação de um Estado patrimonial que abriria caminho para a apropriação privada de recursos do Estado. Faoro realiza duas operações de qualidade acadêmica duvidosa para defender tal tese: a primeira é atribuir esse elemento à formação portuguesa, ainda no começo do milênio passado, e assumir (supostamente com base na obra de Max Weber) que esse elemento patrimonial haveria se transferido e reproduzido no Brasil.

O segundo é identificar esse elemento em todos os períodos históricos do nosso país. Assim, em um capítulo considerado por alguns o pior texto já escrito sobre a história do Império, ele interpreta o período como centralista, estamental e patrimonialista, algo que qualquer estudante de graduação de história sabe ser equivocado. Para Faoro, o liberalismo (que, diga-se passagem, a Lava Jato nunca professou porque o liberalismo preza o direito de defesa) envolveria a ruptura com o Estado patrimonial.

Faoro achava possível interpretar a formação do Brasil sem tratar do problema da escravidão. É interessante notar também que, apesar das críticas ao estamento patrimonial e certa defesa de um liberalismo conservador, Faoro prescinde de uma visão sobre como democratizar o Estado brasileiro. Para ele, bastaria destruir o estamento burocrático, algo que, podemos argumentar, a Lava Jato tentou realizar.

A Lava Jato pode ser entendida como um “faorismo judicial”, isso é, uma operação que associou a tentativa de acabar com o estamento burocrático com a ambição de dar fim à concepção de Estado vigente no país desde a década de 1930. Para isso, seus integrantes reivindicaram um ativismo judicial muito mal compreendido pelos nossos juristas porque supõe que os juízes tudo podem e buscaram estendê-lo para a arena do direito penal. Assim, a disputa política no Brasil deixou de se dar pela via eleitoral, mas tratou-se de criminalizar aqueles que defendiam uma concepção de nação organizada em torno do Estado. Para esses, a Lava Jato reservou não apenas a derrota política imposta por um impeachment para o qual ela contribuiu decisivamente, mas também a prisão com o objetivo de mudar a composição do sistema político.

Tal objetivo foi claramente expresso pelo juiz Sérgio Moro em artigo com pretensões acadêmicas no qual analisava a operação “Mãos Limpas”. Ali, Moro afirmou “A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente. Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com efeitos tão incisivos na vida institucional de um país”.

Hoje é difícil duvidar que esse foi um dos objetivos de Moro: redesenhar o sistema político brasileiro. Ele e seus aliados na elite brasileira esqueceram-se apenas de um detalhe: que a outra força política disponível no nosso país é o militarismo de feições autoritárias, que foi o maior beneficiário do “faorismo judicial”.

Sabemos o que levou à reversão do punitivismo jurídico seletivo ou do “faorismo judicial”. Primeiro, uma decadência sem par da economia brasileira desde 2015, para a qual a Lava Jato contribuiu decisivamente, tal como foi observado pelo juiz Ricardo Lewandowski na sessão de quinta-feira, 22 de abril. Mais recentemente, a ascensão de um militarismo sem controle que ocupou o Ministério da Saúde e foi parceira na tragédia que se abateu sobre o Brasil ao longo da pandemia. E, por fim, a resistência daqueles que acreditam na instituição Estado de direito, completamente ignorada, senão vilipendiada, pelos lavajatistas.

Ou seja, o que fracassou não foi a Lava Jato, mas um projeto de destruição sistemática do Estado brasileiro, que não encontrou substituto nem no governo Temer e nem no governo Bolsonaro. Esses governos acentuaram os impasses vividos pela economia e pela política no Brasil. O único substituto que apareceu foi a militarização do governo introduzida por Bolsonaro e reforçada pateticamente na gestão Pazuello no Ministério da Saúde que escancarou a incompetência dos militares na gestão.

Coube ao eminente jurista Luís Roberto Barroso servir como a última linha de defesa do “faorismo judicial”. Barroso, já havia escrito um artigo no qual defendia a compatibilidade entre o STF como instituição contra-majoritária e como instituição representativa da opinião pública, essa última supostamente constituída por aqueles membros do mercado interessados em destruir o estamento burocrático.

O jurista deu um passo adiante na defesa do “faorismo” ao deixar de lado quaisquer arroubos ligados ao liberalismo como forma do direito de defesa e passou a sustentar a ideia de que um dos componentes do estamento burocrático tem legitimidade para se colocar acima da lei ou violar o coração do direito penal. Aqueles que não defendem a Lava Jato, seriam defensores da corrupção e não do Estado de direito. A resposta por ele recebida de Gilmar Mendes mostra o tamanho do equívoco de Barroso. Ao se arvorar defensor da moralidade sem forma política ou judicial, Barroso “brinca” com uma concepção judicial e não democrática de governo. Ao se considerar representante de uma parcela da opinião pública, ele se coloca contra o estado de direito para defender o projeto político “faorista”.

Entretanto, tudo indica que essa concepção foi derrotada na sessão de 22 de abril, apesar dos gritos do eminente ministro ao final da sessão. O resultado da votação aponta para o fim do “faorismo judicial” e para o retorno de uma concepção de Estado definida pela política e não por parte dos membros do Poder judiciário que se constituíram em uma facção antirrepublicana e contra o Estado de direito. Caberá aos eleitores em 2022, e não ao Poder judiciário, determinar o projeto político que irá substituir o faorismo judicializado e militarizado.

*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. Paulo Capel Narvai Alexandre de Lima Castro Tranjan Berenice Bento Luiz Werneck Vianna Lucas Fiaschetti Estevez Walnice Nogueira Galvão Marcos Aurélio da Silva Daniel Brazil Paulo Sérgio Pinheiro Marcelo Módolo Heraldo Campos José Luís Fiori Eugênio Bucci João Paulo Ayub Fonseca João Adolfo Hansen Leonardo Avritzer Ricardo Musse Eugênio Trivinho Jean Marc Von Der Weid Remy José Fontana Armando Boito Airton Paschoa Annateresa Fabris Sergio Amadeu da Silveira Daniel Costa João Sette Whitaker Ferreira Flávio R. Kothe Juarez Guimarães Thomas Piketty Leonardo Boff Eleutério F. S. Prado Everaldo de Oliveira Andrade Alexandre de Freitas Barbosa Yuri Martins-Fontes Boaventura de Sousa Santos Fernando Nogueira da Costa Gerson Almeida Tarso Genro Gilberto Lopes Jorge Luiz Souto Maior Marilia Pacheco Fiorillo Vladimir Safatle Ricardo Antunes Lorenzo Vitral Daniel Afonso da Silva Antonino Infranca Marilena Chauí Ronaldo Tadeu de Souza Caio Bugiato Valerio Arcary José Micaelson Lacerda Morais Samuel Kilsztajn Mário Maestri Michael Roberts José Dirceu Priscila Figueiredo Anderson Alves Esteves João Carlos Loebens Celso Frederico Ladislau Dowbor Lincoln Secco Anselm Jappe Antônio Sales Rios Neto Renato Dagnino Vinício Carrilho Martinez Antonio Martins Denilson Cordeiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Tales Ab'Sáber Ronald León Núñez Ricardo Fabbrini Ricardo Abramovay Julian Rodrigues José Machado Moita Neto João Carlos Salles Henry Burnett Jorge Branco Michael Löwy Paulo Fernandes Silveira André Singer Henri Acselrad Marcelo Guimarães Lima Ronald Rocha Francisco Pereira de Farias Chico Whitaker Fábio Konder Comparato Luís Fernando Vitagliano Luiz Renato Martins José Raimundo Trindade Bento Prado Jr. Marcos Silva Luis Felipe Miguel Bruno Fabricio Alcebino da Silva Jean Pierre Chauvin Carla Teixeira Gabriel Cohn Atilio A. Boron Luciano Nascimento Luiz Roberto Alves Paulo Martins Gilberto Maringoni Leonardo Sacramento Vanderlei Tenório Érico Andrade Dennis Oliveira Eduardo Borges Salem Nasser Matheus Silveira de Souza Elias Jabbour Alysson Leandro Mascaro Otaviano Helene Flávio Aguiar Roberto Bueno Osvaldo Coggiola João Feres Júnior João Lanari Bo Francisco de Oliveira Barros Júnior Milton Pinheiro Slavoj Žižek Liszt Vieira Chico Alencar José Costa Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Claudio Katz Paulo Nogueira Batista Jr André Márcio Neves Soares Igor Felippe Santos Manchetômetro Luiz Bernardo Pericás Dênis de Moraes Eleonora Albano Maria Rita Kehl Mariarosaria Fabris Marjorie C. Marona Bernardo Ricupero Francisco Fernandes Ladeira Luiz Marques Celso Favaretto Rodrigo de Faria Ari Marcelo Solon Kátia Gerab Baggio Rafael R. Ioris José Geraldo Couto Manuel Domingos Neto Roberto Noritomi Luiz Eduardo Soares Rubens Pinto Lyra Tadeu Valadares Afrânio Catani Benicio Viero Schmidt Andrew Korybko Valerio Arcary Bruno Machado Sandra Bitencourt Eliziário Andrade Fernão Pessoa Ramos Marcus Ianoni Leda Maria Paulani Carlos Tautz

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada