Ética e respeito

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Leonardo Boff*

Apresentação, comentário e reflexões sobre a ética humanitária do missionário cristão Albert Schweitzer (1875-1965)

A produção de um programa  humorístico pelo Grupo Porta dos Fundos que teria sugerido uma eventual relação homoafetiva de Jesus e as reações negativas de muitos e até de um atentado a bomba contra a sede do grupo, nos convidam a uma reflexão sobre o respeito. Este, o respeito, é um dos eixos basicos da ética de qualquer cultura e também necessário para a convivência pacífica das diferenças dentro de um Estado Democrático de Direito.

Para enriquecer a discussão que concerne também um Ministro STF que liberou o programa humorístico depois de ter sido proibido por outro juiz, convém propor as reflexões de um pensador que, mais do que ninguém, aprofundou a questão do respeito: Albert Schweitzer (1875-1965). Ele era oriundo da Alsácia, renomado exegeta bíblico e um reconhecido concertista de Bach.

Em consequência de seus estudos sobre a mensagem e a ética de Jesus, especialmente o Sermão da Montanha, que dava centralidade ao pobre e ao oprimido resolveu abandonar tudo, estudar medicina e em 1913 ir para a África como médico em Lambarene (Togo), exatamente para aquelas regiões que foram dominadas e exploradas furiosamente pelos colonizadores europeus.

Diz explicitamente, numa carta, que “o que precisamos não é enviar para lá missionários que queiram converter os africanos, mas pessoas que se disponham a fazer para os pobres o que deve ser feito, caso o Sermão da Montanha e as palavras de Jesus possuam algum valor. Se o Cristianismo não realizar isso, perdeu seu sentido. Depois de ter refletido muito, isso ficou claro para mim: minha vida não é nem a ciência nem a arte, mas tornar-me um simples ser humano que, no espírito de Jesus, faz alguma coisa, por pequena que seja”(A. Schweitzer, Wie wir überleben können, eine Ethik für die Zukunft, 1994, p. 25-26).

Em seu hospital no interior da floresta tropical, entre um atendimento e outro de doentes, tinha tempo para refletir sobre os destinos da cultura e da humanidade. Considerava a falta de uma ética humanitária como a crise maior da cultura moderna. Dedicou anos no estudo das questões éticas que ganharam corpo em vários livros, sendo o principal deles “O respeito diante da vida”(Ehrfurcht vor dem Leben).

Tudo em sua ética gira ao redor do respeito, da veneração, da compaixão, da responsabilidade e do cuidado para com todos os seres, especialmente, para com aqueles que mais sofrem.

Ponto de partida para Schweitzer é o dado proto-primário de nossa existência, a vontade de viver que se expressa: “Eu sou vida que quer viver no meio de vidas que querem também viver” (Wie wir überleben können,73). À “vontade de poder” (Wille zur Macht) de Nietszche, Schweitzer contrapõe a “vontade de viver” (Wille zum Leben). E continua: “A ideia-chave do bem consiste em conservar a vida, desenvolvê-la e elevá-la ao seu máximo valor; o mal consiste em destruir a vida, prejudicá-la e impedi-la de se desenvolver. Este é o princípio necessário, universal e absoluto da ética” (Ehrfurcht, p.52 e 73).

Para Schweitzer, as éticas vigentes são incompletas porque tratam apenas dos comportamentos dos seres humanos face a outros seres humanos e esquecem de incluir todas as formas de vida. O respeito que devemos à vida “engloba tudo o que significa amor, doação, compaixão, solidariedade e partilha”(op. cit. 53).

Numa palavra: “a ética é a responsabilidade ilimitada por tudo o que existe e vive”. Como a nossa vida é vida com outras vidas, a ética do respeito deverá ser sempre um con-viver e um con-sofrer (miterleben und miterleiden) com os outros. Numa formulação suscinta afirma: “Tu deves viver convivendo e conservando a vida, este é o maior dos mandamentos na sua forma mais elementar” (Was sollen wir tun, p. 26).

Disso deriva comportamentos de grande compaixão e cuidado. Interpelando seus ouvintes numa homilía conclama: “Mantenha teus olhos abertos para não perderes a ocasião de ser um salvador. Não passe ao largo, inconsciente, do pequeno inseto que se debate na água e corre risco de se afogar. Tome um pauzinho e retire-o da água, enxuge-lhe as asinhas e experimente a maravilha de ter salvo uma vida e a felicidade de ter agido a cargo e em nome do Todo Poderoso. O verme que se perdeu na estrada dura e seca e que não consegue fazer o seu buraquinho, retire-o e coloque-o no meio da grama. ‘O que fizerdes a um desses mais pequenos foi a mim que o fizestes’. Esta palavra de Jesus não vale apenas para nós humanos mas também para as mais pequenas das criaturas” (Was sollen wir tun, p. 55).

A ética do respeito de Albert Schweitzer une inteligência emocional com inteligência racional. Tudo o que impedir o respeito de uns para com os outros, enfraquece a convivência social. Ninguém tem o direito de constranger o outro com a falta de respeito. Todas as liberdades possuem seu limite, imposto pelo respeito.

O maior inimigo da ética do respeito é o embotamento da sensibilidade, a inconsciência do valor fundamental do respeito ilimitado. Incorporando o respeito, o ser humano alcança o grau mais alto de sua humanidade.

Se não respeitarmos todo ser, acabamos não respeitando o ser mais complexo e misterioso da criação que é o ser humano, homem e mulher, particularmente o mais vulnerável, o pobre, o doente e o discriminado. Sem o respeito e a veneração perdemos também a memória do Sagrado e do Divino que perpassam o universo e que emergem, de algum modo, na consciência de cada um.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marcelo Módolo Boaventura de Sousa Santos José Machado Moita Neto Ronald Rocha Antonino Infranca Celso Favaretto Armando Boito Salem Nasser Henri Acselrad Jean Marc Von Der Weid Yuri Martins-Fontes Daniel Costa Ronald León Núñez Luiz Werneck Vianna José Raimundo Trindade Celso Frederico José Geraldo Couto Juarez Guimarães Osvaldo Coggiola João Sette Whitaker Ferreira Alysson Leandro Mascaro Francisco de Oliveira Barros Júnior Paulo Sérgio Pinheiro Liszt Vieira Milton Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo André Márcio Neves Soares Marilena Chauí Claudio Katz José Micaelson Lacerda Morais Igor Felippe Santos Andrés del Río Ricardo Antunes Gerson Almeida Luiz Bernardo Pericás José Dirceu Luiz Roberto Alves Denilson Cordeiro Luiz Carlos Bresser-Pereira Thomas Piketty Luiz Eduardo Soares Julian Rodrigues João Adolfo Hansen Marcos Silva André Singer Eugênio Trivinho Rubens Pinto Lyra Annateresa Fabris Paulo Capel Narvai José Luís Fiori Otaviano Helene Walnice Nogueira Galvão Francisco Pereira de Farias Maria Rita Kehl Berenice Bento João Paulo Ayub Fonseca Daniel Afonso da Silva Paulo Martins Dênis de Moraes Elias Jabbour Ronaldo Tadeu de Souza Ladislau Dowbor Ricardo Musse José Costa Júnior Andrew Korybko Gilberto Maringoni Sandra Bitencourt Luís Fernando Vitagliano Marcus Ianoni Eleutério F. S. Prado Jean Pierre Chauvin Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre de Freitas Barbosa Eliziário Andrade Carla Teixeira Daniel Brazil Tadeu Valadares Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Érico Andrade Rodrigo de Faria Lincoln Secco Ari Marcelo Solon Mário Maestri Valerio Arcary Ricardo Fabbrini Paulo Fernandes Silveira Rafael R. Ioris Fernando Nogueira da Costa Anselm Jappe Gilberto Lopes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fernão Pessoa Ramos Manchetômetro Everaldo de Oliveira Andrade Caio Bugiato Chico Whitaker Luciano Nascimento Tarso Genro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Bernardo Ricupero Dennis Oliveira Matheus Silveira de Souza Mariarosaria Fabris Francisco Fernandes Ladeira Michael Roberts Jorge Branco Luiz Renato Martins Heraldo Campos Afrânio Catani Benicio Viero Schmidt Luiz Marques Sergio Amadeu da Silveira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Leonardo Sacramento Alexandre Aragão de Albuquerque Jorge Luiz Souto Maior Luis Felipe Miguel Ricardo Abramovay Leonardo Avritzer Airton Paschoa João Carlos Loebens Carlos Tautz Antonio Martins Kátia Gerab Baggio Flávio Aguiar Bruno Machado João Carlos Salles Lucas Fiaschetti Estevez Marcos Aurélio da Silva Flávio R. Kothe Antônio Sales Rios Neto Marcelo Guimarães Lima Tales Ab'Sáber Lorenzo Vitral Paulo Nogueira Batista Jr Gabriel Cohn Leonardo Boff Fábio Konder Comparato Samuel Kilsztajn Marjorie C. Marona João Feres Júnior João Lanari Bo Remy José Fontana Slavoj Žižek Henry Burnett Bento Prado Jr. Eleonora Albano Vanderlei Tenório Renato Dagnino Manuel Domingos Neto Vinício Carrilho Martinez Priscila Figueiredo Valerio Arcary Atilio A. Boron Eduardo Borges Vladimir Safatle Michael Löwy Chico Alencar Michel Goulart da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES