Por LARA FERREIRA LORENZONI, MARCELO SIANO LIMA & LIGIA MAFRA*
O grande capital transforma o cancelamento de conflitos em um dogma a ser mantido sob qualquer pretexto, inclusive com o uso da violência estatal e paraestatal
1.
Uma série de acontecimentos recentes têm sido vistos de forma preocupante. Gestos, falas e posicionamentos sobre moral, políticas públicas e política externa estão sendo atribuídos a um fenômeno histórico social de extrema direita: o fascismo. A fim de se saber se tal percepção dos fatos é correta, cabe questionar: afinal, o que é fascismo?
A origem e desenvolvimento do fascismo estão intimamente ligados à conjuntura histórica específica da Itália entre as duas grandes guerras, devastada e vivendo sob o contexto de uma iminente explosão social. Sob a liderança de Benito Mussolini, formou-se um movimento, depois um Partido, que agregou em torno de si o ideal de redenção do país e de sua população vivendo em condições de miséria e desalento. A concepção que se remete exclusivamente ao “fascismo clássico” o restringe a esse período e local específicos.
Não obstante, diversos estudiosos – a exemplo de Umberto Eco, Robert Paxton, Jason Stanley e Leandro Konder – não vinculam o fascismo a um tempo histórico único e irrepetível. Ao contrário, o admitem como um perigo latente do qual as democracias, ao longo da trajetória humana, necessitam constantemente se prevenir.
Invariavelmente, o fascismo é um movimento político de conteúdo social conservador, disfarçado sob uma máscara modernizadora. Nele, pulsa uma profunda sensação de crise e declínio. Essa visão catastrófica da realidade leva a uma idealização do passado e a uma busca obsessiva por uma suposta “grandeza perdida”, por valores identitários miticamente produzidos, por uma unidade nacional, tida como a única solução para os problemas da comunidade, que supostamente não podem ser resolvidos pelos meios políticos tradicionais. Passa também pela afirmação de um nacionalismo autoritário e excludente, pela projeção de virilidade e “potência”, pelo controle absoluto do Estado e de todo o seu aparato.
Tudo isso em torno de um líder, uma figura masculina e paternalista, o exemplo mais bem-acabado da “identidade nacional”. Alguém que, com seu poder comunicativo, convoca as fantasias infantis das massas sobre os “perigos” iminentes à “pátria” e, numa esfera mais particular, à “família”. Na ensandecida busca por uma intangível “pureza”, as liberdades democráticas são rejeitadas em prol de objetivos de purificação étnica e dominação, justificados, por meio de um sofisticado sistema de propaganda, por uma violência considerada redentora e, por isso, sem limites.
Os fascistas nutrem um desprezo absoluto pela suavidade, pela complacência, pela empatia, pelos valores iluministas, pelo parlamentarismo, pela democracia liberal e suas instituições, bem como por todo e qualquer tipo de acordo político. São hegemonistas: a eles deve se curvar toda uma sociedade, que passa a ser tutelada por seu ideário. O principal signo do fascismo é a divisão da população entre “nós” (os incluídos, os dignos) e “eles” (os excluídos e indignos, numa palavra, os “inimigos” – internos e externos), apelando para distinções étnicas, religiosas ou raciais. O medo é o afeto dominante – medo do outro, medo da diferença. Contra o medo, justificam-se todas as formas de violência estatal e paraestatal.
2.
No contexto do capitalismo, os regimes de viés fascista sempre encontraram acolhida junto aos detentores do grande capital. O fascismo histórico, das décadas de 1920 e 1930, consubstanciou movimentos de contenção de uma classe trabalhadora que vivia sob as intensas crises econômicas, pelos escombros da destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pela sedução irradiada pela vitória da Revolução Bolchevique na Rússia, então União Soviética, em 1917.
Suas teses e práticas autoritárias, repressoras e anticomunistas agradavam o grande capital, pois continham a massa trabalhadora quanto a ímpetos revolucionários de esquerda e a cooptava para uma dimensão ideológica na qual manipulavam as emoções e toda a cosmologia de símbolos e paradigmas organizacionais.
Hoje, no século XXI, assistimos ao renascimento do fascismo, irradiado por um populismo competente que se apossou das redes sociais, transformadas no grande instrumento de propagação de todo o ideário de purificação e de salvacionismo que se abate sobre sociedades e economias erodidas com as crises sistêmicas do capitalismo em sua versão neoliberal.
O neoliberalismo, como a “nova razão do mundo”, conforme definido por Pierre Dardot e Christian Laval, desestruturou a economia produtiva ao impor o domínio da financeirização, gerando um aprofundamento de crises e a formação de um passivo social de proporções bíblicas. O desemprego tecnológico nunca havia proporcionado impactos tão grandiosos e rápidos como nos tempos atuais, com a dispensa de milhões de pessoas de empregos e de linhas de produção que simplesmente deixam de existir.
Na economia das relações políticas e sociais, as crises econômicas geram tensões e frustações nas pessoas, individual e coletivamente, conjuntura favorável às ações propagadas pelo populismo. Este, nacional e internacionalmente apropriado pelas forças políticas de extrema-direita, produz uma realidade paralela, com uma gramática própria, e para ela conduz milhões de seres humanos, encantados com a quimera característica desse campo. Toda a força destruidora do populismo fascista se volta contra os símbolos e as bases de um pensamento e de um modo de vida que se deseja suprimir, liberando ódios profundos e mortais. Nele, o grande capital transforma o cancelamento de conflitos em um dogma a ser mantido sob qualquer pretexto, inclusive com o uso da violência estatal e paraestatal.
3.
A tecnologia tem um papel central nesse fenômeno. As plataformas digitais, com seus algoritmos desenhados para maximizar o engajamento, favorecem a disseminação de discursos polarizados e conteúdos que estimulam reações emocionais intensas, ampliando a radicalização política e fortalecendo as narrativas fascistas contemporâneas. A inteligência artificial, por sua vez, é utilizada para personalizar mensagens, identificar públicos-alvo e impulsionar campanhas de desinformação, tornando-se uma ferramenta poderosa para a manipulação política em larga escala.
Além disso, a vigilância digital e a coleta massiva de dados permitem que governos autoritários e grupos políticos de extrema-direita (inclusive grupos privados, como grandes empresas e seus interesses pouco ou nada republicanos) monitorem cidadãos, coíbam dissidências e restrinjam liberdades fundamentais. O capitalismo de vigilância, como descrito por Shoshana Zuboff, potencializa o controle social ao transformar a vida cotidiana em um fluxo contínuo de dados que pode ser explorado para antecipar comportamentos, influenciar decisões e reforçar estruturas de poder autoritárias.
No terreno dos colapsos, das frustrações e do desalento, emergem as forças que, no limite, alteram os rumos de todas as sociedades humanas. O que vivemos no tempo presente é a predominância de um capitalismo de plataforma, de uma economia financeirizada e da ausência cada vez maior de postos de trabalho para uma população que cresce de forma vertiginosa. Diversos pensadores têm alertado para a incapacidade de o planeta suportar os níveis de consumo hoje demandados.
O cenário do agravamento das crises é “real e imediato”, com a deterioração das democracias liberais e de suas instituições, incapazes de responder às demandas sociais. No entanto, a culpa não recai sobre os donos do capital e sua insana avidez por cada vez mais lucro, independentemente do aniquilamento planetário e emergências climáticas que isso engendra, mas sim, sobre os inimigos inventados da vez: imigrantes, negros, pobres, artistas, professores, pessoas LGBTQIAPN+ etc.
Enfim, rondamos o abismo, receosos de nele sermos lançados por forças descompromissadas com a vida e a democracia. Tememos pelo nosso futuro, pessoal e coletivo, pois não conseguimos ver perspectivas alvissareiras no horizonte diante de nós. Pelo menos, não nos marcos de um capitalismo financeiro, plataformizado, com cárcere e polícia em nome da “segurança”, mas sem fábrica, sem classe trabalhadora organizada, cenário esterilizador de qualquer suspiro democrático.
Assim, questionamos: seriam as respostas cartesianas inauguradas pelas revoluções liberais na primeira hora da modernidade as mais adequadas para enfrentar o fascismo no século XXI? Seriam as reformas liberais, a longo prazo, suficientes para a contenção do monstro devorador de corações, ecossistemas, mentes e liberdades? O que mais nos resta aprender com a experiência histórica e a tecno-tirania do presente? A ver.
*Lara Ferreira Lorenzoni, advogada, é doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
*Marcelo Siano Lima, historiador, é doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
*Ligia Mafra, advogada, é doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
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