No pântano, crise sem fim

Joachim Beuckelaer (1533–1575), Mercado de Peixe (Detalhe dos peixes), óleo sobre carvalho báltico, 1568.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DAVID MACIEL*

A crise mostra-se insolúvel porque as duas (contra-)revoluções que a originaram e constituem, a neoliberal extremada e a fascistizante, retroalimentam-se

A crise brasileira parece não ter fim, afeta dramaticamente todas as esferas da vida social e avança de maneira desenfreada a cada nova tentativa de estabilização da situação política. A disseminação em escala nacional da variante Delta da Covid-19, num cenário em que sequer 30% da população foi completamente imunizada e em que a situação de “normalidade” é imposta de cima para baixo por governos e empresas, promete potencializar ainda mais os já altíssimos índices de contaminação e mortes.

Diante da escalada inflacionária, o governo radicaliza sua opção pelo rentismo, aumentando a taxa de juros e desestimulando ainda mais os investimentos produtivos, enquanto “passa a boiada” com tranquilidade, para aplauso de todas as burguesias e da oposição de centro-direita. Depois da privatização da Eletrobrás e da legalização da grilagem de terras, a pauta neoliberal extremada avança sobre as terras indígenas, a privatização dos Correios, uma reforma tributária que desonera o capital e a classe média, aprofundando a regressividade da estrutura tributária, e uma nova reforma trabalhista, que flexibiliza os contratos do emprego formal e precariza ainda mais as condições de trabalho.

Com a CPI da Covid-19 e os processos contra Bolsonaro, seu clã, bolsonaristas e suas redes no STF e no TSE, além dos editoriais incandescentes, manifestos de repúdio e declarações tão altissonantes quanto vazias acerca do funcionamento das instituições e da robustez da democracia brasileira, os setores dominantes do bloco no poder e a oposição de direita buscam manter o governo sob controle, evitar o golpe fascista e estabilizar a democracia restrita oriunda do golpe de 2016. No entanto, quanto mais Bolsonaro é pressionado e desautorizado em seus intentos golpistas, mais ele avança na fascistização do aparelho de Estado, reforça a simbiose entre governo e militares, paga com juros as sucessivas faturas cobradas pelo Centrão e radicaliza no discurso e na prática contra ministros do STF, o sistema eleitoral e a Constituição.

Para o próximo dia 7 de setembro promete um novo golpe, desta vez amparado nas polícias estaduais, nos caminhoneiros, em setores do agronegócio e na saída às ruas pela malta bolsonarista para gerar o caos e justificar a intervenção “moderadora” dos militares. Enquanto isto, governadores, o presidente do STF, o presidente do Senado e lideranças empresariais da Fiesp à Febraban, passando pela burguesia agro-exportadora, fazem o enésimo apelo ao “diálogo” e à harmonia entre os poderes e entes federativos, como se a coisa toda dependesse apenas de sensatez e boa vontade. Ou seja, quanto mais o grande capital e seus representantes políticos buscam baixar a fervura da crise para cozinhar em banho-maria a execução de sua pauta neoliberal extremada, baseada na ofensiva sobre os direitos e a renda dos trabalhadores, na concentração e centralização capitalista e na apropriação de recursos naturais e bens públicos, mais a temperatura sobe por conta da própria natureza socialmente excludente, economicamente recessiva e politicamente instabilizadora de seu programa econômico.

Na verdade, a crise mostra-se insolúvel porque as duas (contra-)revoluções que a originaram e constituem, a neoliberal extremada e a fascistizante, retroalimentam-se, apesar das contradições entre si, num círculo vicioso impossível de superar nos marcos da atual democracia restrita. Num cenário histórico de avanço do capital externo sobre a economia nacional, desindustrialização e reprimarização produtiva – processos que se arrastam desde os anos 90 e se aprofundaram após a crise mundial de 2008 –, a aplicação do neoliberalismo extremado implica não apenas o reforço do rentismo, da regressão colonial e da exclusão social, com tudo o que isso significa em termos de superexploração e precarização do trabalho, redução do mercado consumidor, crescimento da pobreza e acirramento da crise social, mas também alterações significativas na própria correlação de forças entre as frações burguesas e na relação entre Estado e capital.

Apesar da predominância inconteste das frações do grande capital associadas ao imperialismo e localizadas no setor financeiro, principais interessadas na estabilização da democracia restrita em vigor, há uma disputa acirrada pela riqueza e pelo poder nos escalões intermediários e inferiores do bloco no poder, com o avanço do agronegócio (agropecuária, agroindústria), do extrativismo (mineração, madeireiras), do comércio (principalmente varejista) e de determinados setores prestadores de serviços, que se beneficiam diretamente da privatização de recursos naturais, bens públicos e serviços sociais, da precarização do trabalho viabilizada pelas sucessivas “reformas” trabalhistas e do desmonte das estruturas de fiscalização e regulação estatal, muitas vezes transpondo a fronteira entre a legalidade e o crime.

Para estas frações, que buscam seu espaço a “cotoveladas”, para além da desregulamentação neoliberal das relações entre capital e trabalho, também de interesse das demais frações burguesas porque fundamental para os novos ritmos de extração de mais-valia, acumulação e concentração capitalista, é crucial neste momento flexibilizar ou mesmo reduzir a capacidade estatal de regular as relações entre os capitais e a hierarquia entre eles, abrindo espaço para sua ascensão. Daí o apoio de diversos desses setores à ação disruptiva do governo Bolsonaro e à perspectiva fascista representada pelo bolsonarismo, visível no apoio do Centrão e na presença de diversos representantes destes setores entre os “empresários bolsonaristas”.

Dados da tradicional pesquisa “As 500 maiores e melhores empresas do Brasil” permitem perceber que entre as maiores empresas não-financeiras do país há uma ascensão relativa desses setores entre 2016 e 2020 em detrimento dos setores de energia (toda a cadeia de petróleo, gás e energia elétrica), bens de capital e a chamada indústria digital. Há tanto o aumento absoluto de sua participação no conjunto da mostra, de 43% para 52%, quanto avanço significativo nos escalões intermediários, particularmente entre as posições 101 e 200[i].

Portanto, para além da explosividade que a combinação entre crise econômica, desemprego, redução salarial, empobrecimento e a tragédia da pandemia representa para a situação política, a própria disputa interburguesa torna a crise ainda mais insolúvel, pois não é possível aplicar e executar a pauta neoliberal extremada sem o aprofundamento da transição autoritária, de tendência fascistizante, o que impede a estabilização do regime e o estabelecimento de uma nova hegemonia burguesa no médio prazo. Daí a ineficácia do “morde e assopra” sobre Bolsonaro e a impotência das “instituições”, editoriais e manifestos diante de sua ação disruptiva.

Por outro lado, a centro-esquerda não consegue cortar o nó górdio da crise burguesa e criar uma alternativa efetiva a essa contradição porque, tal como a oposição de centro-direita, também almeja a estabilização política, com a diferença de que não por meio da consolidação da democracia restrita hoje vigorante, mas sim pela restauração (mesmo que parcial) do que não volta mais: a Nova República e sua democracia de cooptação. E não o consegue ainda porque também carrega uma perspectiva de conciliação de classes que não rompe com os interesses burgueses vigentes; ao contrário, preserva-os e se beneficia da ideologia que domina a consciência dos trabalhadores desde a implantação do projeto neoliberal nos anos 90, que foi mantido pelos governos petistas e aprofundado após o golpe de 2016 e que combina paternalismo, empreendedorismo e fundamentalismo religioso em graus e matizes variados.

Por motivos diferentes, há uma espécie de pacto implícito entre as forças de centro à esquerda e à direita em torno do Fica Bolsonaro e da sua presença no pleito de 2022. De um lado, imagina-se que o “derretimento” político de Bolsonaro ao longo do resto do mandato favorecerá a vitória de Lula como o AntiBolsonaro e inviabilizará uma candidatura competitiva da chamada “terceira via”; de outro, calcula-se que sua ausência do pleito tornará a vitória de Lula ainda mais fácil já no primeiro turno, por conta do absenteísmo de parte do voto bolsonarista. Tanto numa, quanto noutra hipótese isso significa que a tragédia bolsonarista se arrastará por mais 16 meses por mais que a crise se aguce em todos os sentidos.

Assim, aos trabalhadores e à esquerda socialista não resta alternativa senão refundar urgentemente suas práticas organizativas e sua capacidade mobilizatória em torno de uma perspectiva ao mesmo tempo antiautocrática, antineoliberal e socialista, assim como intensificar a luta contra o governo, a democracia restrita e o neoliberalismo extremado nas ruas, escolas, fábricas e no campo. Caso contrário, a derrubada de Bolsonaro ou mesmo do governo inteiro pode representar não mais do que o afastamento momentâneo da ameaça fascista ou de mais um giro no torniquete da autocracia burguesa.

À nova tentativa de golpe representada pelas manifestações bolsonaristas convocadas para o feriado da Independência os trabalhadores devem reagir de maneira resoluta, pela derrota definitiva do bolsonarismo, pelo Fora Bolsonaro e Mourão, pela reversão de toda a pauta política e econômica do golpe de 2016 em favor da ampliação substantiva dos seus direitos sociais e políticos para além da Nova República e da própria Constituição de 1988.

*David Maciel é professor de história. Autor de História, política e revolução em Marx e Engels (edições Gárgula).

Nota


[i] https://mm.exame.com/maiores-empresas/; https://exame.com/revista-exame/500-1-000-maiores-empresas/

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Benicio Viero Schmidt José Dirceu Luiz Renato Martins Leonardo Avritzer André Márcio Neves Soares Plínio de Arruda Sampaio Jr. Manuel Domingos Neto Henry Burnett Sergio Amadeu da Silveira Mariarosaria Fabris Marcelo Módolo José Geraldo Couto João Lanari Bo Renato Dagnino Marilia Pacheco Fiorillo Kátia Gerab Baggio Ronald León Núñez José Raimundo Trindade Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcelo Guimarães Lima Flávio Aguiar Lincoln Secco Jean Pierre Chauvin Sandra Bitencourt Gabriel Cohn Ricardo Antunes Érico Andrade Valerio Arcary Antonino Infranca José Luís Fiori Andrés del Río Dênis de Moraes Igor Felippe Santos Jorge Branco Otaviano Helene Ricardo Fabbrini Marilena Chauí Remy José Fontana Claudio Katz Rodrigo de Faria Eliziário Andrade Samuel Kilsztajn João Sette Whitaker Ferreira Bruno Machado Marcos Silva Eleutério F. S. Prado Liszt Vieira Afrânio Catani Eduardo Borges Chico Alencar Alysson Leandro Mascaro Michel Goulart da Silva Berenice Bento Jorge Luiz Souto Maior Fábio Konder Comparato Juarez Guimarães Julian Rodrigues Tales Ab'Sáber Rafael R. Ioris Ladislau Dowbor Luis Felipe Miguel Celso Favaretto Bernardo Ricupero Fernando Nogueira da Costa Paulo Capel Narvai Vinício Carrilho Martinez Michael Roberts Carlos Tautz Daniel Brazil Leda Maria Paulani Ricardo Abramovay José Micaelson Lacerda Morais Airton Paschoa Milton Pinheiro Caio Bugiato Francisco de Oliveira Barros Júnior Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Nogueira Batista Jr Gilberto Maringoni Matheus Silveira de Souza Heraldo Campos Leonardo Sacramento Eugênio Bucci Luís Fernando Vitagliano Paulo Martins Valerio Arcary Eugênio Trivinho Armando Boito João Carlos Salles Manchetômetro Antonio Martins Ronaldo Tadeu de Souza Francisco Pereira de Farias Fernão Pessoa Ramos Luiz Roberto Alves Francisco Fernandes Ladeira Tadeu Valadares Gilberto Lopes Flávio R. Kothe Tarso Genro Chico Whitaker Vladimir Safatle Celso Frederico Ronald Rocha Luiz Werneck Vianna Daniel Afonso da Silva Gerson Almeida Lucas Fiaschetti Estevez Denilson Cordeiro João Carlos Loebens Atilio A. Boron Slavoj Žižek Luiz Eduardo Soares Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Bernardo Pericás Vanderlei Tenório Thomas Piketty Boaventura de Sousa Santos Eleonora Albano Anselm Jappe Leonardo Boff João Paulo Ayub Fonseca André Singer Lorenzo Vitral Marcos Aurélio da Silva Michael Löwy Elias Jabbour João Adolfo Hansen Luiz Marques Marcus Ianoni Walnice Nogueira Galvão Alexandre Aragão de Albuquerque Salem Nasser Ricardo Musse Alexandre de Freitas Barbosa Luciano Nascimento Annateresa Fabris Dennis Oliveira Ari Marcelo Solon Yuri Martins-Fontes Rubens Pinto Lyra Mário Maestri Maria Rita Kehl Andrew Korybko Henri Acselrad Priscila Figueiredo Carla Teixeira Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Osvaldo Coggiola Daniel Costa José Costa Júnior Antônio Sales Rios Neto Marjorie C. Marona José Machado Moita Neto Everaldo de Oliveira Andrade Bento Prado Jr. João Feres Júnior Bruno Fabricio Alcebino da Silva

NOVAS PUBLICAÇÕES