Fragmentos XIV

image_pdf

Por AIRTON PASCHOA*

Quatro peças curtas

Amor romântico

Atendia por Monique e arrastava todos os erres e erros que a gente pudesse imaginar. Possuía a frescura quente das madrugadas da roça e fazia pensar em tudo que contrariava a Civilização. Sombra, água fresca… e filhos, tantos que vivia emprenhada e morria cedo. Desgostoso, a gente se internava no puteiro e fazia política revolucionária. Vereador, prefeito, caudilho e escaldado, mandava erguer, no largo da matriz, devidamente coberto pela moral e os bons costumes, um busto em honra da Primeira Dama, padroeira da cidade. Então, champanha em punho, a gente discursava de olhos vermelhos e lá do alto, só a gente vendo, Monique abria as pernas sobre nós. Num repente esperado, a fanfarra acossando, quebrava-lhe a garrafa na cabeça.

 

Apendicite

Tinha sinais que existia longe de mim, em qualquer buraco negro do cosmos. Um amigo, uma notícia, e onde há fumaça, cinza deve haver. Levamos um bom pedaço da vida juntos. Mais que juntos, grudados. Não cansava de me dizer que era sua vida, dependurada em meu braço, e com tanta convicção ou persuasão que fui naturalmente inchando, inchando, até a crise de apêndice e me ver de novo largado no hospital. De novo porque já ocorrera o mesmo há cinco décadas. Mas aí tinha desculpa a senhora minha genitora, Deus a chamara. Ela não, o diabo a chamasse! Não digo que sofri propriamente, mas não há negar certo peso na altura do braço, certa ausência quase palpável. Daí por que optei pela bengala, que me serve de apoio e a que também sirvo de cabide quando necessito manusear as duas mãos. Dei-lhe por comodidade o mesmo nome da dissoluta e estou certo em não recear novo desaforo. Onde a largo, estaca, e não costumo deixá-la muito longe de mim. Às vezes passo-lhe a mão na cabeça e, se disser que quase chega a curvá-la de agradecida, sei que não vão acreditar. Eu também não acreditava até casar com ela. Fê é a esposa perfeita. Além do cafuné ou de me coçar as costas e, sem um ai, os dedos dos pés, ai! com dedinhos tão roliços! já consegue a distância me apanhar os chinelos. E dia haverá, não duvido, dia haverá que, em a encontrando, à pérfida xará, não medirá esforços em fazê-la sentir toda a fúria de nossa justa ira. Tão certo mas tão certo como um dia depois do outro, uma bengalada depois da outra…

 

Kiki

Dois pombinhos, dois biquinhos a bebericar do céu o que Deus dava. E o Criador não regateou, deu-lhes de vez o paraíso terrestre, o éter que inspira, o azul que inebria, a linfa que do sol consola, o odor que do botão trescala, o pomo que da copa discorda, a filomela que das aves canora, a candura que das feras et caterva, o Éden em cascata, em suma, e sem cascavel. E por tais nuvens nefelibataram os dois sempre tão unidos que, sentenciara o Senhor, não nasceram um para o outro, nasceram um do outro. E assim se fez. A que altura do trabalho se cansaram, ou se deram por satisfeitos, em caso tão sublime de xifopagia edenista, é fonte de especulação. O que não se especula é o nome por extenso, Valquíria e Quirino, e o hipocorístico, por extensão, Ki & Ki.

Que lograram, que legaram, nunca se soube. Não cantaram, não pintaram, não bordaram, não escreveram nem pregaram… a não ser a lápide infame: “Aqui jaz Kiki”. O diabo que os… perdão, que o… amém: O – parta!

 

Moção em prol da tolerância

Senhor presidente, onde desovar o sêmen sedicioso hoje o homem honesto e devoto da rês pública? Frequentar república de amigos duvidosos se prova temerário. Comparecer a churrascarias humanas fere os mais elementares princípios do decoro republicano. Descer a palhoças, suspeitamos que não o fazem nem as autoridades sanitárias.

O remoçamento geral, senhor presidente, o remoçamento dos homens, dos costumes, da Nação, não se logra, via de regra, senão cutucando, perdão, cultivando a boa tradição da terra. Noutras palavras, globalização tem limite, presidente, e quem no-lo dá é a casa de tolerância!

Em vista do exposto, apelamos para Vossa Excelência no sentido de envidar esforços totais, orçamentários e totalitários, a fim de prover o corpo social, de cabo a rabo, desta bela estância que um dia possuiu o pau-brasil — BORDÉIS DECENTES, logradouros apropriados ao livre e suserano (sem prejuízo do suberânus, Excelência, outrossim gostoso) exercício do poder com ph, senhor presidente, prática esta que se deve pautar pelo respeito à mais primeva e veneranda instituição do copulismo nacional, a saber, a insinuação… arte de tocar os sinos, se me é lícita a licenciosidade poética, sem escancarar a capela. Isto porque o nu e a ação em si, Excelência, podem ficar perfeitamente bem, trancada a porta e destrancada a pauta, por conta de nossos valorosos compatriotas.

Faço saber, a quem interessar possa política pública teúda e manteúda, que atos contínuos fui chamado a Brasília pra assumir a pasta de Relações Interiores, a fim de disseminar fundão adentro, até chegarmos à renda mínima, o programa de distribuição de rendas.

*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de Ver Navios (Nankin).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES