Tempos interessantes

Imagem: Hamilton Grimaldi
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TADEU VALADARES*

Reflexões sobre o que podemos esperar dos anos Biden-Kamala

Desconfio de que os anos Biden-Kamala serão a explicitação de que o sonho americano que vem do New Deal se esgotou. Biden, impressão minha, a última tentativa meramente restauradora, projeto que só pela graça da fortuna será bem-sucedido. Uma volta a Obama, um ir adiante com os olhos fixos no passado recente é, no essencial, o cerne da plataforma de Biden e sua vice. Isso me parece impossível, dada a polarização sem remédio que há décadas se instalou no seio do regime político estadunidense.

A república imperial se tornou pouco a pouco, pelo menos desde Reagan, no país real em que metade dos eleitores pertence majoritariamente ao campo liberal democrata, para ele carregando uma fração da esquerda, ela mesma amplamente diversificada. Muitos, quase todos, a ala esquerda nisso aparecendo como parcial exceção, permanecem animados pela fé no excepcionalismo da Nova Jerusalém. Enquanto isso, a outra quase metade do eleitorado se construiu e foi construída de tal forma que terminou por se afirmar como nacionalista extremada, reacionária, xenófoba e autoritária que continua a ganhar força. Outro sonho americano. Outro pesadelo.

Os dados eleitorais são cristalinos. Eles, os xenófobos, sabem que sua chance é agora, ou seja, vivem o momento do equilíbrio catastrófico que lhes permite explicitar o até então impensável para a antiga maioria silenciosa, daí que os brutos lancem mão de todos os meios possíveis, jurídicos e antijurídicos para continuar  a controlar o poder executivo. Para os neo-autoritários, o sonho americano liberal-democrático acabou. O que vem sendo ingenuamente celebrado como a grande virada em direção à reencontrada democracia ‘tocquevilliana’ fecha os olhos à realidade: o movimento da barbárie desencadeada com toda força por Trump, engendro que por um fio de cabelo não conseguiu manter o controle da Casa Branca, já tem nas mãos a mais importante das instituições, se pensamos no prazo longo, a Suprema Corte. Seis dos seus nove integrantes são considerados próximos, ou até mesmo alinhados, à visão “trumpiana” de mundo.

As eleições decididas tacada a tacada, cujos resultados ainda não foram reconhecidos pelo lado perdedor, dizem que  o triunfo de Biden não deve ser lido como segura reafirmação da proposta Obama, como viável correção de rumos que chegou para ficar, nesse ficar enraizando-se.  Antes, a meu ver, proclamam algo oposto, algo cada vez mais evidente: o movimento extremista se tornou tumor inextirpável, cada vez mais capaz de corroer os mitos fundadores da democracia tal como historicamente concebida pelos Pais Fundadores. O trumpismo, com ou sem Trump, alcançou  novo patamar no show de horrores. As emoções populares que atemorizavam o político francês se tornaram paixões populares de extrema direita que deveriam sobressaltar os que ainda vivem no universo onírico anterior.

De uns 50 anos para cá se conforma o assalto à tradição liberal democrática tocquevilliana. Essa operação, iniciada muito antes de Trump, tem a ver com Goldwater, Nixon,  Reagan, Tea Party, os Clinton e muito mais.  O lado mais extremista de um movimento extremista foi vocalizado e magnificado por Trump, o líder que, embora derrotado, continua no controle do partido de Lincoln. A partir da Casa Branca, o presidente continua recalcitrante, não entrega os pontos e foge para frente: impulsa o mais que pode a dinâmica de dilaceramento do corpo social. Kantorovicz diria que o corpo místico do rei começa a cheirar mal.

Há meio século o extremismo de direita saiu da caixa em que a mítica Pandora da Declaração de Independência o aprisionou. Hoje, tem vida e desenvolvimento orgânico próprios. Ao longo dos últimos anos, tornou-se fator de poder cuja vigência tem como medida o tempo geracional. Trump pode desaparecer; o trumpismo, não. Em outras palavras, mesmo que o até agora inconteste líder dos republicanos saia de cena (assassinato, doença, o que seja), o movimento que o precede e a ele sobreviverá dispõe das condições para ao menos se manter em pé de guerra, e para, nesse manter-se, bloquear o projeto restaurador enquanto aposta máxima do establisment democrata.

A ver como estará o sistema político, quatro anos mais. De permeio, 2022 já à vista como momento em que os EUA viverão talvez as ‘midterm elections‘ mais carregadas de nuvens negras em toda a sua história. Os EUA enfrentam uma fieira de momentos decisivos, outro sinal da amplitude e profundidade da crise geral.

Enquanto isso, a China se afirma como grande potência ascendente, a Rússia de Putin se fortalece, o Sul Global conhece explosões sociais e políticas cada vez mais frequentes, e a Europa, tal como os EUA, perde o rumo iluminista, fio há tanto esgarçado, mas hoje ainda mais reduzido à fraca forma do falso, àquilo que ainda busca justificar o que resta do mito fundador da hegemonia oitocentista europeia, o fardo do homem branco. O neoliberalismo triunfou enquanto o extremismo direitista que lhe é afim se estruturava. Desse triunfo emerge seu fracasso, cifrado na incerteza completa quanto ao futuro. Simultaneamente, criou os seus coveiros. Em meio à crise planetária, as velhas toupeiras regressam transmutadas.

Tempos interessantes, desejam os chineses aos que veem como adversário ou inimigos. Tempos interessantes viveremos, nós que não somos adversários nem inimigos. E deles, outra ironia da história desse desastre global no qual a pandemia funciona como poderosa lente de aumento, ninguém escapará. Nem mesmo os chineses.

*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Boaventura de Sousa Santos Luiz Carlos Bresser-Pereira Julian Rodrigues Claudio Katz Sergio Amadeu da Silveira Bruno Machado Jean Marc Von Der Weid Luiz Bernardo Pericás Michael Roberts Marcelo Guimarães Lima Manuel Domingos Neto Elias Jabbour Eugênio Bucci Jean Pierre Chauvin José Dirceu Marilena Chauí Ricardo Antunes Dênis de Moraes Francisco de Oliveira Barros Júnior Priscila Figueiredo Marcus Ianoni Milton Pinheiro Luiz Marques Armando Boito Heraldo Campos Leda Maria Paulani Carlos Tautz Ricardo Fabbrini João Sette Whitaker Ferreira Marjorie C. Marona Lincoln Secco Fábio Konder Comparato Carla Teixeira Alysson Leandro Mascaro Ronaldo Tadeu de Souza João Paulo Ayub Fonseca Marcelo Módolo Salem Nasser Érico Andrade Walnice Nogueira Galvão Rodrigo de Faria Rafael R. Ioris José Luís Fiori Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Celso Favaretto Benicio Viero Schmidt Vanderlei Tenório Leonardo Boff Slavoj Žižek Henry Burnett Francisco Fernandes Ladeira Juarez Guimarães Bernardo Ricupero Kátia Gerab Baggio Antonino Infranca Leonardo Sacramento Luis Felipe Miguel Andrew Korybko Paulo Nogueira Batista Jr Atilio A. Boron Tarso Genro Fernando Nogueira da Costa Francisco Pereira de Farias Paulo Martins Bruno Fabricio Alcebino da Silva Alexandre de Freitas Barbosa Tales Ab'Sáber Eleutério F. S. Prado Airton Paschoa Vladimir Safatle Ricardo Musse Rubens Pinto Lyra André Singer Luciano Nascimento Chico Whitaker Otaviano Helene Mariarosaria Fabris Eliziário Andrade Daniel Brazil Ricardo Abramovay Ladislau Dowbor Anselm Jappe Luiz Eduardo Soares Yuri Martins-Fontes Valerio Arcary Luiz Roberto Alves Tadeu Valadares José Costa Júnior João Carlos Salles Bento Prado Jr. Sandra Bitencourt Remy José Fontana Luís Fernando Vitagliano João Carlos Loebens Lorenzo Vitral André Márcio Neves Soares João Adolfo Hansen Celso Frederico Gilberto Lopes Samuel Kilsztajn Lucas Fiaschetti Estevez José Machado Moita Neto Flávio Aguiar Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ronald León Núñez Thomas Piketty Flávio R. Kothe Daniel Afonso da Silva Chico Alencar Osvaldo Coggiola Matheus Silveira de Souza Jorge Branco Dennis Oliveira Antonio Martins José Micaelson Lacerda Morais Paulo Capel Narvai Jorge Luiz Souto Maior Eduardo Borges Marcos Aurélio da Silva Eugênio Trivinho Everaldo de Oliveira Andrade Liszt Vieira José Geraldo Couto Alexandre de Lima Castro Tranjan Alexandre Aragão de Albuquerque Paulo Fernandes Silveira Igor Felippe Santos Gerson Almeida João Lanari Bo Michael Löwy Luiz Werneck Vianna Caio Bugiato José Raimundo Trindade Marcos Silva Valerio Arcary Henri Acselrad Michel Goulart da Silva Denilson Cordeiro Ari Marcelo Solon Maria Rita Kehl Leonardo Avritzer Annateresa Fabris Eleonora Albano Berenice Bento Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Renato Martins Vinício Carrilho Martinez Andrés del Río Daniel Costa Fernão Pessoa Ramos Afrânio Catani Mário Maestri Gabriel Cohn Manchetômetro Paulo Sérgio Pinheiro Ronald Rocha Renato Dagnino João Feres Júnior Gilberto Maringoni Antônio Sales Rios Neto

NOVAS PUBLICAÇÕES