Por AIRTON PASCHOA*
Cinco peças curtas
pouco caso ou pouco-caso?
o Universo tem por volta de 14 bilhões de anos
a Terra mais ou menos 4,5 bilhões
o hominídeo uns 2 milhões
o homem 300 mil
o hífen não faço a mínima ideia
Estatelado
Os passarinhos passam a tarde inteira em conversa. Não há de ser sobre nós, já foi tudo dito, redito e bem-dito. Hão de falar do que interessa, dos novos ares, da mudança de vento, da troca de estação, do outono de dádivas apinhado, de um ou outro semelhante que bateu asa. Talvez falem do pássaro enorme, desengonçado, da carga pesada, da queda livre, não se sabe, do baque que os fez alçarem voo assustados. Repararam que não tinha asas, não entenderam. A janela permaneceria cerrada por um bom tempo, sem as sementes de parapeito que tanto estimavam. Continuariam sem entender… mas, também, quem entende este azul de estatelar?
Vai sonhando
Chega de buda mole, a gente tem que virar buda firme! Crer tudo sonho… Não é rima e tem cara de solução. Abolimos o mundo medonho, que a gente mal tolera por não poder soltar nova bomba em Manhattan, e nos recolhemos ao mundo interior, o único que existe, logo sonha. O do interior, onde se refugiar a gente sonhava, também foi pro brejo, com inaugurarem a ponte mimimi-miami. Assim eu sigo sonhando verso, você segue sonhando reverso, versão de uma ordem mais justa. Outra vantagem comparativa é que a gente escorrega da cama e não precisa abrir os olhos. Quer maravilha maior? Não, não é sonambudismo, gracinha… é, é… creatinina.
Anônimo (c. 2023 d.C.)
Todo poema breve nasce anônimo. Batizado ou pagão, registrado ou resgatado, fragmento ou fingimento, ali não fala poeta, persona nenhuma. Ninguém. Ouve-se a voz, singular, a segredar conosco, que parece a nossa e não a reconhecemos – voz como que do fundo do tempo decantada, serpentina, de cujo feitiço tentamos em vão distinguir os elementos. Fala nossa mesma língua, dobra nosso mesmo acento, entreva nosso mesmo silêncio, e não atinamos com o que diz, estrangeiros na própria pátria. A gente se abala, o poema sibila.
Garoa
É bom recordar você, recordá-la até mesmo se desfazendo, se diluindo em cordas, em que tento me agarrar, exigindo descer cada vez mais fundo, mal se deixando apanhar no gesto, no riso, no olhar baixo de arcadas negras, subindo sabe deus pra que céu esquecido de onde de vez em quando você cai milagrosa que nem a extinta garoa da cidade e me topo então empatado, tapado, tapume, e caio de cama congestionado, quando faço à força de febre declarações mil que você não entende, nem eu, e rimos, quer dizer, você ri, eu morro de tossir em seus braços, expectoro, estertoro, todo torto, tão colado de seu colo, o coração na boca batendo, eu também tenho medo, mas abro a porta e bato as botas, com o vento encanado e a visão.
*Airton Paschoa é escritor. Autor, entre outros livros, de Polir chinelo (e-galáxia) [https://amzn.to/4at8YgM]
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