Por SAMUEL KILSZTAJN*
Os jovens das Jornadas de Junho de 2013 dignificam a condição humana, gente intemerata, nas palavras que Antonio Candido usou para se referir aos jovens das Jornadas de 1968
No Brasil, Dilma Rousseff assumiu a Presidência da República em janeiro de 2011, sob a legenda do Partido dos Trabalhadores – PT, no governo desde 2003. As Jornadas de Junho de 2013, como todas as irrupções, vieram quando e de onde ninguém esperava; e surpreendeu os políticos de todos os partidos, da esquerda à direita. As Jornadas de Junho tiveram como ponto de partida vários atos contra o aumento nas tarifas do transporte público, com início em 2012 em Natal, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Goiânia.
Em São Paulo, as manifestações, lideradas pelo Movimento Passe Livre – MPL, começaram a ganhar força em 6 de junho de 2013 (Fernando Haddad havia sido eleito prefeito em 2012 pelo PT com 56% dos votos válidos). O movimento, posicionado à esquerda do PT, foi reprimido pelas forças policiais; e a grande mídia e o PT manifestaram-se categoricamente contra os “baderneiros” (neste particular, vale lembrar que a esquerda universal só existe na cabeça da direita). O calor das Jornadas pode ser vivenciado no minidocumentário Vozes de junho de Carlos De Nicola.
Em 14 de junho, a grande mídia inverteu o discurso, passando a apoiar as manifestações (contra o governo petista) e a classe média engrossou o movimento nas ruas. A grande mídia e a classe média descobriram que tinham algo em comum com os baderneiros que se posicionavam à esquerda do PT, todos eram contra o governo petista. Por fim, depois que o movimento ganhou proporções de massa, o Partido dos Trabalhadores capitulou, revogando o aumento nas tarifas e se propondo a atender às reivindicações por melhoria nos transportes e nos demais serviços públicos.
Passados 50 anos, a classe média de direita voltava em bloco às ruas pela primeira vez desde a Marcha da Família com Deus pela Liberdade em 1964, que solicitara o afastamento de João Goulart da presidência do país e abriu espaço para a intervenção dos militares em um golpe de estado. Em 2013, a classe média de direita vivia prisioneira em residências de segurança máxima ou em condomínios fechados, frequentava shopping centers protegidos por segurança privada, não utilizaria transporte público nem que fosse de graça, nem o serviço público de saúde (que é gratuito), evitava pisar nas vias públicas, evitava qualquer coisa pública que, além de precária, lhe colocasse frente a frente a pobres, negros, feios, sujos e malvados.
A classe média de direita, que já fazia muito em dar emprego e ter que aturar a presença de suas domésticas negras semianalfabetas e demais serviçais, que ela fazia questão de que portassem uniformes com asseio, pretensamente saiu às ruas, espaço até então por ela considerado de uso exclusivo de mendigos e plebeus, para se manifestar em prol da revogação do aumento nas tarifas do transporte público e contra a repressão aos baderneiros.
Entretanto, o que mais incomodava a classe média de direita, encastelada em sua cultura do privilégio, era a presença da plebe em território exclusivo das elites do país, a exemplo dos aeroportos e das universidades públicas (agora sim, porque ensino de qualidade é muito caro). Aproveitando o movimento à esquerda do PT contra o governo petista, a classe média, encorajada pela grande mídia reacionária, além de líderes treinados por organizações internacionais de direita, descobriu, aprendeu a ir para as ruas, roubou a cena, ocupou o espaço e colocou o movimento à esquerda do PT para correr, de escanteio, para fora do campo. Além de bater panelas cotidianamente ao entardecer, sair às ruas portando camisetas com as cores da bandeira passou a ser o seu programa predileto para os finais de semana. Fora Dilma, fora PT, Lula na cadeia, porque lugar de ladrão é na cadeia, e o Lula quer mesmo roubar os privilégios da classe média brasileira, não quer?
As organizações da extrema direita, ao lado da grande mídia, dos parlamentares, das forças policiais e dos militares, demonizaram o Partido dos Trabalhadores como corrupto e Lula como presidiário, porque a corrupção teria que ser privilégio do PMDB e dos demais partidos, todos adeptos do já histórico expediente peemedebista de corrupção. E o povo brasileiro de boa índole não tolera corruptos, principalmente corruptos do PT, que não poderiam se rebaixar ao expediente dominante na política e na sociedade; além do que a grande mídia, de forma viesada, destacava a corrupção do PT.
O Partido dos Trabalhadores, no governo, se submeteu sim ao expediente dominante na política brasileira. O esquema de corrupção, aperfeiçoado pelo engenhoso político Orestes Quércia do PMDB, consiste em garantir tanto um “salário indireto” aos parlamentares, como fundos para as campanhas em prol da preservação dos partidos no poder. Um parlamentar que porventura se recusar a ser engraxado, estará atravancando a caixinha do respectivo partido. Assim, os políticos só se dignam a trabalhar se engraxados. Os parlamentares sequer se dignariam a ler qualquer emenda, proposta ou matéria se não fossem “devidamente” remunerados por isso. E, para o PT poder governar, ele necessariamente deveria se submeter ao expediente dominante na política nacional.
O esquema de corrupção do governo não se resume, evidentemente, ao mensalão dos parlamentares. Toda a máquina estatal é azeitada pelos empreiteiros e outras empresas favorecidas por gastos do executivo, que financiam os fundos dos partidos e os “salários indiretos” de ministros, secretários, funcionários públicos em cargos de confiança encarregados de assinarem ordens de pagamento, enfim de toda a estrutura governamental, do presidente aos contínuos. Se algum executivo muito orgulhoso de sua integridade se sentir melindrado e se recusar a dançar conforme a música, a própria máquina estatal se encarregará de descartá-lo como refugo desta eficiente linha de produção.
Na sequência do afastamento de Dilma Rousseff, as denúncias de corrupção que envolviam o Presidente Michel Temer, filiado ao PMDB, foram desconsideradas pelos parlamentares, porque o Brasil, àquela altura, não aguentaria mais um impeachment (e o objetivo principal, afastar o PT do poder, já havia sido alcançado). Lula foi preso de modo a inviabilizar a sua participação nas eleições de 2018 e não por ser corrupto (se fossem prender todos os políticos corruptos, não sobraria um).
Eliminada a concorrência de Lula nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos válidos. Na eleição de 2022, para derrotar Jair Bolsonaro, foi necessária a formação de uma ampla articulação em torno da candidatura Lula, que reuniu o PT, as lideranças das Jornadas de Junho, os demais partidos da esquerda e políticos que até então, à direita, faziam forte oposição ao Partido dos Trabalhadores, a exemplo de Geraldo Alckmin – e, mesmo assim, Lula venceu as eleições por pequena margem. Depois de quatro anos com Bolsonaro na presidência, em 8 de janeiro de 2023, a extrema direita, não contente com os resultados da eleição de 2022, resolveu ainda subir a rampa do governo federal na marra.
Embora a direita tenha se articulado e ganhado enorme espaço político no país, lideranças autênticas foram forjadas nas Jornadas de Junho. Politicamente, algo novo parece estar surgindo no horizonte. As Jornadas acordaram uma meninada à esquerda do PT, que se engajou no movimento da sociedade civil e hoje, dez anos depois, se faz presente em vários espaços nacionais. Estes jovens, que ocuparam as ruas, desafiando o governo e as forças policiais, vivenciaram o desprendimento, a liberdade, a alegria de viver e a solidariedade, “Todo mundo segura um no outro”, onde todos são vistos como iguais, andam de cabeça erguida e se olham nos olhos. Os jovens das Jornadas de Junho de 2013 dignificam a condição humana, gente intemerata, nas palavras que Antonio Candido usou para se referir aos jovens das Jornadas de 1968.
*Samuel Kilsztajn é Samuel Kilsztajn é professor titular da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Shulem, Returnees e Yiddish (https://amzn.to/3ZkegH7).
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