Gestão do SUS — o que fazer?

Imagem: Elīna Arāja
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Por FRANCISCO BATISTA JÚNIOR*

O modelo de atenção e o financiamento do nosso sistema universal de saúde, as relações público-privado na saúde, e as relações de trabalho no SUS

Mesmo levando em consideração a conquista histórica que significa o Sistema Único de Saúde (SUS) do nosso país, devemos ter muito claro as enormes dificuldades que significam a sua implementação dado a nossa história de tratamento do Estado com relações de fisiologismo, clientelismo, patrimonialismo, loteamento e privatização por grupos e corporações organizadas, como também de um financiamento insuficiente e equivocado e um modelo de atenção distorcido.

Assim, se por um lado temos um sistema com significativos avanços e que tem sido de uma importância incomensurável para toda a população brasileira, de outro há ainda gargalos que são produtos de toda essa nossa cultura e que necessitam de um tratamento correto e sintonizado com os princípios da Reforma Sanitária.

Neste artigo, dividido em três partes, faço considerações sobre aspectos estratégicos da gestão do SUS, derivadas de análises e reflexões que venho compartilhando com profissionais de saúde do SUS, em fóruns sindicais e espaços de elaboração política, como conferências e conselhos de saúde, realizados em diferentes regiões do Brasil. Nesta Parte 1, abordo o modelo de atenção e o financiamento do nosso sistema universal de saúde, as relações público-privado na saúde, as relações de trabalho no SUS. Na Parte 2 estarão contemplados temas relacionados com as formas de organização que vêm sendo propostas para o SUS, como a fundação “estatal” de direito privado, o serviço social autônomo e a empresa pública, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). Nessa parte analisarei também o caso dos hospitais federais do Rio de Janeiro. Concluo o artigo analisando, na Parte 3, os conflitos derivados do que propôs historicamente o movimento da Reforma Sanitária, a realidade atual da gestão do SUS e as alternativas legais e compatíveis com a Reforma Sanitária, para recolocar o SUS no caminho de onde não deveria ter sido desviado.

Segue a Parte 1. 

Modelo de atenção e financiamento

A nossa prática corrente tem sido do tratamento da doença em detrimento de ações que possibilitem a promoção efetiva da saúde. Quando analisamos o SUS, nos seus 34 anos, após a regulamentação pelas leis 8.080 e 8.142, percebemos que apesar de importantes avanços pontuais e de relevância e impacto no contexto socioepidemiológico, continuamos presos a uma lógica focada nos medicamentos, nos leitos hospitalares, medicocêntrica e mais recentemente nos exames de alto custo.

O descompromisso com uma efetiva e agressiva prática de promoção da saúde inclusive com ações intersetoriais perenes e coordenadas, tem significado a manutenção de um quadro típico de países miseráveis com incidência de moléstias que há muito não mais fazem parte do mundo civilizado, onde a dengue, tuberculose e outros são exemplos clássicos. Ao mesmo tempo, isso tem gerado também uma demanda cada vez mais crescente por tratamentos cada vez mais especializados e de custos cada vez mais elevados, colocando em xeque não só a capacidade de financiamento, mas o próprio sistema como um todo.

Não temos programas que possibilitem diagnóstico precoce e um acompanhamento racional e integral de diabetes, hipertensão, oftalmologia, saúde mental, assistência farmacêutica, oncologia, saúde bucal e outros e somos obrigados, em consequência, a arcar com os desumanos e insustentáveis tratamentos de hemodiálise, procedimentos cirúrgicos, transplantes, intoxicações e câncer, só para citar alguns.

Em função disso é também fundamental alterar a forma de financiamento global do sistema, superando a contraproducente lógica verticalizada e de pagamentos por procedimentos – que estimula a mercantilização e a corrupção – onde a tabela de procedimentos é o símbolo maior, passando-se a definir a proposta orçamentária de acordo com as necessidades de cada local referenciado, pactuando-se metas a serem atingidas e definindo os correspondentes e permanentes processos de acompanhamento e avaliação.

Para isso a extinção das famigeradas emendas parlamentares, poderoso instrumento de coerção, cooptação e clientelismo político eleitoreiro nunca sintonizadas com os Planos de Saúde e as reais e imediatas necessidades do Sistema e da população, é absolutamente fundamental.

Assim sendo, uma agressiva política de prevenção de doenças e promoção da saúde, de ações intersetoriais que contemplem as áreas de segurança, transporte, educação, emprego e renda e violência em suas mais variadas faces são fundamentais objetivando a construção de um novo modelo de saúde coerente e sintonizado com os ditames conceituais do nosso Sistema.

Concomitante e paralelamente, a estruturação da Atenção Básica em todos os municípios do país com a equipe multiprofissional plenamente valorizada, serviços de referência para atender a demanda por ações especializadas e uma rede pública regionalizada e hierarquizada propiciará as condições necessárias para alcançar a universalidade, integralidade e resolutividade desejadas.         

Relação público/ privado e principal x complementar

O Estado brasileiro sempre teve a prática recorrente de disponibilizar o serviço de saúde ao cliente através da contratação de terceiros, ao invés de estruturar a sua própria rede de serviços. Esse processo, que torna a saúde a exploração de um dos maiores negócios econômicos do país e que movimenta anualmente bilhões de reais, foi largamente intensificado durante o período de implantação do SUS. Isso se deveu ou porque a lógica de financiamento estabelecida via pagamento por procedimentos comprados tornava essa opção politicamente mais rentável e rápida, ou porque o gestor mantinha alguma relação direta com prestadores de serviços do setor privado, uma situação que sabemos bastante comum no Sistema.

Na medida em que o Poder Público desestruturava seus serviços especializados, criados no início do SUS, substituindo-os por serviços privados contratados, produzia o caldo de cultura e as condições necessárias para o estabelecimento e desenvolvimento da saúde suplementar que tem crescido em níveis bem acima do crescimento geral do país, beneficiada também pelo incremento da população.

Ao mesmo tempo e num processo de autoflagelação, o SUS estimula e drena seus recursos e profissionais especialistas para esse mesmo setor privado que se alavanca às suas custas, seja diretamente através do seu financiamento ou indiretamente por meio do estímulo a estruturação de serviços e da imunidade ou isenção tributária.

Esses trabalhadores especializados passaram então a dispor de um leque bem mais ampliado e variado de opções para seu exercício profissional e a terem outra rotina de trabalho baseada numa remuneração diferenciada, individualizada, mercantilizada e por procedimento realizado, e não mais na atividade laboral em jornadas com expedientes e plantões predeterminados.

Por essa razão esses profissionais têm ignorado, e a continuar a atual lógica continuarão sempre a ignorar o SUS, que será por eles utilizado exclusivamente como instrumento de formação e afirmação profissional e de rápido retorno financeiro. Por isso têm deixado refém o SUS e a população brasileira, se negando em muitos casos a prestar serviços de maneira formal e de acordo com as regras estabelecidas para a força de trabalho do Sistema.

Profissionais que deveriam se formar para servirem a população, optam por servirem-se dela. Preferem se organizar por meio de instrumentos de intermediação de mão de obra ou como Pessoa Jurídica para, através deles, auferirem remuneração bastante diferenciada e com frequência acima dos valores praticados pelo mercado. Um mercado diga-se, que o próprio SUS fomenta, estimula e alimenta.  

Dessa forma, dramaticamente, o SUS retroalimenta diretamente a carência de determinados profissionais na sua rede própria, enquanto se dispõe a financiar a remuneração de forma bastante diferenciada desses mesmos profissionais através dos serviços por eles prestados na rede privada contratada e conveniada.

Essa opção político/econômica/ideológica tornou a população brasileira dependente e em muitos casos totalmente refém do setor privado/contratado, principalmente nos serviços de referência e especializados.

Isso significa na prática o gestor admitir uma prestação de serviços que tem como norma o estabelecimento de um limite de procedimentos a ser disponibilizado pelo prestador, que por sua vez tem relação direta com a cada vez mais limitada capacidade de financiamento público. Numa lógica de mercado, portanto de um interminável debate de valores a serem praticados e honrados pelo ente público, e de um subfinanciamento que é a regra, a população é submetida a uma crise praticamente ininterrupta, traduzida no não-atendimento da demanda crescentemente reprimida (em função da conjunção perversa da falta de prevenção com os limites e tetos financeiros estabelecidos) e das constantes interrupções nos atendimentos, motivadas pela disputa de valores e de poder.

Portanto cumpre-nos e é lícito afirmar, que o crescimento do setor privado da saúde além dos limites da complementariedade estabelecidos pela Constituição Federal, é incompatível com a plena afirmação e consolidação do SUS. É impossível termos determinados profissionais à disposição do Sistema uma vez que eles preferirão sempre a relação mais cômoda e mercantilizada com o setor privado, bem como também jamais teremos orçamento suficiente para financiar a compra de serviços na insustentável lógica de mercado.  

Relações de trabalho

Com o processo de municipalização deflagrado a partir da década de 90, os estados da Federação e o Governo Federal praticaram uma política de absoluta desresponsabilização com a contratação e valorização dos trabalhadores para a rede SUS. Ao mesmo tempo, a “Reestruturação Produtiva” estimulou a precarização nas relações de trabalho através dos baixos salários, da multiplicação de gratificações e do culto à mercantilização e da múltipla militância, ou seja, o exercício do trabalho em vários locais e instituições, gerando a desvinculação profissional com o serviço.

Os municípios ficaram sobrecarregados com a tarefa de contratação dos trabalhadores e submetidos em consequência, a situações insustentáveis. Com as limitações financeiras e a lógica prevalente no plano federal, passaram a estabelecer relações de trabalho totalmente precarizadas como contratos temporários, cooperativas, código 7, terceirizados, Pessoa Jurídica e outros.

Em consequência do processo de mercantilização estabelecido, os gestores passaram a instituir remunerações diferenciadas para os trabalhadores em geral, num processo que promoveu desestímulo e falta de compromisso bastante razoável de parte considerável do corpo de profissionais.  

Ainda em consonância com a mercantilização instituída e com a demanda crescente pela especialização, os municípios ou foram obrigados ou simplesmente passaram a se submeter às exigências de corporações fortemente organizadas, principalmente em cooperativas.

Premidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal – no nosso entendimento flagrantemente inconstitucional em relação à saúde – ou mesmo por opção político/ideológica, como muitas vezes ficou evidenciado, gestores realizaram um vigoroso processo de terceirização na contratação dos trabalhadores.          

Por fim, também por opção político/ideológica e ferindo frontalmente os dispositivos constitucionais, foi deflagrado em todo o país o processo de privatização da Gestão e da Gerência dos serviços SUS, através das Organizações Sociais, OSCIPS, Fundações de Direito Privado, “Parceiros privados”, Serviços Sociais Autônomos, EBSERH e outras, que exercem seu papel com a mais ampla liberdade à revelia dos limites estabelecidos pela legislação da gestão direta bem como dos princípios do SUS.

Ressalte-se que a contratação de mão de obra através de “cooperativas” bem como a entrega de serviços públicos a administração de empresas privadas como Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros”, são apresentadas como formas legais de cumprimento da legislação do SUS no quesito referente à complementariedade privada.

Na verdade, o que acontece, se não for por má fé, é uma equivocada interpretação do Art. 24 da lei 8.080/90 que de forma absolutamente clara estabelece que “Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada”.  

É impossível entendermos a intermediação de mão de obra e a terceirização da administração dos serviços do próprio SUS, que dentre outras coisas burlam violentamente o dispositivo constitucional do concurso o público como única forma de acesso ao serviço público, como efetivos serviços assistenciais complementares.

De maneira insofismável, cooperativa de trabalhador é mão de obra, força de trabalho que deve ser contratado via concurso público, seleção pública provisória ou contratos temporários com prazo pré-determinado como manda a legislação. Organizações Sociais, OSCIPS e outros “parceiros privados” como administradores de bens públicos, são gerentes/gestores que precarizam a força de trabalho e não serviços assistenciais de saúde complementares disponibilizados no atendimento da população, disso não há dúvidas.

Sob esse aspecto, a mesma lei 8.080/90 estabelece nos seus artigos 17 e 18 a competência das direções estaduais e municipais do SUS de gerirem os serviços que estão sob sua esfera administrativa. Portanto, e é a lei orgânica do SUS que afirma isso, a gerência dos seus serviços não pode ser delegada a terceiros.

Temos então a conclusão de que, através de um processo pensado, coordenado e elaborado politicamente, o SUS foi paulatinamente desconstruído, sua legislação fartamente solapada e seus princípios violentamente desrespeitados, sempre com o discurso fácil e oportunista da necessidade de vencer a burocracia e de dar respostas rápidas e imediatas a população que diziam e dizem, “não pode esperar”.

Na verdade, o que aconteceu de fato como sempre afirmamos e hoje constatamos com sobras, é que foi colocado em prática um projeto de transferência dos recursos financeiros e do patrimônio do SUS para grupos políticos e econômicos e corporações privadas, de acordo com a nossa cultura e a nossa história. Como resultado prático, e de concreto, temos o fato da quase totalidade dos casos de corrupção denunciados, apurados e comprovados no SUS acontecer exatamente nos contratos de terceirização com Organizações Sociais, OSCIPs e os ditos “parceiros privados” em geral.

Tudo ocorreu diga-se, sob um assustador, constrangedor, vergonhoso e comprometedor silêncio daqueles que tinham dentre outras, a tarefa de fiscalizar e acompanhar o sistema, zelando pelo respeito à legislação e às normas, particularmente o Ministério da Saúde, Ministério Público e o Poder Judiciário.

A contratação de Organizações Sociais, OSCIPs e congêneres, assim como das “cooperativas” violentam os princípios constitucionais da legalidade, moralidade e impessoalidade, solapam o instrumento jurídico do concurso público como única forma de acesso ao serviço público, destratam as leis de licitação e de Responsabilidade Fiscal dentre outras e, mesmo assim, têm tido a conivência de vários Tribunais de Justiça pelo país a fora.

 Em 1988 o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democrático Trabalhista entraram no Supremo Tribunal Federal com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a Lei 9.673/1998 — das Organizações Sociais – e o inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/1993 — Lei das Licitações. Apresentando como relator Ayres Britto, teve sua tramitação iniciada em 1998 e foi suspensa em 19 de maio de 2011, em razão de um pedido de vistas de Marco Aurélio Mello.    

 Durante esse período de 13 longos anos, o processo de desconstrução do SUS e de consolidação das OS avançou em todo o país em governos dos mais variados matizes ideológicos. Afinal, diziam os gestores públicos, enquanto o Supremo Tribunal Federal não se manifestava em contrário, não poderiam ser acusados de estarem cometendo ilicitudes.    

Por outro lado, o Ministério da Saúde financiava diretamente ano após ano, a contratação de serviços privados em substituição à rede pública – invertendo o ditame constitucional da complementariedade privada e, portanto, descumprindo a lei – bem como a entrega de serviços públicos para a administração por empresas privadas.

Esse movimento pode ser interpretado como opção política, o que significou um grande equívoco tático e estratégico e desrespeito às decisões soberanas das Conferências e dos Conselhos de Saúde, e graves omissão e conivência com a ilegalidade.  

A referida ADI só veio a ter seu desenlace definitivo em 2015, com o STF declarando as Organizações Sociais “parcialmente constitucionais”, desconsiderando todas as violências legais que encerram seus contratos, particularmente o acesso de servidores no serviço público sem concurso público e a desobrigando do cumprimento da lei das licitações quando da aquisição de bens e insumos.

Importante frisar que entre 1998, quando protocolou a ADI, e 2015 quando o STF se manifestou definitivamente, o Partido dos Trabalhadores mudou de posição, todos os seus governos aderiram ao processo de desconstrução conceitual do SUS e o governo Dilma se empenhou através do Advogado Geral da União para que as Organizações Sociais fossem declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

A verdade é que o SUS foi transformado no maior balcão de negócios envolvendo a coisa pública no nosso país, negócios privilegiados, com financiamento garantido e sem qualquer risco como são os casos dos contratos com Organizações Sociais, OSCIP, terceirizações em geral e outros “parceiros privados”. A cada novo prefeito ou governante que se elege, uma total e absurda rotatividade dos trabalhadores tem sido a regra de acordo com os interesses econômicos e políticos dos atores envolvidos.   

Os milhares de pessoas que hoje sofrem nas filas de espera por um procedimento que nem sempre é tão especializado assim, são vítimas desse irresponsável e ilegal processo de privatização do sistema que, está provado, é estatística, matemática e economicamente, absolutamente impossível de ser financiado em sua plenitude.

Aliás, e exatamente em função da inviabilidade de submeter a saúde à lógica de mercado, é que nos últimos anos e em consequência da demanda que cresceu significativamente, mesmo os Planos de Saúde, que diferentemente do SUS, sabemos bem, não se pautam pela universalidade nem pela integralidade no atendimento, estão enfrentando grandes dificuldades em arcar com as suas responsabilidades, aumentando em consequência cada vez mais os valores cobrados pelas mensalidades sempre acima dos índices de inflação e as exigências feitas aos seus segurados. De outro lado, com o crescimento da demanda, do SUS na lógica de mercado e da saúde privada, a saúde representa hoje o terceiro mais poderoso setor da economia sendo superada apenas pelo ramo da energia e pelo sistema financeiro. Ou seja, com o SUS na lógica de mercado a saúde se tornou uma das maiores áreas de negócios no Brasil.   

Óbvio que num quadro como esse, o Sistema Único de Saúde fica mortalmente ferido em pilares fundamentais, seu financiamento, sua força de trabalho e sua gestão, necessitando, portanto, de alterações que promovam a devida correção de rota.

*Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte. Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).


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