Governamentabilidade hoje

Imagem: Marian Kroell
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GUSTAVO FELIPE OLESKO*

Reflexões sobre a extrema-direita a partir do conceito de Michel Foucault

Michel Foucault foi um filósofo que produziu e ainda produz os sentimentos mais distintos: do desdém total a sua obra, tratando de seu pós-estruturalismo (ou pós-modernidade a partir dos críticos) como uma vertente filosófica a serviço do capital até a paixões cegas, que deixam de lado a ciência e transformam intelectuais em aplicadores de teorias na realidade a fórceps. A obra de Foucault é relativamente grande e sua influencia no mundo acadêmico não pode ser descartada, ainda que com as devidas críticas. Sendo assim, analisar seu conceito de governamentabilidade é importante também para aqueles que utilizam do materialismo dialético e do materialismo histórico para suas críticas, produção do conhecimento e modificação da realidade. Um erro cada vez mais presente dentro do marxismo é ignorar qualquer análise que venha de fora de sua matriz filosófica, metodológica e política, por vezes pensadores são ignorados por sua inserção dentro de vertentes do próprio marxismo.

Sendo assim, a defesa feita é a de deixarmos de lado preconceitos e pressupostos teóricos, filosóficos e até mesmo morais e adentrar em temas explorados também por outros pensadores com outros métodos e perspectivas. Cabe o destaque de que Marx não estudou somente socialistas e demais críticos do capitalismo como Lassale, Fourier, Saint-Simon, Proudhon e os “hegelianos de esquerda”. Muito pelo contrário, seus trabalhos mais magistrais são críticas pesadas em cima de obras de pensadores como Smith, Ricardo, Hegel, os quais também foram muito importantes na própria construção de conceitos e temáticas analisadas. Sem Smith e Ricardo, só para ficar na superfície do debate, não existiria toda a análise de Marx sobre a Renda da terra, sem Hegel sequer existiria o método materialista dialético e o materialismo histórico.

Com essa introdução, resgatar o que Foucault escreveu acerca da governamentabilidade[i] é de importância central no mundo que se ergue neste, ainda breve, mas já sanguinolento século XXI. Sendo assim, o pensador francês fez todo um exame da modificação ao largo da história do funcionamento e padrão da maneira de governar. É em sua genealogia, o retorno ao passado, esmiuçando o desenrolar das formas de governo, que Foucault auxilia a entender os câmbios que ocorreram em sua maneira mais crua: o controle dos corpos.

Ao retornar ao Príncipe, de Maquiavel, tem-se claramente em vista que a maneira de controlar o povo era via o soberano. Este era visto como um ser que transcende aqueles que governa, estando acima dos tratados jurídicos e morais. Cabia ao soberano governar com violência algo que lhe era exterior: o povo e seu principado. A relação entre o povo e o soberano é, portanto, frágil. As ações do soberano estão direcionadas ao mantenimento do bem-estar da sua unidade política. Portanto, não há uma troca, uma contrapartida, para os de baixo desde o poder aplicado de cima, desde o cabeça do Estado.

Agora Foucault percebe a lenta mudança que ocorre ao largo do desenvolvimento do Estado Moderno. Há uma descentralização da governamentabilidade, dividindo-a em três esferas: o governo de si, a moral; o governo da família, a economia; e o governo do Estado, a política. É a transformação de uma maneira de governar que passa, lentamente, a lidar com o povo como coisas.

Contudo, existe um objetivo na arte de governar do soberano. É o bem comum, a salvação de todos, através da aplicação de uma lógica divina, a razão cristã e a moral, igualmente, cristã.

A partir do Estado Moderno, forjado a sangue e fogo, que toma corpo a noção de razão Estatal, de Maquiavel. O monopólio da violência por parte do Estado, de Hobbes assume centralidade em detrimento da violência descentralizada. A divisão dos poderes, defendida por Montesquieu, recorta a unicidade do soberano como ser supremo. E, por fim, o contrato social, de Rousseau, toma forma nas constituições, dando uma contrapartida ao povo.

Some-se a isso tudo a unificação territorial, centralização do poder, criação de uma burocracia estatal (não mais da realeza, subserviente a certo soberano e sua dinastia), o exército profissional, a unificação da ordem legal e dos impostos, além da unificação forçada do povo através da ideia de nação e temos então o Estado-Nação Moderno. Não há mais a lei divina, ensina Foucault, mas sim a lei humana, a lei do Estado, que se transmuta para a realidade através de mecanismos cada vez mais autônomos.

Mas onde o materialismo dialético de Marx entra nisso tudo? Foucault acreditava que esse desenvolvimento era constante e chegaria em breve a um estágio onde a sociedade, a população, seria autorregulada como num grande panóptico. As redes sociais são, de certo modo, um grande irmão onde todos vigiam todos, todos mostram tudo para todos de maneira “voluntária” e tem assim seus desejos e preferencias transformados em mercadorias. Contudo, o que explicaria figuras como o atual presidente do Brasil, Trump, Modi, Orban, Johnson, Kaczynski ascenderem ao poder justamente com discursos críticos a tais medidas? É neste ponto que analisar a governamentabilidade por e partir da crítica da economia política e da luta de classes é importante.

As figuras acima representadas, acrescidas de outras como Putin e Erdogan, são justamente o contrário do Estado Moderno. Desdenham a burocracia estatal, não criam grandes contrapartidas de Estado para o povo, desdenham a divisão dos poderes, combatem o discurso liberal (o famoso liberalismo nos costumes) e ao mesmo tempo oferecem uma gama de discursos que conclamam a um passado glorioso, a inimigos máximos e a grandes possibilidades futuras. É o ideário fascista em sua expressão mais crua, mas este é um movimento mais recente, por isso a alcunha neofascismo. Não é o mesmo fascismo dos anos 1920-30. É um fascismo que, tal como o original, segue o padrão de um grande líder. Contudo, sem o aparato estatal.

Hitler foi o que foi graças a uma conjunção de fatos e agentes sociais que contavam com um partido muito bem estruturado. Mussolini idem. O “fascismo” japonês contava com um militarismo muito bem estruturado faziam quase 50 anos. Não era somente o grande líder, mas todo um aparato cultural, político, social, econômico e territorial tramado e respaldado por parte significativa da população. Mas, e agora?

Neste breve século XXI vemos um retorno atualizado do que escreveu Maquiavel. Os líderes são desprovidos de grandes aparatos estatais e apoios importantes dentro do establishment. Ascendem ao poder como outsiders, como messias dentro de um suposto mar de lama. São os maiores defensores do capitalismo, mas que são eleitos justamente criticando os produtos nefastos do modo de produção dominante.

A grande modificação é que, diferente do soberano que era externo, exterior, estranho ao povo no Estado absolutista, o novo soberano neofascista (ou populista de direita ou autocrático, como queiram) elenca justamente o inverso. Ele se apresenta como a representação máxima do povo: um mito que leva consigo todas as ditas características mais rudimentares de sua população como o ultranacionalismo, truculência, machismo, racismo, anticomunismo, homofobia, etc. Há uma mítica conexão direta com o governante. Não se é mais “fiel” a constituição, ao partido, a classe, mas sim a um único sujeito que está no poder. Assim foi com Trump e assim é com outros citados, em maior ou menor medida.

O que produziu tal coisa? Foi o neoliberalismo e sua concentração de renda brutal que produziu um asco de boa parte da população para com o Estado Moderno. A Burocracia é então pintada como um câncer, pois está tomada de comunistas e corrupção, e não por ser obrigada a servir aos ditames do capital. O poder judiciário é podre, pois defende os direitos humanos e dão guarida a “vagabundo”, não porque é ferramenta da classe burguesa; o Estado perpetua o “vagabundo” por meio de assistencialismo, pois é comunista, e não porque o neoliberalismo produz uma massa pobre que sem intervenção do Estado iria morrer de fome (ou fazer a revolução). Logo, temos nessas figuras caricatas aquilo que Marx[ii] tratou de Luís Bonaparte: uma massa lumpen que segue um líder tosco. Mas hoje com uma nova roupagem, que entende novamente que a economia depende de cada família, a moral (cristã, evidentemente) de cada uma das pessoas e a política ao governante iluminado salvador da pátria.

Várias ações por parte do governo demonstram medidas que são um movimento de uma nova governamentabilidade, algumas são exemplares. A primeira e mais visível aos olhos de todos é o aparelhamento do Estado em todas as esferas. A burocracia brasileira sempre teve sérios problemas, sendo muitas vezes obrigada a servir de massa de manobra para os grupos políticos no poder, contudo, isso era realizado de maneira velada e sempre encoberta. Hoje não mais. É incentivada a sanha contra qualquer funcionário público que não seja bovino e um elo da gigantesca engrenagem de fake news, seja pela população ou por colegas que se identificam com tal medida. Como Pericás relatou aqui mesmo no A Terra é Redonda, o que se vê é a ascensão de uma tropa tosca, uma regressão cognitiva, intelectual e moral dentro da burocracia estatal, elevando a cargos de chefia e comando figuras que antes estariam escanteadas.

Outra medida polêmica que vem ao encontro dessa nova governamentabilidade de quebra do Estado Moderno burocrático e liberal é a morte por inanição do IBGE e a inviabilidade do Censo. O orçamento do Censo de 2020, aprovado em 2018 era de 3,2 bi de reais e hoje, em 2021, segue sendo drenado, chegando a 2,3 bi. Somente a título de comparação, esses 3,2bi de reais hoje seriam equivalentes a 4,6 bi. Esses 2,3bi  de hoje são equivalentes aos 3,2bi de 2018 (valores corrigidos a partir IGP-M, disponível na calculadora do cidadão no site do BC). Vale relembrar que a Estatística é a ciência do Estado! Foi criada justamente para quantificar a população e melhor planejar, controlar e antever medidas futuras que o Estado deve tomar em relação aos seus cidadãos. Novamente Foucault nos ensina que isso se deu justamente com a unificação alemã em 1871 e todas as medidas de Bismarck afim de evitar revoluções e melhor gerir os alemães. Nota-se então que temos uma dupla regressão. Se a passagem de povo para população foi traumática, uma vez que deixava de lado as diferenças e buscava padronizar e coisificar os cidadãos, o retorno para a categoria povo é igualmente ruim: na atualidade brasileira é a passagem da realidade material para a metafísica pura. A quebra do censo, a burocracia fraturada e até mesmo as novas medidas de contagem de mortos da pandemia visam criar falsidades oficiais.

Porém, realmente o governo brasileiro quer essa regressão com o intuito de modificar a estrutura do Estado? Muito provavelmente não. A figura do ministro da economia deixa isso bem claro. É nada mais que a aplicação pesada da cartilha ultraliberal de privatização total do país, um Chile de Pinochet 2.0, contudo agora com traços messiânicos, não mais de um cientificismo puro apoiado por um grupo militar coeso por detrás (vide as demissões da última semana). Grespan ao tratar da obra de Marx indiretamente auxilia na compreensão do desenrolar das medidas brasileiras. A produção de um governo que faz parte da população crer existir uma conexão intima entre o presidente e estes é uma fábula. O presidente é um títere do mercado, que tem sua apresentação, darstellung, ligada a negação de tudo que realmente faz. Ou seja, ainda em Grespan[iii], o presidente se apresenta como uma coisa, mas essa coisa é somente uma representação, vorstellung, uma forma vazia de conteúdo real, eine form, die keinen wirklichen Inhalt hat. Se forma é conteúdo sedimentado, o conteúdo real da presidência é vazio, é metafísico, só existe no discurso e funciona como mecanismo para manter justamente o que nega: o ultraliberalismo em seu estado mais puro.

*Gustavo Felipe Olesko é doutor em Geografia Humana pela USP.

Notas


[i] Em todo o texto e todas as citações de Foucault estão presentes em FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[ii] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

[iii] Grespan, Jorge. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Alexandre de Freitas Barbosa Armando Boito André Singer Atilio A. Boron José Luís Fiori Tarso Genro Marcelo Guimarães Lima Afrânio Catani Eliziário Andrade Marcos Aurélio da Silva Michael Roberts Annateresa Fabris Claudio Katz José Micaelson Lacerda Morais Ricardo Musse Jorge Branco Gilberto Lopes Luiz Marques José Machado Moita Neto Paulo Sérgio Pinheiro Francisco Fernandes Ladeira Michel Goulart da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Paulo Fernandes Silveira Daniel Costa Slavoj Žižek Jorge Luiz Souto Maior João Carlos Loebens Marcos Silva Osvaldo Coggiola Luis Felipe Miguel Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fábio Konder Comparato Eugênio Bucci Valerio Arcary Thomas Piketty Jean Pierre Chauvin Matheus Silveira de Souza Yuri Martins-Fontes Jean Marc Von Der Weid Priscila Figueiredo Vanderlei Tenório Luiz Eduardo Soares Anselm Jappe João Paulo Ayub Fonseca Remy José Fontana Sandra Bitencourt Celso Favaretto João Feres Júnior Airton Paschoa Gilberto Maringoni Dennis Oliveira Eleutério F. S. Prado Manuel Domingos Neto Plínio de Arruda Sampaio Jr. Andrés del Río Eleonora Albano Berenice Bento Eduardo Borges Igor Felippe Santos Renato Dagnino Antonino Infranca Heraldo Campos Marcus Ianoni Samuel Kilsztajn Francisco de Oliveira Barros Júnior Ronald Rocha Benicio Viero Schmidt Ronald León Núñez Flávio R. Kothe Liszt Vieira Luiz Bernardo Pericás Celso Frederico Maria Rita Kehl Antonio Martins Eugênio Trivinho Ladislau Dowbor Marilia Pacheco Fiorillo José Geraldo Couto Carla Teixeira Vladimir Safatle Carlos Tautz Marjorie C. Marona Érico Andrade Boaventura de Sousa Santos Henry Burnett Leonardo Sacramento Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Juarez Guimarães Luiz Renato Martins Marcelo Módolo Tales Ab'Sáber Paulo Martins Alexandre Aragão de Albuquerque Denilson Cordeiro Andrew Korybko Julian Rodrigues Francisco Pereira de Farias João Sette Whitaker Ferreira Paulo Capel Narvai Rubens Pinto Lyra João Adolfo Hansen Chico Whitaker Ricardo Antunes Lincoln Secco Rodrigo de Faria Tadeu Valadares Luiz Roberto Alves Luiz Werneck Vianna Lorenzo Vitral Luciano Nascimento Ronaldo Tadeu de Souza Dênis de Moraes Ricardo Abramovay Lucas Fiaschetti Estevez João Carlos Salles Leonardo Avritzer João Lanari Bo Otaviano Helene Vinício Carrilho Martinez Paulo Nogueira Batista Jr José Dirceu Caio Bugiato Marilena Chauí Ricardo Fabbrini Elias Jabbour Henri Acselrad Fernando Nogueira da Costa Sergio Amadeu da Silveira Michael Löwy Luís Fernando Vitagliano Bento Prado Jr. Kátia Gerab Baggio Fernão Pessoa Ramos Gerson Almeida Ari Marcelo Solon Antônio Sales Rios Neto Bernardo Ricupero Daniel Brazil Gabriel Cohn Walnice Nogueira Galvão Rafael R. Ioris Valerio Arcary Everaldo de Oliveira Andrade Bruno Machado Milton Pinheiro Alysson Leandro Mascaro Salem Nasser Manchetômetro José Raimundo Trindade Leda Maria Paulani Mário Maestri Alexandre de Lima Castro Tranjan Leonardo Boff André Márcio Neves Soares Daniel Afonso da Silva Mariarosaria Fabris Flávio Aguiar Chico Alencar

NOVAS PUBLICAÇÕES