Por CELSO FREDERICO*
O marxista italiano desenvolveu uma concepção política de ideologia, pensando-a como o espaço em que os homens tomam consciência dos conflitos sociais e travam suas lutas
Terry Eagleton assinalou que na obra de Marx há três concepções distintas de ideologia: uma epistemológica outra ontológica e uma terceira política. (EAGLETON: 1977). Os herdeiros de Marx se dividiram em função dessas concepções.
Althusser, por exemplo, apoia-se na Ideologia alemã para defender a visão epistemológica: a ideologia como falsa consciência. Adorno, por sua vez, parte de O capital para defender a perspectiva ontológica: ideologia é a própria sociedade entregue ao fetichismo da mercadoria. Gramsci, finalmente, apoia-se no Prefácio de 1857 da Contribuição à crítica da economia política para desenvolver uma concepção política: a ideologia como o espaço em que os homens tomam consciência dos conflitos sociais e travam suas lutas.
Gramsci não pôde conhecer A ideologia alemã, só publicada em 1932, obra de referência em Althusser; quanto a O capital fez, de memória, referências localizadas – em especial, à “lei da queda tendencial da taxa de lucro” que lhe serviu de amparo para criticar o determinismo, mas não deu maior importância ao capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, ponto de partida da reflexão de Adorno.
A referência central de Gramsci para tratar o tema da ideologia é o Prefácio de 1857. Nesse texto, Marx afirma que as revoluções sociais decorrem da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção e, também, que os homens tomam consciência daquela contradição na superestrutura ou, em suas palavras, nas formas “jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito, levando-o às últimas consequências” (MARX: 1977, p. 25.). Sendo assim, diz Gramsci, a ideologia não é reflexo mecânico da base material, como quer Bukhárin, e nem “aparência e ilusão”, como afirma Croce – autores a quem Gramsci dirigiu críticas minuciosas.
Contrapondo-se a esses autores, entende a ideologia como “uma realidade objetiva e operante”, “um instrumento de ação política”. Essa concepção positiva de ideologia, como se pode ver, diferencia-se radicalmente da interpretação althusseriana que a vê como representação da “relação imaginária” dos indivíduos com suas condições reais de existência; e distancia-se igualmente da visão homogeneizadora de Adorno.
Alguns autores, como Guido Liguori, assinalam um distanciamento entre Gramsci e Marx no entendimento do fenômeno ideológico: por não conhecer a Ideologia alemã, Gramsci teria incorrido numa contradição: construiu uma concepção positiva da ideologia, enquanto em Marx ela é compreendida em chave negativa, como visão distorcida da realidade (LIGUORI: 2010, p. 139). Essa afirmação pressupõe erroneamente a existência plenamente explicitada no texto de Marx de uma teoria já concluída da ideologia. Mas, como o próprio título indica, a Ideologia alemã critica uma forma especial de ideologia: aquela presente nos textos dos jovens hegelianos que, em seu idealismo especulativo, invertiam as relações entre a realidade e o pensamento. A referência à ideologia, entendida como “câmara escura”, é uma generalização feita a partir de um alvo bem definido (os jovens hegelianos). Depois, nas obras maduras, a ideologia passou a ser pensada num registro positivo como uma esfera do modo de produção.
A concepção positiva de ideologia levou Gramsci a reportar-se às passagens em que Marx fala da “solidez das crenças populares” e das ideias que, quando incorporadas pelas massas, tornam-se uma força material: “A análise dessas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais” (Cadernos do cárcere 1, 238, doravante CC).
Por isso, a ideologia tem um substrato material – não é reflexo (como afirma o diamat) e nem aparência (como é compreendida por Croce). Assim pensando, Gramsci volta-se para o estudo da estrutura material que as diversas classes criam para manter e difundir a ideologia. Os indivíduos não estão soltos na sociedade: “ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entendam organização e partido num sentido amplo, não formal”, pois sofrem a influência do “aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população”. (CC, 3, 253). As ideias de um indivíduo, portanto, “não “nascem” espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão de persuasão”. Esta última observação foi feita a propósito de um artigo escrito por um autor fascista que criticara a democracia e o sufrágio popular, argumentando que esse regime iguala o voto de qualquer “imbecil” com aqueles que se dedicam ao Estado e à Nação. Gramsci afirma contrariamente que a opinião de cada eleitor não é “exatamente” igual a de outros. Os números tem apenas um valor instrumental e nos dão apenas uma indicação. Mas, o que efetivamente os números medem? Gramsci responde: “exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas, etc., etc.” (CC, 3, 82).
Aqui é preciso ter cuidado para não confundir os termos e identificar ideologia com aparelho hegemônico. Este, “cria um novo terreno ideológico” (CC, 1, 320), mas não a própria ideologia, como é pensada pela sociologia positivista (Durkheim) e pelo estruturalismo (Althusser). A ideologia não é um dado prévio cristalizado nas instituições ou nos aparelhos, mas o produto dinâmico das relações sociais. O determinante é a base material historicamente compreendida e não a ideologia ontologizada que supostamente integra coercitivamente os indivíduos nas instituições sociais ou, então, numa esfera estrutural misteriosa que interpela os indivíduos e, assim fazendo, transforma-os em “assujeitados” sujeitos. Gramsci, convém lembrar, fala em estrutura ideológica e não na ideologia como estrutura.
Já os aparelhos de hegemonia somam-se aos aparelhos coercitivos na concepção gramsciana de Estado. Até então os marxistas concentraram-se unilateralmente na função coercitiva do Estado, o que seria, segundo o nosso autor, uma característica do “Oriente”. Para as sociedades mais complexas, Gramsci desenvolveu a teoria do “Estado integral” (ou “Estado ampliado”, como foi popularizado por Christinne Buci-Glucksmann), em que vigora a unidade-distinção da sociedade civil com a sociedade política.
A inspiração veio da Filosofia do direito de Hegel que narra, como se fosse um silogismo lógico, o desenvolvimento de um conceito geral (a vontade), em seus três momentos: família, sociedade civil e, finalmente, Estado político. Como um universal, o Estado é o momento de conciliação dos interesses privados que dilaceravam a sociedade civil. Para realizar esta reunificação, foi necessário um movimento de mão dupla. O Estado, para integrar a sociedade civil, formou um aparato que inclui as assembleias, câmaras, aparelho jurídico e policial, etc. Do outro lado, a sociedade civil fez-se presente no Estado através dos partidos e associações que agrupam o que há de comum nos interesses até então dispersos para, assim, se integrarem na universalidade representada pelo Estado.
É justamente este segundo movimento que interessou a Gramsci. Partidos e associações são vistos por Hegel como a “trama privada” do Estado. Este, portanto, utiliza-se desses órgãos privados para manter e “educar” o consenso. Mas a concepção de associação em Hegel, devido às condições sociais de seu tempo, era ainda “vaga e primitiva”, tendo como exemplo acabado de organização as corporações herdadas do feudalismo. Em Marx, essa concepção ainda permanece restrita, incluindo apenas a “organização profissional, clubes jacobinos, conspirações secretas de pequenos grupos, organização jornalística” (CC, 3, 119).
Nas sociedades ocidentais modernas, a sociedade civil tornou-se mais complexa ao conviver com partidos políticos organizados, sindicatos fortes, meios de comunicação poderosos (a grande imprensa e o nascente rádio). A disputa pela hegemonia ganha agora nova relevância e o Estado ampliado transforma-se num terreno do conflito de classe, da disputa pela hegemonia travada nas instituições que divulgam a ideologia.
Em direção contrária, o Estado vai fazer-se presente na sociedade civil ao interferir na economia. Esse movimento de mão dupla, por sua vez, embaralha as relações entre a base e as superestruturas. Em Americanismo e fordismo Gramsci já havia observado a característica básica da sociedade “racionalizada”: “a “estrutura” domina mais imediatamente as superestruturas e estas são “racionalizadas” (simplificadas e reduzidas em número)” (CC, 4, 248).
Gramsci dedicou-se intensamente a analisar os dois aparelhos de hegemonia que lhe pareciam os mais importantes em sua época: os jornais e a escola. A imprensa, como a “parte mais dinâmica”, foi objeto de permanente atenção. Antes de ser preso, Gramsci trabalhou como jornalista na imprensa dos partidos socialista e comunista, escrevendo sobre os mais diversos temas. Em uma carta à cunhada, lembrou que “em dez anos de jornalismo escrevi linhas suficientes para encher quinze ou vinte volumes de quatrocentas páginas” (Cartas do cárcere, II, 83, doravante Cartas). Os inúmeros comentários reunidos no segundo volume dos Cadernos do cárcere mostram o nosso autor acompanhando febrilmente a cobertura realizada por jornais e revistas, bem como propondo para a imprensa partidária a sua concepção de jornalismo integral voltado para a informação e formação do público.
A mesma atenção foi dispensada à escola. Da experiência dos conselhos operários de Turin e dos desdobramentos da reflexão empreendida em Americanismo e fordismo, Gramsci conservou a necessidade de uma nova escola (a escola unitária) para criar o novo intelectual que, à semelhança do que ocorre na indústria moderna, possa integrar trabalho e conhecimento. Mas agora, a antiga visão obreirista que pressupunha a ruptura radical (destruição) do velho aparato escolar após a revolução por outro totalmente diferente, cedeu lugar a uma concepção afinada com a tese marxiana da herança cultural e da luta, ainda no interior da sociedade burguesa, pela transformação do velho aparelho ideológico. Trata-se, portanto, de reformar progressivamente a antiga instituição pedagógica como parte integrante do projeto de construção de uma nova hegemonia.
É importante lembrar aqui a crescente complexidade da educação no mundo desde a desintegração do feudalismo. O desenvolvimento da indústria e da ciência foi criando continuamente novas especializações. A laicização do Estado, por sua vez, tirou da igreja católica o “monopólio das superestruturas”. Os padres, os “intelectuais orgânicos” do mundo feudal, tiveram a sua atividade restrita às escolas confessionais em franca inferioridade com o ensino público. A escola, assim, passou a ser um dos cenários da luta ideológica: desligou-se da igreja e progressivamente foi conquistando sua autonomia em relação ao Estado. Aqui, novamente, encontramos uma diferenciação em relação a Althusser, autor que enfaticamente defende uma estratégia política de lutas preferencialmente fora das instituições, pois estas estariam irremediavelmente a serviço da disseminação da ideologia burguesa.
A materialidade da ideologia, que se faz presente na imprensa e na escola, foi uma das fontes da teoria althusseriana dos “aparelhos ideológicos do Estado”. Em Gramsci, ela é o caminho para se pensar o tema central de sua obra: a hegemonia. É a hegemonia o “ordenador da ideologia, que empresta o cimento mais íntimo à sociedade civil e, portanto, ao Estado” (CC, 1, 375). Fator de coesão (cimento), a ideologia é a fonte de uma vontade coletiva, de uma concepção do mundo, de um movimento cultural: “Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma “religião”, uma “fé”, ou seja, que produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja contida como “premissa” teórica implícita (uma “ideologia”, pode-se dizer, desde que se dê ao termo “ideologia” o significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas) – isto é, o problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia” (CC, 1, 98-9).
Mas este não é o único significado de ideologia que aparece nos Cadernos do cárcere. Gramsci fala também na existência, ao lado de uma “ideologia necessária” e “orgânica”, de uma ideologia que é “pura elucubração arbitrária de determinados indivíduos” e, também, de uma ideologia difusa: as “historicamente orgânicas, isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalísticas, “voluntaristas”. Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade “psicológica”: elas “organizam” as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. Enquanto são “arbitrárias”, não criam mais do que “movimentos” individuais, polêmicas, etc.” (CC, 1, 237).
Observe-se que essa divisão foi criticada por Lukács que não aceita o caráter individual da ideologia e que defende, num registro parecido ao de Gramsci, a visão positiva do conceito. Não obstante, ideologia para ambos não é falsa consciência. Por isso, o critério para compreendê-la não é gnosiológico, mas político: no interior do ser social, ela cumpre a função de, como diz Lukács, “dirimir os conflitos sociais”.
Essa diferenciação entre ideologias necessárias e arbitrárias serviu para Gramsci enfocar diversos temas: as classes residuais ou ainda não conscientes de si, determinadas formas do pensamento filosófico, as artes, a produção literária, a crítica literária, as questões da linguística, o fordismo e o americanismo, etc. A preocupação em atentar para a unidade-diferenciação dos conceitos pressupõe sua historicidade e seu inter-relacionamento no interior da totalidade social. Um indivíduo, por exemplo, pode desenvolver uma visão do mundo híbrida, que recolhe fragmentos ideológicos da visão de mundo de outras classes sociais. Isto se deve ao fato de que as classes não vivem em compartimentos estanques, que elas se inter-relacionam e estão em permanente movimento. Exemplos dessa mescla reaparecem nos comentários sobre folclore (“fragmentos indigestos” é a expressão usada para assinalar a ambiguidade ideológica) e a cultura popular (que toma de “empréstimo” e reproduz conteúdos de outras classes).
As questões relativas à linguagem e à gramática estão também intimamente relacionadas com as concepções de mundo. Gramsci em sua juventude pretendia ser linguista e nunca deixou de se preocupar com o assunto, de resto, sempre presente em seu país. Na Itália, os diversos dialetos regionais conviviam com a língua oficial imposta e, por isso, desde a reunificação linguística era objeto de discussão. Paralelamente, Gramsci acompanhava as discussões travadas na Rússia. A ascensão de Stalin trouxe uma modificação do Estado em relação aos dialetos regionais. Somente em 1950, a nova orientação aparece claramente expressa no texto Sobre o marxismo na linguística. Interessado em afirmar “a existência de uma língua nacional única” na URSS e a subordinar a ela os dialetos (e os eventuais movimentos separatistas…), Stalin defendeu a tese segundo a qual a língua é uma estrutura estável, alheia aos embates sociais, portadora de um “caráter harmonioso e racional”.
Gramsci, em seus escritos carcerários, também defendia a ideia de uma língua nacional única, sem, contudo, afirmar seu caráter harmonioso, e julgava importante e enriquecedor a existência dos dialetos. A língua nacional e a sua gramática normativa, segundo Gramsci, é sempre uma escolha, “uma orientação cultural, ou seja, é sempre um ato de política cultural-nacional”, ato que tornou impositiva a todos uma língua oficial que no ano da reunificação (1860) era falada por apenas 2,5 % dos italianos (Hobsbawn: 2004, p. 77). Antonino Infranca, a propósito, apontou a língua húngara (e de certo modo o catalão) como elemento aglutinador, formador da identidade nacional em conflito aberto com o cosmopolitismo da União Europeia. Quanto à Itália, observou: “o italiano é a língua usada pelos italianos há apenas 65 anos, isto é, desde 1954, quando começaram as transmissões televisivas; apesar da escola pública, os italianos não usavam o italiano na vida cotidiana (…) os nacionalistas italianos nunca insistiram na língua como elemento aglutinador da nação italiana” (INFRANCA: 2020).
Como todo ato político a imposição do italiano como língua oficial suscitou as mais diversas reações: “oposições de “princípio”, uma colaboração de fato, oposição nos detalhes, etc.” (CC, 6, 144). Para alguns discípulos de Gentile, a gramática era vista como algo inútil e, como tal, deveria ser excluída do ensino escolar. Segundo Gramsci esse pensamento é uma forma de “liberalismo” que deixaria a formação dos indivíduos ao acaso e à influência restrita do meio ambiente (família, vizinhança, etc.). Com isso, se excluiria do aprendizado da língua culta a massa popular. O ensino da gramática normativa, afirma Gramsci, “visa a fazer com que se aprenda todo o organismo de uma determinada língua, bem como criar uma atitude espiritual que torne as pessoas capazes de se orientarem sempre no ambiente linguístico” (CC, 6, 149). Sem isso, os subalternos encontram dificuldades ainda maiores para lutar por direitos e pela erradicação do analfabetismo. Como no exemplo da escola, Gramsci aceita participar de uma batalha cultural, dentro dos quadros da legalidade burguesa, cujas vitórias serão sempre acanhadas e provisórias.
No mais, Gramsci considerava um ganho cultural falar duas línguas – o dialeto e o italiano – mas afirmava o caráter limitado da primeira: “Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus diversos participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativistas ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com o dialeto, não é possível fazer a mesma coisa” (CC, 1, 95).
Ao aceitar as regras do jogo, do “ato político”, Gramsci incluía as questões relativas à linguagem na disputa pela hegemonia. Criticava a postura “liberal”, mas também se opunha àqueles que se recusavam, “por princípio”, a participar da luta, especialmente os anarquistas, desde sempre combatidos em seus escritos políticos e pedagógicos. Como um “produto social”, uma “concepção do mundo”, a linguagem é um campo de batalha, um terreno permeado por contradições a ser disputado. Criticando o caráter “gramatiqueiro” de um linguista, observou: “a língua deve ser tratada como uma concepção do mundo, como a expressão de uma concepção do mundo; o aperfeiçoamento técnico da expressão, seja quantitativo (aquisição de novos meios de expressão), seja qualitativo (aquisição dos matizes de significado de uma ordem sintática e estilística mais complexa), significa ampliação e aprofundamento da concepção do mundo e da sua história” (CC, 2, 229-230).
O “valor instrumental” da linguagem, sua relação íntima com a “concepção do mundo”, levou Gramsci a entendê-la como herança cultural a ser apropriada, tornando-se, assim, momento da luta hegemônica.
Também aqui Gramsci se distancia de autores como Adorno e Althusser. Adorno, em seus ensaios, constatou o esgotamento do romance realista motivado pelo avanço da reificação – a reapresentação da realidade, seu reflexo literário, teria se tornado assim uma impossibilidade. A não correspondência entre o real e sua representação figurada exigiria do escritor uma “segunda linguagem”. Althusser, por sua vez, insistiu na necessidade de se separar realidade e pensamento. O corte epistemológico possibilitaria instaurar o discurso científico oposto à linguagem da alienação.
O projeto gramsciano não compartilha da concepção negativa de ideologia, pois enxerga a linguagem realmente existente como mais um espaço de luta. Desse modo, distancia-se também do estruturalismo linguístico, herdeiro da concepção negativa de ideologia, que se tornará hegemônico nos anos 1960. A desconfiança em relação à linguagem, a denúncia de seu caráter ideológico de expressão do poder, expressam-se com clareza na seguinte afirmação de Roland Barthes em sua famosa aula inaugural no Colégio de França: “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária e nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. (BARTHES: s/d, p. 14).
Gramsci, pelo que se sabe, não teve conhecimento dos estudos feitos por M. Bakhtin nos anos 20, mas certamente endossaria o entendimento do signo linguístico como “a arena da luta de classes”.
O caráter polissêmico da concepção gramsciana de ideologia, como vimos, mantém vínculos estreitos de identificação-diferenciação com uma ampla gama de conceitos: linguagem, concepção do mundo, crença, consenso, aparelho hegemônico, senso-comum, fé, folclore etc. – conceitos esses participantes do grande tema inclusivo: a hegemonia, a luta pela reforma moral da sociedade – uma sociedade dividida, que expressa sua divisão também nos fenômenos das superestruturas.
*Celso Frederico é professor aposentado e sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Morula).
Referências
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DEL ROYO, Marcos. “Gramsci e as ideologias subalternas”. In: DEL ROYO, Marcos (org.), Gramsci. Periferia e subalternidade (São Paulo: Edusp, 2017).
HOBSBAWN, Eric. Nação e nacionalismo desde 1870 (São Paulo: Paz e Terra, 2004).
INFRANCA, Antonino. “Hungria: da epidemia à ditadura”. In: A terra é redonda, 2020.
LIGUORI, Guido. “Ideologia”. In: FROSINI, Fabio e LIGUORI, Guido (orgs.). Le parole de Gramsci (Roma: Carocci, 2010).
LUKÁCS, G. Ontologia do ser social (São Paulo: Boitempo, 2012).
MANACORDA, Mario Alighiero. O princípio educativo em Gramsci (Campinas: Alínea, 2013).
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MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política (São Paulo: Martins Fontes, 1977).
STALIN, J. Sobre o marxismo na linguística. Disponível em http://www.marxists.org/portugueses/stalin/1950/06/20.htm.
TOSEL, André. “La presse comme appareil d´hégémonie selon Gramsci”, in Le Marxisme au 20eme siècle (Paris: Syllepse, 2009).
VAISMAN, Ester, A determinação marxista da ideologia (UFMG, 1996).
VASOLI, C. “Il “giornalismo integrale”, in GARIN, BOBBIO et alii. Gramsci e la cultura contemporanea II (Roma: Riuniti, 1975).