Por TARSO GENRO*
A teia do capital financeiro, da indústria das armas com a acumulação rentista passa a dominar o sentido do liberalismo democrático e assim orientar, definitivamente, as pessoas para o individualismo sem cuidados
A entrevista no jornal Zero Hora neste 21 de setembro, com o professor Paulo Artaxo, da USP, autoridade respeitada em termos globais — membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas IPCC — ouvido pelo Presidente na reunião com os Três Poderes mostra: primeiro, que o Instituto Novos Paradigmas e todos os já 600 assinantes da Carta ao Presidente, pleiteando uma Agência Federal para harmonizar o nosso futuro com os novos padrões de sustentabilidade global, estava correta.
Segundo: tanto isso é verdade que o governo Lula está organizando uma Instituição Nacional sobre o tema, o que demonstra que o bloqueio feito por uma parte significativa do empresariado local fez, da referida proposta, foi preconceituosa, nefasta para o Rio Grande e atrasou as soluções para os problemas estruturais da região: os negadores da transição climática não conseguem ver mais além do imediato dos seus negócios em crise e confundem a reconstrução imediata, para repor o Estado em condições de funcionamento normal e ordinário, com a reconfiguração estratégica do seu futuro.
Apesar do governador do Estado não ter compreendido o nosso movimento, pressionado pela sua visão imediatista da política, ele esteve certo em exigir do Governo Federal — para esta reconstrução do imediato — uma relação direta “fundo a fundo”, para agilizar a transferência condicionada dos recursos vultuosos que o governo federal destinou ao Rio Grande do Sul.
Para esta análise da sustentabilidade estratégica para o Rio Grande do Sul, trabalho aqui com o conceito de “bloco histórico”, naquele sentido de formação de uma nova base industrial de serviços e produção de bens, tocada por energias limpas e novas tecnologias informacionais de elevada capacidade de agregação de valor. Para que estas novas condições de produção e produtividade possam refletir em alianças duradouras para o enfrentamento da crise climática e para as novas conexões — no interior da nova economia global — da qual emergem novos protocolos de relacionamento do externo com o interno, nos países formalmente soberanos.
As guerras, particularmente a guerra da Ucrânia (“global ou hegemônica” como diz Fiori); o controle do território para a formação das subjetividades públicas e privadas, pelos interesses “de fora”, como vem testando Elon Musk, aqui no Brasil; a política externa de crimes de guerra em sequência, do governo de Israel, que se volta também contra o seu próprio povo, já naturalizada pela “grande mídia” global; as catástrofes climáticas e o despreparo do Estado nacional, para monitorá-las e bloquear os seus efeitos mais duros sobre a vida comum e sobre a produção, marcam o fim da época que estamos vivendo. Este era e é o sentido da nossa Carta de 1988.
Além destes temas, a falência das políticas de reforma do Estado pelas privatizações selvagens e pela dilapidação das funções públicas do Estado, é também um tema central a ser considerado, para qualquer projeto nacional ou regional, de caráter democrático que seja restaurador da força política do republicanismo democrático. Assediada por grupos nazistas, fascistas e de extrema direita, em todo o mundo, a vida democrática no cenário mundial é de guerra real — não declarada — mas já em curso por novos meios e para velhos fins.
A teia do capital financeiro, da indústria das armas com a acumulação rentista passa a dominar o sentido do liberalismo democrático e assim orientar, definitivamente, as pessoas para o individualismo sem cuidados: um por todos, todos por nenhum! Neste contexto, “o povo constituinte” da democracia liberal representativa, não mais existe em camadas superpostas de classes (ou fragmentos de classes), mas é constituído pela sobreposição de blocos limitados de socialidades em declínio.
Nestas novas condições de reprodução social do planeta, os hábitos, os valores, as ideias sobre o mundo da vida não se formam mais pela força do compartilhamento do trabalho produtivo, mas, pelas mesmas relações sociais tradicionais de dependência do capital, num outro nível, fazendo-as — sobretudo — pelo acesso individual ao consumo seletivo no mercado, onde os valores morais dominantes são recriados de forma constante. Os jogos eletrônicos de guerra destinados às crianças preparam as novas gerações para este ambiente, que nos levou à beira do abismo.
Como bombardear de humanismo este reduto? Penso que além das questões de natureza estratégica, que muitos estão discutindo neste momento, o tema que diz respeito aos comportamentos dos indivíduos perante as formas políticas do cotidiano, devem ser propostos pelas esquerdas e pelas forças democráticas autênticas: cotidiano e história se fundem a cada momento, o que implica em dizer que tática e estratégia são hoje inseparáveis.
É na vida cotidiana, nãos nas grandes narrativas, o lugar em rede onde viceja o novo totalitarismo e onde se trava a luta pelo poder, entre os invisíveis sem rumo e os rumos do poder invisível, que vem dos fluxos de informação das plataformas sem local visível. Esse totalitarismo construiu o poder perfeito — como ideologia de guerra que é — para classificar “qualquer movimento social ou político que seja uma negação dos (seus) valores sagrados (da acumulação) ou do modo de vida da ordem vigente, (…) como totalitário, autoritário, terrorista ou antidemocrático.” Esse é mundo que vivemos e é onde se espelha também a região que vivemos (Hortmann, 2022, Ed. Ruptura).
Além de compreender, solidarizar-se e ajudar os novos movimentos identitários, culturais ou de frações dos novos mundos do trabalho, as organizações políticas da sociedade que não querem desistir da emancipação pela igualdade e pela liberdade – no cotidiano de qualquer tipo de militância – devem desenvolver uma política de cuidados (Brugére, Ed. Contracorrente). Os cuidados com o outro são as redes reais do cotidiano transferíveis para as redes virtuais onde proliferam as catacumbas do ódio.
Dentro da sua militância, isso significa emprestar à vida comumum sentido útil imediato, para restaurar as relações de solidariedade dos iguais — como oprimidos — e também com os socialmente desiguais, interessados na ideia de nação como comunidade de destino.
Na beira do abismo estão fundidos, tanto a libertinagem sem estado regulador com o mercado das reputações assassinadas, como o fascismo monetizado — nas redes legais ou clandestinas — com os donos da informação manipulada pelas Big Techs sem pátria. No fundo do abismo está a continuidade das guerras sem território que abrangem todos os territórios. As respostas à crise climática poderão fazer a ponte sobre o abismo. É uma utopia possível?
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).
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