Por DIEGO RABELO*
A história julgará não apenas os atores diretos do conflito na Síria, mas também aqueles que, a distância, manipularam e influenciaram os eventos, deixando um legado de dor e fragmentação
A narrativa ocidental sobre o combate ao terrorismo na Síria sempre foi marcada por uma contradição fundamental. Enquanto os Estados Unidos e seus aliados afirmavam estar lutando contra grupos extremistas como o Estado Islâmico, suas ações no terreno revelavam uma estratégia muito diferente. Como aponta Kevork Almassian [@KevorkAlmassian], “o Departamento de Estado dos EUA silenciosamente retirou a designação de terrorista da Frente al-Nusra”, demonstrando a flexibilidade moral que caracteriza a política externa ocidental na região. Essa duplicidade tornou-se ainda mais evidente quando observamos a atuação da Rússia, que em poucos meses conseguiu eliminar posições do Daesh que as forças ocidentais alegavam não conseguir localizar.
A verdade é que o terrorismo foi utilizado como ferramenta geopolítica. Grupos como o Estado Islâmico serviram inicialmente para desestabilizar o governo sírio, sendo depois descartados quando se tornaram inconvenientes para a imagem do Ocidente. Como observa Almassian, “Trump fez elogios pessoais a al-Julani” enquanto este entregava o sul da Síria para Israel. Essa relação ambígua com grupos terroristas revela o verdadeiro objetivo da intervenção ocidental: não a erradicação do extremismo, mas a mudança de regime em Damasco.
A hipocrisia atinge seu ápice quando analisamos o comportamento do Estado Islâmico. Apesar de sua retórica anti-ocidental e anti-israelense, o Daesh nunca atacou território israelense, levantando sérias questões sobre quem realmente controlava esse grupo. Enquanto isso, hospitais de campanha israelenses no Golã tratavam combatentes da Al-Qaeda feridos, como relata Almassian: “Os ataques aéreos israelenses contra a Síria enfraqueceram o exército sírio, poupando grupos como o de Julani”.
Essa estratégia de “combate seletivo” ao terrorismo teve consequências devastadoras para a Síria. Enquanto o Ocidente fingia lutar contra o extremismo, na realidade permitia que esses grupos servissem como força de choque contra o governo Assad. O resultado foi a prolongação do conflito e o agravamento da crise humanitária, com a população civil pagando o preço mais alto por essa política dupla.
O Novo Conflito Israel-HTS e a Ocupação do Sul Sírio
A evolução do conflito sírio trouxe uma ironia histórica: o confronto direto entre Israel e o Hay’at Tahrir al-Sham (HTS), herdeiro da Al-Qaeda na Síria. Como observa Michael P. Pregent [@MPPregent], ex-oficial de inteligência americano: “O militar em mim tem quase certeza que Jolani ainda é o mesmo jihadista de antes”. Essa afirmação revela o absurdo da situação atual, onde um grupo terrorista que recebeu apoio indireto de potências regionais agora se torna alvo de seus antigos benfeitores.
A ocupação israelense no sul da Síria representa um capítulo crucial dessa nova fase do conflito. Desde 2011, Tel Aviv estabeleceu uma presença militar informal na região, aproveitando-se do caos gerado pela guerra. Através de mais de mil ataques aéreos – justificados como “defesa contra a influência iraniana” – Israel criou fatos consumados que dificilmente serão revertidos. Como relata Wladimir van Wilgenburg [@vvanwilgenburg], “as forças de segurança sírias continuam a humilhar os homens drusos raspando seus bigodes à força” [LINK], demonstrando como a ocupação se beneficia das divisões internas sírias.
A estratégia israelense na região segue uma lógica clara: fragmentar a Síria em zonas de influência rivais, impedindo qualquer possibilidade de reconstrução nacional soberana. O sul do país, rico em recursos hídricos e de importância estratégica, tornou-se alvo prioritário dessa política. Enquanto isso, o governo sírio, já enfraquecido por anos de guerra, vê-se incapaz de responder efetivamente a essa ocupação gradual.
O mais revelador nesse novo conflito é a mudança de postura de Israel em relação ao HTS. Depois de anos de uma relação ambígua – onde o grupo jihadista era visto como útil para pressionar Damasco – Tel Aviv agora se vê obrigado a confrontá-lo diretamente. Essa guinada demonstra como os cálculos geopolíticos na região estão em constante transformação, com alianças temporárias sendo formadas e desfeitas conforme os interesses imediatos das potências envolvidas.
A Irmandade Muçulmana e suas Contradições
O papel da Turquia e do Catar no conflito sírio representa talvez o exemplo mais claro de cinismo geopolítico. Como aponta Kevork Almassian [@KevorkAlmassian], “Netanyahu e Trump estão construindo um novo eixo: Israel, Julani e seus apoiadores do Golfo, com total aprovação dos EUA”. Essa observação revela a natureza contraditória da política regional, onde inimigos declarados mantêm relações comerciais e estratégicas quando conveniente.
A Turquia, que durante anos apoiou o HTS e outros grupos jihadistas na Síria, mantém ao mesmo tempo relações comerciais bilionárias com Israel. Essa duplicidade é particularmente evidente no caso do Catar, que financiou generosamente os “rebeldes” sírios enquanto assinava acordos de gás com Tel Aviv. Como questiona o Dr. Walid Phares [@WalidPhares]: “O avanço jihadista em larga escala em direção a #Souaida supostamente inclui combatentes #ISIS e quadros Ikhwan. Com quem estamos realmente aliados?”.
A Irmandade Muçulmana, que se apresenta como resistência anti-imperialista, revela sua verdadeira face quando os interesses econômicos estão em jogo. Enquanto sua retórica condena Israel e o Ocidente, seus aliados políticos mantêm relações comerciais estreitas com esses mesmos atores. Essa contradição ficou particularmente evidente quando o HTS começou a confrontar diretamente as forças israelenses no sul da Síria, colocando seus patrocinadores turcos e qataris em uma posição delicada.
Essas alianças contraditórias demonstram que, no Oriente Médio contemporâneo, a ideologia frequentemente cede lugar aos interesses pragmáticos. O caso sírio tornou-se um laboratório onde se testam os limites da realpolitik, com consequências devastadoras para a população civil. Como ironiza Almassian: “Bem-vindos a 2024, onde Julani pode apertar as mãos de Netanyahu sob os auspícios de Trump, e ninguém na mídia ocidental verá problema nisso”.
O Silêncio Cúmplice da Esquerda
A postura da esquerda ocidental e brasileira em relação à Síria representa um dos capítulos mais vergonhosos do pensamento progressista contemporâneo. Como questiona Kevork Almassian [@KevorkAlmassian]: “Onde estão os ‘revolucionários’ agora – aqueles que choraram lágrimas de crocodilo pela Palestina enquanto aplaudiam a mudança de regime na Síria?”. Essa pergunta revela a profunda contradição daqueles que, em nome do anti-imperialismo, acabaram fazendo o jogo do imperialismo mais cru.
Os exemplos são numerosos e constrangedores. O PSTU e setores do PSOL no Brasil, que durante anos defenderam os “rebeldes moderados” sírios, agora se calam diante da ascensão do HTS – um grupo que herdou diretamente a ideologia da Al-Qaeda. A esquerda europeia, que marchou contra a guerra no Iraque, apoiou entusiasticamente a intervenção na Síria, ignorando os evidentes paralelos entre os dois casos. Como bem resume Almassian: “Eles estão em silêncio agora, é claro. Ensurdecedoramente silenciosos”.
A Líbia deveria ter servido de lição. A destruição do Estado líbio e sua transformação em um território dominado por milícias e traficantes de escravos era um aviso claro sobre as consequências do intervencionismo ocidental. No entanto, muitos dos mesmos intelectuais e ativistas que defenderam a intervenção na Líbia repetiram os mesmos erros na Síria, demonstrando uma incapacidade crônica de aprender com a história.
O silêncio atual desses setores diante do desastre humanitário na Síria é revelador. Não há autocrítica, não há revisão de posições – apenas um constrangido silêncio. Como conclui Almassian: “Você não os ouvirá se desculpar ou refletir, porque ou foram tolos o suficiente para acreditar nas próprias mentiras, ou estavam comprometidos desde o início”. Essa postura não apenas desacredita o pensamento de esquerda, como contribui para a perpetuação de políticas intervencionistas que só beneficiam as potências imperialistas.
A Síria Fragmentada e o Preço da Guerra
O resultado final de mais de uma década de conflito é uma Síria profundamente dividida e traumatizada. Como descreve Kevork Almassian [@KevorkAlmassian]: “A Síria, como a conhecíamos, não existe mais. Agora é um playground para interesses estrangeiros”. Essa avaliação dura reflete a realidade de um país dividido em zonas de influência: o sul ocupado por Israel, o nordeste controlado por milícias curdas apoiadas pelos EUA, Idlib dominado por jihadistas com beneplácito turco, e um governo central em Damasco cercado por todos os lados.
Os números da tragédia são estarrecedores: mais de 600 mil mortos, 12 milhões de deslocados, 90% da população abaixo da linha da pobreza. Como questiona Almassian: “E para quê? Para que o próprio líder de uma facção terrorista seja agora bem-vindo pelo mesmo estado que uma vez jurou combater?”. Essa pergunta retórica revela o absurdo fundamental da intervenção ocidental na Síria – uma intervenção que não trouxe democracia, não trouxe liberdade, apenas destruição e caos.
A reconstrução da Síria esbarra em obstáculos quase intransponíveis. As sanções econômicas ocidentais, mantidas mesmo após o fim dos combates mais intensos, impedem qualquer esforço sério de recuperação. Como observa Almassian: “Nenhum líder se levantará em Damasco sem antes se ajoelhar diante do Tio Sam e de Tel Aviv”. Essa realidade condena o povo sírio a uma crise humanitária prolongada, enquanto as potências regionais e globais disputam os despojos do país.
Tudo indica que a Síria caminha para um processo irreversível de balcanização, no qual seu território será permanentemente dividido em enclaves controlados por atores locais e internacionais com interesses antagônicos. A ocupação israelense no sul, o domínio curdo no nordeste apoiado pelos EUA, o enclave jihadista em Idlib sob proteção turca e o enfraquecido governo de Damasco demonstram que a unidade territorial síria já é uma ficção. Como alertam analistas, essa fragmentação não é temporária, mas sim uma estratégia deliberada de potências regionais e globais para garantir que a Síria nunca mais se torne um Estado centralizado e independente. A balcanização consolida-se como o único destino possível em um cenário onde nenhum ator tem força – ou interesse – em reunificar o país.
A balcanização da Síria não é apenas uma questão territorial, mas um reflexo da nova ordem regional, onde fronteiras são redesenhas por meio de guerras por procuração e acordos entre potências. Enquanto Rússia, Irã, Turquia, EUA e Israel disputam influência sobre os fragmentos sírios, a população paga o preço de uma nação dilacerada. Sem soberania efetiva, a Síria corre o risco de se tornar um “Estado falido” permanente, sem capacidade de se reconstruir ou garantir direitos básicos aos seus cidadãos. A comunidade internacional, longe de buscar uma solução, normaliza essa fragmentação, tratando cada enclave como uma entidade separada. Assim, a balcanização não é um acidente da guerra, mas seu legado mais duradouro – e trágico, porque não dizer um eixo objetivo de redividir todo o oriente médio em fatias sectárias. Afinal, se já um país pros judeus, nada mais lógico do que um pros sunitas, outro pros curdos, outro pros alawitas e xiitas, isto é, se ainda sobrar algum vivo depois do governo do HTS.
Como conclui amargamente Almassian: “Se você ainda se apega a ilusões, é hora de se libertar. Isto não é paz. É rendição”. A guerra na Síria pode ter entrado em uma nova fase, mas suas lições permanecem mais relevantes do que nunca. Ela nos mostrou o verdadeiro preço do intervencionismo ocidental, a hipocrisia da comunidade internacional e a fragilidade das alianças geopolíticas. Acima de tudo, revelou como a vida de milhões pode ser sacrificada no altar de interesses estratégicos e cálculos políticos frios. A história, como sempre, será implacável em seu julgamento.
*Diego Rabelo é professor do Departamento de Museologia Conservação e Restauro da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
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