Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI

Rubens Gerchmann, Cicatriz Equador, 1974.
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Por JONES MANOEL*

Apresentação do livro recém-lançado de Domenico Losurdo

Reconstrução da proposta comunista e revolução no século XXI

O título dado a este volume, Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI, sublinha qual é o centro de sua reflexão. Não se trata de uma obra organizada por Losurdo, mas de uma seleção de escritos, alguns inéditos em português, uns já conhecidos do público, outros retraduzidos ou revisados. O que os unifica é a centralidade da questão colonial na história da modernidade burguesa e a importância do anticolonialismo na luta pela revolução socialista neste século XXI.

Repensar a história da modernidade e dos conflitos sociais à luz da questão colonial é um elemento central da produção losurdiana. Não se trata “apenas” de uma questão historiográfica e filosófica no plano da batalha das ideias, mas de uma temática candente dos conflitos prático-políticos no Brasil e no mundo.

O livro está dividido em quatro partes. A primeira é “Colonialismo e neocolonialismo”, e compõe-se de três escritos: “Panamá, Iraque, Iugoslávia: os Estados Unidos e as guerras coloniais do século XXI”; “O sionismo e a tragédia do povo palestino”; e “Entende-se o domínio da manipulação: o que acontece na Síria?”. Losurdo mostra nesses escritos que a contrarrevolução de 1989-1991 provocou uma reabilitação da tradição colonial em todos os planos – desde o cultural até o militar – e que o fim da Guerra Fria não significou o estabelecimento da paz, mas um recrudescimento do militarismo do imperialismo na forma de guerras neocoloniais – somente no governo de Bill Clinton, os Estados Unidos se envolveram em 48 ações militares.

Além de debater a reabilitação da tradição colonial, Losurdo aponta elementos do colonialismo clássico que nunca foram superados. No caso dos palestinos, o sionismo opera um tipo de dominação clássica: ocupação militar, regime de segregação racial, controle despótico sobre os recursos naturais, desumanização do povo dominado e todos os outros determinantes da longa duração histórica do colonialismo.

Apontar, porém, a permanência das formas clássicas de colonialismo não significa que “nada mudou”. O teórico italiano também trabalha o papel das redes sociais e da internet nas guerras neocoloniais, operações psicológicas de larga escala e ações de “mudança de regime”. Traça um longo histórico do papel da mentira institucional e da manipulação na política externa do imperialismo e mostra como a era da internet, longe de ser um reino de comunicação horizontal e liberdade de opinião, potencializou a capacidade dos Estados Unidos de subjugar outros povos.

Na segunda parte do livro, intitulada “Imperialismo, guerra e luta pela paz” e composta dos escritos “Palmiro Togliatti e a luta pela paz ontem e hoje”, “Por que é urgente lutar contra a Otan e redescobrir o sentido da ação política” e “A indústria da mentira como parte integrante da máquina de guerra do imperialismo”, o foco é a luta pela paz, contra as guerras e pela autodeterminação dos povos. Como bom comunista, Losurdo não poderia apenas pensar a denúncia do problema, ou interpretar o mundo, afinal o essencial é transformá-lo.

O filósofo faz o debate desde um plano teórico mais abstrato até um maior nível de concretude prático-política. No primeiro artigo, usando as reflexões de Palmiro Togliatti, mostra a importância de refletir sobre a dimensão histórica da política e não pensar a práxis como uma mera reencenação de formas do passado. Muitos não conseguiram entender, na época, as diferenças entre a primeira e a segunda guerras mundiais (tendendo a repetir táticas de ação, palavras de ordem etc.) e entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Losurdo busca apresentar um quadro teórico-metodológico para fazer uma “análise concreta da situação concreta” na luta contra a guerra.

O segundo escrito, em grau menor de abstração, trata dos problemas enfrentados para se construir uma campanha contra a Otan na Itália. O filósofo se depara tanto com a dificuldade de alguns setores de aceitar o caráter mais amplo – para além de comunistas e marxistas – de uma campanha pela paz e contra a Otan quanto com a dificuldade dos que acham que palavras de ordem lidas como “pacifistas” não são sufi cientemente revolucionárias. A reflexão do autor, embora ligada ao contexto italiano, é útil para as esquerdas brasileiras, principalmente para aqueles setores que se negam a defender a soberania nacional venezuelana e a lutar contra a guerra por antagonismos com o governo Nicolás Maduro, ou que silenciam sobre os massacres diários na Colômbia por discordâncias históricas com as Farc.

No terceiro escrito, mais uma vez retomando o debate sobre a mentira institucional e a manipulação como arma de guerra e dominação, Losurdo busca teorizar sobre as maneiras como a esquerda poderia escapar a essas ações. Resistir às manipulações do imperialismo não é fácil. Quando George W. Bush tentou invadir o Iraque agitando a mentira das “armas de destruição em massa” no país, as poucas vozes críticas que se levantaram foram acusadas de simpatia pelo ditador iraquiano e pelas barbáries cometidas por seu regime, como o massacre contra os curdos, trazidos à cena para insinuar que quem duvidava da necessidade de derrubar Saddam Hussein flertava em algum nível com essas atrocidades.

Losurdo contribuiu decisivamente para o exame da resistência a essas operações de terrorismo psicológico, de anulação do pensamento crítico, saindo da dicotomia de base liberal – e sempre instrumentalizada pelo imperialismo – de pensar a geopolítica como um confronto global de “autoritarismo versus democracia” – justificativa oficial para destruir a Líbia, atacar a Síria, cercar a Venezuela etc.

A terceira parte do livro, “Imperialismo estadunidense, o inimigo principal”, é talvez a mais polêmica. Nos dois ensaios que a compõem – “A doutrina Bush e o imperialismo planetário” e “Os Estados Unidos e as raízes político-culturais do nazismo” –, o pensador italiano recupera a tese cara à tradição bolchevique de que, na multiplicidade de contradições, há sempre um inimigo principal, o foco da ação política. Quando digo que a tese é polêmica me refiro ao contraponto à tendência atual de pensar o mundo como uma rede de conflitos interimperialistas de igual dimensão tática e estratégica.

Não poucos falam de “imperialismo chinês e russo”, ou ficam indignados com o que, supostamente, seria uma minimização do papel do imperialismo francês e alemão no mundo. O que Losurdo argumenta, sem negar a multiplicidade de contradições e a complexidade das estruturas de poder global, é que Japão, França, Alemanha e outros países de menor peso geopolítico – como a própria Itália – estão subordinados ao poder econômico e político-militar da única superpotência do mundo: os Estados Unidos.

Em sua compreensão, o imperialismo estadunidense é o inimigo principal a ser isolado e combatido com concentração de forças. Se a análise losurdiana estiver certa, ela condiciona todo um processo de reconfiguração tática da ação das esquerdas na Europa e no mundo. Aliado a isso, e também contra a corrente, ele não compreende a ação da China no mundo como um imperialismo rival do estadunidense, mas como um contraponto ao domínio yankee, com horizonte anticolonial e terceiro-mundista.

Nesse ponto, tenho dúvidas se concordo integralmente com a reflexão de Losurdo. Seria difícil, entretanto, neste curto espaço, debater a fundo minhas eventuais discordâncias. Diria, de forma mais geral, que a sua análise tende a não considerar em toda a sua profundidade a relação centro-periferia que a China estabelece com a maioria dos países de capitalismo dependente, inclusive o Brasil. E ainda que essa relação não tenha, até este momento, traços de militarismo, intervencionismo e neocolonialismo, ela continua sendo uma relação de apropriação de valor produzido nas economias periféricas. Contudo, ao passar pela pandemia do covid-19 e observar a diferença de comportamento entre China e Estados Unidos, além dos rebatimentos do vírus na Europa, tendo a olhar com mais simpatia para essa tese do autor.

Para concluir, a última parte, intitulada “Crítica do liberalismo, democracia e reconstrução do marxismo”, é composta por quatro escritos: “Marxismo e comunismo nos 200 anos do nascimento de Marx”; “Revolução de Outubro e democracia no mundo”; “Crítica ao liberalismo, reconstrução do materialismo: Entrevista por Stefano G. Azzarà)”; e “Entrevista à revista Novos Temas: Entrevista por Victor Neves)”. Eles oferecem um panorama mais amplo da obra losurdiana, mas não perdem de vista o tema central do livro: o colonialismo e a luta anticolonial. O primeiro reproduz a última conferência de Losurdo: nela ele faz um balanço do legado marxiano, destacando-se sua interpretação da obra do fundador do materialismo histórico. O Marx de Losurdo é um pensador antirracista, preocupado com a luta anticolonial e as diversas formas de negação humanidade dos dominados operada pelo capitalismo. Essa interpretação inovadora e ousada da obra de Marx e de sua categoria central, a luta de classes, dialoga diretamente com todas as questões vitais do nosso tempo. [1]

O segundo ensaio é um pequeno exemplo de um tema caro e fundamental na produção do nosso filósofo: a democracia política e as chamadas “liberdades formais” não são um produto do simples desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo, mas uma expressão da luta de classes e uma imposição ao mundo burguês que conheceu seu máximo desenvolvimento com o recuo das “três grandes discriminações” (contra a classe trabalhadora, as mulheres e os povos negros e colonizados). E é impossível contar a história da crítica – teórica e prática – das “três grandes discriminações” sem falar do ciclo político aberto com a Revolução de Outubro.

Os últimos escritos são duas entrevistas com pesos teóricos e funções diferentes. A primeira, como indica o título, tem como centro a crítica ao liberalismo. É um belíssimo exemplo da crítica losurdiana ao ideário liberal tão comentada nos últimos tempos. A segunda entrevista, bem mais longa e densa, passeia por uma infinidade de temas e oferece uma visão geral, ainda que com algumas limitações, do marxismo de Domenico Losurdo. Para um contato preliminar com a produção do comunista italiano, é um material precioso.

Portanto você, leitor ou leitora, tem em mãos um livro que ajuda a pensar os temas fundamentais da luta de classes contemporânea: contra a guerra, o imperialismo, o neocolonialismo e o racismo até as disputas em torno da história do movimento comunista e a batalha das ideias contra a ideologia dominante. Considere esse livro uma introdução à monumental produção losurdiana. Desejo-lhe boa leitura e muita disposição para os embates, seguindo a recomendação de outro italiano universal, o também comunista Antonio Gramsci: “Pessimismo da razão e otimismo da vontade”.

*Jones Manoel é historiador, mestre em Serviço Social pela UFPE, educador e comunicador popular. Organizou, entre outros livros, A Revolução africana – antologia do pensamento marxista (Autonomia literária).

Referência


Domenico Losurdo. Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI. Organização e apresentação: Jones Manoel. Prólogo: Caetano Veloso. Tradução: Diego Silveira, Federico Losurdo, Giulio Gerosa, Marcos Aurélio da Silva, Maria Lucilia Ruy, Maryse Farhi, Modesto Florenzano e Victor Neves. São Paulo, Boitempo, 2020, 204 págs.

Nota


[1] Essa interpretação é dada com mais fôlego em A luta de classes: uma história política e filosófica (trad. Silvia de Bernardinis, São Paulo, Boitempo, 2015).

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