Identidade

Imagem: Estúdio 42 North
image_pdf

Por RENATO ORTIZ*

Alguém sem sombra teria se livrado das tentações obscuras, a nódoa que nos corrompe, não seria mais necessário usar a máscara que nos distorce diante do olhar complacente dos outros, dissimulando aquilo que realmente somos

A primeira vez que se deu conta disso foi quando o sol estava a pino; parou imóvel no centro do jardim, sem mexer um músculo, e ao olhar para o chão, ficou extasiado em perceber que não tinha sombra. Foi tomado por um sentimento de júbilo e prazer, uma sensação cálida de completude o invadiu. Nunca havia ressentido algo assim. O sol encontrava-se no zênite e formava uma linha reta perpendicular à sua cabeça, a luz projetada em seu corpo opaco era absorvida pela grama a seus pés.

Deixou os braços colados ao corpo e girou as pernas, para um lado e para o outro, o movimento em nada alterava seu espanto, a sombra permanecia oculta. Depois disso sua vida mudou, todos os dias no mesmo horário caminhava até o jardim à espera da luz, pensava ter descoberto o alento para sua vida banal. Entretanto, de nada adiantaram seus esforços inúteis, as várias tentativas que vez de se alinhar com os raios solares foram frustrantes; a órbita do astro tinha ligeiramente se inclinado, o suficiente, porém, para iluminar no solo a penumbra de sua existência.

O zênite almejado era um ponto fugidio na esfera celeste. Um mar profundo de melancolia dele se apossou, nada preenchia o vazio de seu ser alquebrado. Passaram-se meses de tristeza e desolação sem que pudesse encontrar a si mesmo. Foi quando se deparou com algo surpreendente ao acender o abajur da mesa de trabalho. Fazia tempo queria ordenar os pedaços de papel espalhados, os livros desarrumados empilhados uns sobre os outros, e aquele dicionário imenso, incômodo, que tinha ganhado de presente e nunca havia consultado.

Ao olhar a sombra de sua mão projetada na parede percebeu que estava mutilada. Refez o gesto várias vezes; ao colocá-la diante da fonte de luz a sombra aparecia nítida, escura, mas o contorno rabiscado na tela revelava a ausência de um dos dedos. Faltava o indicador. Surpreso e contente permaneceu ali por horas a fio.

Começou então a frequentar o escritório com assiduidade, não dependia mais das infidelidades do sol. Durante o dia ansiosamente esperava pelo anoitecer; na escuridão da sala o facho de luz era intenso, impelindo para fora de si a parte amputada. Ritualmente, sem faltar um único dia, repetia a experiência que o encantava. Após vários meses algo mudou, outro dedo desapareceu. Estupefato, percebeu que aos poucos o resto de seu corpo conhecia um destino semelhante; despiu-se de suas vestimentas e nu posicionou-se entre a trajetória da luz e a parede. Tudo havia desaparecido.

Podia agora caminhar pela casa e o jardim sem o desconforto que o atormentava; mesmo de dia seu lado obscuro havia partido, nada fazia sombra à sua presença verdadeira. Entretanto, o deslumbramento veio acompanhado de uma inquietude, foi invadido por um cansaço persistente e lânguido, uma fraqueza mórbida o envolveu. Mal dava alguns passos e a exaustão o consumia, trôpego perdia o equilíbrio e sentava-se para descansar. Percebeu, porém, ao permanecer parado, que seu estado de ânimo retornava, a imobilidade lhe devolvia a energia estancada.

A partir daí movimentava-se o mínimo possível, passava o dia em repouso, distante das futilidades da vida. A inércia e a solidão tornaram-se companheiras inseparáveis. Ele sabia que os psicólogos denominam sombra a região do inconsciente na qual os desejos nefastos, não confessados, se aninham; ali escondiam-se recalcadas as emoções e sensações do Ego. Tomar consciência dessa condição de imperfeição seria o caminho da superação, da afirmação pessoal.

Alguém sem sombra teria se livrado das tentações obscuras, a nódoa que nos corrompe, não seria mais necessário usar a máscara que nos distorce diante do olhar complacente dos outros, dissimulando aquilo que realmente somos. O interno e o externo comungariam as mesmas virtudes. Satisfeito, colocou a cadeira de balanço no jardim, o sol estava a pino, e desfrutou a tranquilidade de Ser, imóvel tinha encontrado sua essência: tornou-se prisioneiro de si mesmo.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda). [https://amzn.to/3XopStv]

Publicado originalmente no blog do BVPS.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES