Uma associação criminosa

Bill Woodrow, Porta do carro, tábua de passar e banheira dupla com adorno de cabeça de índio norte-americano, 1981
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Por TARSO GENRO*

Bolsonaro tem, atrás de si, um conjunto de “trincheiras e casamatas” no Estado, que afastam o cidadão comum da ação política e o fazem descrer de políticas tolerantes e inclusivas

Quando deixei de acreditar que um tipo como Bolsonaro jamais poderia ganhar uma eleição no Brasil democrático e passei a indicá-lo como uma “fascista em processo”, aprendi um pouco mais sobre as peculiaridades da história, como fonte de inspiração para analisar como ela, recorrentemente, se “afasta” das determinações da sua base material e passa a compor um universo muito mais rico e desafiador. Eu me perguntava “mas onde está o partido deste ensaio de fascista?”, até “dar de cara” com uma resposta de Bobbio a Maurizio Viroli, quando ambos debatiam sobre Berlusconi.

Quando quero aprender um pouco mais sobre política e as suas relações com a cultura e a experiência coletiva, tenho por método primeiro consultar Bobbio, Gramsci, depois Hobsbawn e. frequentemente, alguns romancistas russos e americanos do século passado. A resposta de Bobbio a Viroli, no debate, é a seguinte: “O partido de Berlusconi é um partido pessoal em sentido próprio, uma vez que não é uma associação que criou um chefe, mas é um chefe que criou uma associação.” No caso de Bolsonaro, criou mais uma associação criminosa do que uma associação política em sentido próprio.

Na verdade, o fascismo não é uma escola de pensamento político uniforme, recortado sobre uma filosofia própria, (apesar de Mussolini): “é a ausência deliberada de filosofia o que lhe caracteriza” – assevera Polanyi – “pois só na Alemanha o fascismo foi capaz de chegar a essa fase decisiva, na qual uma filosofia política se transmuda em religião” (acrescento) encarnada num partido de Estado. O fascismo “em processo”, de Bolsonaro é uma especificidade do nosso desenvolvimento capitalista tardio e dependente, nos qual as classes dominantes não sofisticaram suas formas de dominação, nem construíram formas institucionais que mediassem de maneira convincente o seu ódio à igualdade e o seu desprezo à liberdade.

Talvez também em função da sua origem escravista não conseguiram formar partidos estáveis e históricos, capazes de armazenar sua autoridade de classe dirigente, substituindo-a – nesta hipótese – por outros aparatos, articulações sociais e comunicativas que respondessem diretamente ao estímulo de quem organiza, no plano global, as necessidades do complexo das classes dominantes no mundo.

Recordando as centenas de matérias que o “sistema Globo” tem divulgado sobre os desgovernos do bolsonarismo, pode se ter a falsa impressão de que os destinos democráticos e republicanos do país estão nas mãos generosas do “partido do mercado”. A impressão é falsa, pois para este não interessa a natureza do regime, nem a sua taxa de democracia possível, mas qual a opinião das agências de risco e qual o humor dos investidores em busca da maior rentabilidade, alheios a estas “bobagens” de “direitos humanos”, fome e liberdades públicas.

O mercado, na verdade, com suas estruturas de poder fincadas dentro do próprio Estado, nas agências de risco e nas organizações políticas (e frações destas) – com suas lideranças que despontam na mídia – não tem nenhuma preocupação com a democracia, muito menos com a República. Seu “espírito absoluto” são os fluxos do capital financeiro: república e democracia são, hoje, demandas integrais da esquerda, não do liberalismo político do século passado.

A busca dos caminhos “democráticos” pelos ex-liberais clássicos é limitada, na verdade, às condições de utilização das estruturas institucionais da democracia e do seu poder político, para facilitar o processo de acumulação de capital pelo rentismo sem trabalho; ou melhor, eles – os liberais ex-clássicos – que não aportaram no Estado Social, são indiferentes aos que vivem do trabalho, na sua acepção do século passado. Alguns o fazem – é verdade – numa forma mais “civilizada”, outros – todavia – são fãs da barbárie miliciana, indiferentes à fome e atuantes no negacionismo remunerado. Estes últimos conformam ideologicamente a maioria das “elites” econômicas do país.

Quais os fatos dão sustentação a este juízo sobre a postura dos liberais economicamente “radicas”, hegemônicos no país, tanto no que toca à questão democrática como no que diz respeito à questão republicana? Eles estão indicados numa pergunta chave, cuja resposta faz a ponte das grandes políticas das classes dominantes locais – nos dias de hoje – com a ética dominante nos estratos superiores da sociedade política. Ei-la: por tudo que Bolsonaro fez e disse, na sua vida pregressa, em defesa da morte, da tortura e do fascismo, somados a sua supina ignorância em economia, política e história – além de ser um grande mal-educado – seria possível que pessoas educadas, mentalmente sadias não projetassem o que seria um Governo dele?

Ao levantar essa dúvida, mais do que uma questão atinente à capacidade cognitiva das ditas elites, o que se questiona é o que realmente elas queriam de um Presidente. Suponho, neste contexto, que elas queriam exatamente este Presidente que temos agora, porque só ele – na sua incompreensão militante do todo – seria capaz de aliançar o autoritarismo fascista com o reformismo ultraliberal dos aventureiros de Chicago, testados previamente na ditadura de Pinochet.

Ao dizer isso não se reputa que a Globo não esteja exercendo uma função importante, se opondo politicamente ao bolsonarismo, tal qual ele se apresenta no cenário local e global, em função dos monstruosos crimes que o Presidente tem praticado. As denúncias das mortes em série – provocadas pela política charlatã do Governo em relação à Covid – tem importância na luta imediata pela democracia, mas (reparem!), para a Globo desde que esta luta não implique em renunciar à liquidação das funções públicas do Estado e suspender as reformas destrutivas do Estado Social do Pacto de 88, que o bolsonarismo tem praticado religiosamente.

O problema estratégico que temos que desvendar, todavia, integra a questão democrática com a questão republicana. Ambas hoje, estão ancoradas na necessidade de liquidação do fascismo bolsonárico (protofascismo ou neofascismo), articuladas na liderança do “chefe”, ao mesmo tempo distópico e fanático. Ele casa – em sua sinistra personalidade -, a distopia antirrepublicana e o fanatismo antidemocrático. Bolsonaro tem, atrás de si, um conjunto de “trincheiras e casamatas” no Estado, que afastam o cidadão comum da ação política e o fazem descrer de políticas tolerantes e inclusivas.

Só uma esquerda unida em torno, em primeiro lugar, da democracia política como dogma e, em segundo lugar, em torno da República de 88, como projeto histórico, pode bloquear o fascismo. E assim recuperar e fazer vencer a agenda majoritária da luta contra a fome, a agenda ambiental, do crescimento e do emprego, a defesa da soberania da nação como cooperação interdependente. Isso interessa a um campo político mais amplo do que a esquerda: o grande campo que pode esvaziar o fascismo e retirar o que não é centro – é centrão – da tutela política do país e do domínio do orçamento da República.

*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

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