Por OSCAR VILHENA VIEIRA*
Prefácio do livro recém-lançado de Ricardo Carvalho e Otávio Dias
Visitar presos políticos no DOI-CODI, em 1969, demandava coragem, mesmo para advogados tarimbados. Exigia, além disso, criatividade e disposição para explorar as poucas frestas jurídicas deixadas pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5) para o exercício do direito de defesa daqueles que se encontravam detidos pelo regime. José Carlos Dias foi um dos mais destacados advogados a assumir essa responsabilidade, o que o levou, inclusive, a ser detido na própria carceragem da Rua Tutoia, ainda que por pouco tempo. Ao longo do regime de exceção, instalado no Brasil a partir de 1º abril de 1964, José Carlos Dias defendeu mais de 500 presos políticos, muitos deles graciosamente.
Dotado de precoce talento profissional – forjado nos embates políticos das Arcadas e nas lides do tribunal do júri, onde iniciou sua carreira –, além de um profundo compromisso com valores democráticos e humanistas, José Carlos não se deixou intimidar pelos desafios de defender os direitos humanos em um regime que transformou a tortura, as prisões arbitrárias e os desaparecimentos forçados em política de Estado. Não se calou frente a uma ditadura que, para encobrir esses crimes, institucionalizou a censura e afastou da justiça comum a possibilidade de apreciação da legalidade das condutas fundadas nos atos institucionais.
José Carlos Dias pertence, assim, a uma linhagem de advogados e advogadas que, ao longo de nossa acidentada história política e institucional, se dispuseram à difícil tarefa de empregar seus conhecimentos, seu prestígio e sua perseverança para mobilizar o direito em plena vigência do estado de exceção. É importante relembrar que o AI-5 não apenas suspendeu uma série de direitos fundamentais, como retirou do Poder Judiciário a prerrogativa de apreciar condutas de autoridades baseadas naquele mesmo Ato. Se exercer a defesa dos direitos humanos na vigência do estado de direito já não é tarefa fácil, em decorrência do estigma e do preconceito que a defesa de grupos marginalizados e vulneráveis carrega, o que dirá fazê-lo quando o poder é ocupado por grupos que subvertem a legalidade e subordinam as instâncias judiciais, a ponto de negar aos cidadãos as garantias mais essenciais?
Ao longo de mais de seis décadas de exercício profissional, José Carlos Dias se tornou uma das principais referências da advocacia criminal brasileira. Exerceu com ousadia e desprendimento a função de autoridade pública, quando convocado a assumir a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo (governo André Franco Montoro), o Ministério de Justiça (governo Fernando Henrique Cardoso), assim como a Comissão da Verdade (governo Dilma Rousseff), colocando em prática seus princípios humanistas e políticas públicas de vanguarda no campo do sistema criminal. Esta trajetória conferiu a José Carlos uma liderança serena e natural junto à sociedade civil, tendo presidido organizações como a Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo, no auge do regime militar, e, mais recentemente, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns, criada em 2019 com o objetivo de proteger a democracia e os direitos humanos após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República.
O propósito deste prefácio, no entanto, não é ressaltar as qualidades pessoais do biografado ou sintetizar sua trajetória política e profissional, pois esse já é o objeto dos instigantes relatos cuidadosamente recolhidos pelos jornalistas Ricardo Carvalho e Otávio Dias neste volume. O objetivo aqui se limita a chamar a atenção do leitor para a inserção de José Carlos Dias nessa linhagem de juristas que, a partir das trincheiras abertas por Luiz Gama (1830-1882) na luta contra a escravidão, assumiram o desafio de defender os direitos humanos em condições de extrema adversidade.
O movimento abolicionista e as ações de liberdade lideradas por Luiz Gama constituem a pedra fundacional da advocacia de direitos humanos no Brasil. Escravo em sua infância, jornalista, poeta, jornalista, líder político e, sobretudo, advogado (sem ter tido o direito de frequentar a Faculdade), foi figura central do movimento político, social e jurídico que levou ao fim da escravidão. Dentro de sua atuação ubíqua no movimento abolicionista, teve o papel de precursor do uso estratégico do direito na promoção da liberdade de pessoas escravizadas, no contexto de um sistema jurídico perverso e ilegítimo. Ao mesmo tempo que lutava politicamente contra o regime jurídico da escravidão e da monarquia, Luiz Gama empregava as regras do sistema jurídico escravocrata para defender a liberdade dos negros escravizados.
A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, é o ponto culminante de um longo e tortuoso percurso, inclusive do ponto de vista jurídico. Em 1831 surgiu o primeiro decreto proibindo a entrada no Brasil de negros escravizados, por pressão do governo inglês. Aqueles que fossem vítimas do tráfico ilegal, a partir daquela data, deveriam ser libertados. O fato é que não havia nenhuma pretensão das autoridades em cumprir com o tratado ou o decreto que proibiu a tráfico de escravos. Daí decorre a expressão “para inglês ver”, marca registrada do cinismo das elites brasileiras, em relação à disposição de cumprirem com suas obrigações jurídicas.
Quatro décadas depois da proibição do tráfico foi aprovada a “Lei do Ventre Livre”, que determinava que crianças nascidas de mulheres escravizadas a partir de 28 de setembro de 1871 estariam livres. A mesma lei autorizava que os escravos comprassem a própria liberdade. Essas medidas, voltadas à lenta flexibilização do perverso regime da escravidão, como era de se esperar, foram objeto de enormes resistências por parte de proprietários de escravos e mesmo daqueles que tinham a responsabilidade de implementá-las.
É neste contexto que se destaca um conjunto estratégico de ações judiciais promovidas por Luiz Gama, provocando o sistema judiciário a assegurar a liberdade daqueles que se encontravam “ilegalmente” na condição de escravos, embora tivessem sido traficados depois da proibição, nascidos depois de 1871 ou impossibilitados de comprarem sua liberdade, ainda que tivessem esse direito. Incansável, Luiz Gama formula teses inovadoras, angaria recursos, promove o debate público, agrega apoiadores dentro e fora da comunidade jurídica para a promoção dessas ações de liberdade.
Entre os jovens por ele inspirados, encontrava-se Rui Barbosa (1849-1923), seu conterrâneo e amigo, como demonstra a correspondência entre os dois. Rui se tornou não apenas um importante abolicionista, colocando em prática muito do que apreendeu com Luiz Gama, como uma das figuras mais importantes da República que ajudou a erigir, após o fim da escravidão. Arquiteto da Constituição de 1891, primeiro Ministro da Fazenda do governo provisório, tribuno, senador, candidato à Presidência da República – com sua campanha civilista –, Rui Barbosa deu seguimento à linhagem aberta por Luiz Gama, ao dedicar grande parte da sua advocacia à defesa do interesse público, sobretudo, à defesa dos direitos civis e políticos, em um período marcado por incessantes decretações de estado de sítio, que fizeram da República Velha um regime onde prevaleceu mais estado de exceção que o estado de direito. Rui Barbosa empregou toda sua reputação, suas habilidades e sua coragem cívica para defender os direitos de perseguidos políticos, mesmo que fossem seus adversários.
Em um sistema destituído de garantias jurídicas capazes de assegurar a efetividades dos direitos reconhecidos pela Constituição, Rui Barbosa forjou a “teoria brasileira do habeas corpus”, em diálogo com Pedro Lessa (1859-1921), então Ministro do Supremo Tribunal Federal, alargando o escopo desse remédio constitucional para proteger outros direitos civis e políticos que não apenas aqueles no campo penal. Rui Barbosa também teve uma contribuição fundamental na formulação dos parâmetros éticos da advocacia brasileira, inserindo a defesa dos necessitados entre as obrigações da profissão que então se institucionalizava.
Trabalharam com Rui Barbosa e deram segmento ao seu legado Antônio Evaristo de Moraes (1871-1939), precursor da defesa dos direitos sociais entre nós, e Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991). Este último, católico fervoroso e anticomunista, notabilizou-se pela defesa de inúmeros dissidentes políticos durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Defendeu fervorosamente mesmo seus maiores adversários no campo ideológico. Luís Carlos Prestes (1898-1990) foi, certamente, o mais célebre de seus clientes. A defesa de Henry Berger, outro comunista preso e torturado pela polícia política do Estado Novo, no entanto, é a que melhor representa a criatividade e a capacidade de Sobral Pinto de explorar as frestas do regime de exceção na defesa de seus clientes. Destituído da possibilidade de empregar garantias constitucionais suspensas pelo regime, Sobral Pinto recorre às regras de proteção aos animais, que proibiam a crueldade e os maus-tratos, além de definir as condições de confinamentos de animais, para defender seu cliente, preso em condições abjetas e submetido a suplicias ilegais.
Os exemplos de Luiz Gama, Rui Barbosa e Sobral Pinto sedimentaram o duro caminho para outras advogadas e advogados que irão se notabilizar pelo exercício da profissão em circunstâncias política e juridicamente adversas como Evandro Lins e Silva (1912-2002), que chegou ao Supremo Tribunal Federal, sendo posteriormente cassado pelo regime militar, em 1969.
São profissionais de distintas origens e com diferentes crenças políticas e ideológicas: alguns socialistas, ligados aos partidos de esquerda e ao mundo sindical; outros liberais progressistas, especialmente entre os criminalistas, marcados pelo profundo compromisso com o direito de defesa; assim como juristas católicos, influenciados pela doutrina social da Igreja Católica, promovida por João XXIII (1881-1963), que encontrou eco no Brasil, a partir de líderes como Dom Hélder Câmara (1909-1999) e Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016).
Com o recrudescimento do regime militar, especialmente após a decretação do AI-5, em 1968, advogadas e advogados como Raimundo Pascoal Barbosa (1921-2002), Heleno Fragoso (1926-1985), Dalmo de Abreu Dallari (1931-2022), Idibal Piveta (1931-2023), Mário de Passos Simas (1934-2023), Eny Moreira (1946-2022) e Mércia de Albuquerque Ferreira (1934-2003), já falecidos, assim como Marcelo Cerqueira, Airton Soares, Rosa Cardoso da Cunha, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach, Belisário dos Santos Júnior, Maria Regina Pasquale, Fernando Santa Cruz Oliveira e tantos outros e outras foram se enredando cada vez mais na defesa de presos políticos. José Carlos Dias faz parte dessa geração.
Embora tenha participado ativamente da vida política na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, José Carlos afirma nos relatos que temos em mãos que sua grande ambição durante o curso de direito era se tornar advogado no tribunal do júri. Não é fácil extrair dele o que o motivou a assumir a defesa de tantos presos políticos. Há, porém, algumas pistas que podemos perseguir para tentar compreender o que levou o jovem advogado, filho do respeitável Desembargador Theodomiro Dias, a colocar a sua carreira e eventualmente a vida em risco para defender a liberdade e a vida de outras pessoas. Não se trata de fazer aqui uma genealogia das motivações que levam alguém a assumir esse grau de compromisso. Essas relações de causalidade são muito complexas e fugidias, o que poderia levar a algum tipo de determinismo ingênuo e equivocado.
Mas, dada a forma lacônica com que o biografado responde a esse tipo de indagação, torna-se irresistível especular de que barro foi constituída a disposição do advogado, ao longo de toda sua vida, para lutar pelos direitos dos que se encontram em situação de vulnerabilidade.
A primeira pista talvez seja a emoção, por ele narrada, com a leitura de “O Navio Negreiro”, quando ainda menino. Para muitos, a poesia e a literatura podem constituir um caminho importante para a construção de empatia e alteridade. A impressão que o ferro da poesia de Castro Alves (1847-1871) deixou em sua alma jamais se dissipou. Inspirado pelo grande poeta baiano, José Carlos publicou seu primeiro livro de poesias aos 13 anos, e o segundo, aos 17.
Depois, mergulhou na vida universitária e na profissão, mas nunca deixou de escrever poemas. Ele tem dezenas não publicados, que de vez em quando saltam das gavetas e são recitados para familiares e amigos próximos. Com certeza vale a pena reuni-los em outro livro. A barbárie do tráfico de escravos da África para o Brasil, descrita por Castro Alves, parece ter marcado não apenas o garoto que gostava de poesia.
A dor e o sofrimento do outro se tornaram parte da existência de José Carlos e o mobilizaram a agir contra as injustiças que encontrou pelo caminho. Embora tenha crescido em um ambiente razoavelmente conservador, ao menos no Colégio São Luís, José Carlos parece ter herdado da geração de paulistas que participaram da Revolução Constitucionalista de 1932, como seu pai, uma ojeriza a ditaduras, tanto a do Estado Novo de Getúlio Vargas, como a do regime militar instaurado pelos militares em 1964.
O ambiente político do Largo São Francisco também é constantemente citado como fértil caldo de cultura na formação desse advogado obstinado com a defesa da liberdade. Há, porém, um elemento político que sobressai em seus relatos sobre esse período de formação, que certamente pode ter contribuído para muitas das movimentações de José Carlos Dias no futuro.
Ainda acadêmico serviu como auxiliar de gabinete na Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, então sob o comando de Antônio Queiroz Filho (1910-1963), professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e um dos fundadores, ao lado de André Franco Montoro (1916-1999), da Democracia Cristã no Brasil. Essa ligação levou o jovem José Carlos Dias a uma viagem de formação
na Europa, em companhia de outros estudantes latino americanos, no início dos anos 1960. José Carlos descreve, neste volume, uma passagem marcante em que conheceu Aldo Moro, jurista e político italiano, que chegou a ocupar o posto de primeiro ministro da Itália nos anos 1960, tendo sido sequestrado e morto, em 1978, pelas Brigadas Vermelhas. Esse envolvimento com a Democracia Cristã o levou à Juventude Universitária Católica, como tantos colegas de geração, entre eles Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014). O hu-
manismo de Queiroz Filho parece ter marcado uma geração de pessoas que entraria na vida pública brasileira nos anos seguintes.
O golpe de 1964 interrompeu ou desviou muitas dessas trajetórias. Alguns foram para a clandestinidade, outros para o exílio. Muitos, no entanto, caíram nas malhas do aparato repressivo montado pelos militares, com amplo apoio e conivência da direita civil brasileira. José Carlos Dias voltou-se para a advocacia criminal, trilhando o seu objetivo estabelecido desde o primeiro dia de aula no Largo de São Francisco. A argúcia lapidada no tribunal do júri, a resiliência adquirida no cotidiano do sistema de justiça, associada a uma rede de relações políticas construída ao longo de sua formação, contribuíram para que José Carlos Dias fosse rapidamente convocado para a dura missão de defender dissidentes e presos políticos.
Como não era filiado a partidos ou movimentos políticos, ele pôde exercer com maior credibilidade a defesa de comunistas, socialistas e mesmo pessoas que desavisadamente eram apanhadas pelos tentáculos da repressão. Assim como os que o antecederam na luta por direitos em regimes arbitrários e injustos, José Carlos Dias logo encontrou os limites jurídicos, normativos e políticos que circunscreviam sua atuação como advogado de presos políticos. Os sucessivos atos institucionais, as cartas constitucionais de 1967 e 1969, que sepultaram a democracia liberal estabelecida pela Constituição de 1946, associadas à Lei de Segurança Nacional, que emoldurava o regime de exceção, ofereciam pouco espaço para o exercício do direito de defesa, que ficou restrito à Justiça Militar. Foi naquele ambiente inóspito e fiel aos líderes golpistas que José Carlos Dias buscou encontrar espaços de proteção a seus clientes. Muitas vezes, interpunha um habeas corpus sem nenhuma expectativa de que conseguiria relaxar uma prisão. Seu objetivo era apenas localizar a pessoa detida e deixar claro que o Estado brasileiro era o responsável pelo seu destino. Como salienta Antony Pereira, por mais paradoxal que seja, o fato de que os atos de arbítrio ganharam no Brasil certa institucionalização provavelmente contribuiu para reduzir o número de dissidentes mortos, diferentemente do que aconteceu na Argentina.
José Carlos Dias, ao insistir na defesa dos seus clientes no âmbito da Justiça Militar, promoveu certo refreamento da barbárie. A covardia de membros do Ministério Público Militar e de muitos juízes militares, confrontada por advogados, mobilizou inclusive uma postura inesperadamente legalista de alguns membros do Superior Tribunal Militar. Um dos paradoxos do regime é que presidentes linha-dura, como os generais Costa e Silva e Médici, buscaram “encostar” no Superior Tribunal Militar (STM) generais legalistas, para que tivessem curso livre dentro da Forças Armadas. Esses legalistas, no entanto, contribuíram para conter o arbítrio de seus colegas de caserna. José Carlos soube, como poucos, extrair da “legalidade autoritária” alguma proteção aos direitos de seus clientes, sofrendo profundamente com as derrotas e suas consequências.
Difícil compreender a disposição de José Carlos Dias para enfrentar o arbítrio sem inseri-la no contexto mais amplo do movimento de resistência ao regime militar. Ele nunca gostou de andar sozinho. Na medida em que o regime ia se fechando, outros setores foram se articulando para resistir. Nos anos 1970, a figura de Dom Paulo Evaristo Arns foi central na criação da Comissão Justiça e Paz, em sintonia com uma ação mais ampla impulsionada pelo discreto Papa Paulo VI (1897-1978), a partir de Roma, como reação à repressão, sobretudo, no Cone Sul. Dom Paulo estabeleceu um diálogo importante com outras lideranças religiosas e setores preocupados com o avanço do autoritarismo e das violações de direitos humanos.
Na Comissão Justiça e Paz, José Carlos encontrou o respaldo e a parceria de Margarida Genevois, Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato, José Gregori (1930-2023) e inúmeros outros advogados e militantes que se tornaram companheiros de toda uma vida, além de amigos. Trabalhando lado a lado, próximos a Dom Paulo, acolhiam vítimas e familiares e desenhavam estratégias de defesa jurídica e política dos direitos humanos. José Carlos jamais agiu só. Sempre buscou agregar pessoas e setores na defesa dos direitos humanos. Seu filho, Theo Dias, presidente do Conselho da Conectas Direitos Humanos, destaca o quanto o senso de pertencimento de José Carlos Dias a um grupo de pessoas comprometidas pode ajudar a explicar sua trajetória.
Sua motivação na luta pelos direitos foi se fortalecendo com a própria experiência de resistência contra a ditadura. Ao se defrontar profissionalmente com a escalada de ilegalidades perpetradas pelo regime militar, sobretudo a tortura, as mortes, os desaparecimentos e o exílio de seus clientes, José Carlos foi se tornando mais combativo. A convivência com opositores do regime dentro da igreja liderada por Dom Paulo, da OAB, do MDB, dos movimentos sindical e estudantil, da imprensa, assim como dentro do ambiente cultural (a MPB, o teatro, a literatura) contribuíram para uma maior politização e engajamento ao longo dos anos.
A trajetória descrita neste livro é também a trajetória de uma geração, cujo fio condutor é a defesa da democracia e do Estado de Direito. Uma geração de pessoas com vocação para a vida pública e que, ainda muito jovens, desafiaram o regime militar, participaram da reconstrução democrática da Nova República, e, nos últimos anos, inspiraram os mais jovens na resistência aos movimentos autoritários do governo Bolsonaro, quando a arquitetura institucional da Constituição de 1988 foi submetida ao seu mais rigoroso teste.
A ação de José Carlos não se limitou à defesa jurídica de presos políticos, portanto. Sua atuação na idealização da Carta aos Brasileiros, que seria lida em 8 de agosto de 1977 no pátio das Arcadas, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é exemplo disso. Da mesma forma, sua militância em favor da democracia e de uma nova Constituição no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil e demais associações de classe, ao lado de Miguel Reale Jr. e outros colegas como Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), foi essencial no processo de transição para a democracia no final dos anos 1970 e nos anos 1980.
Também se deve destacar o seu senso de responsabilidade com a democracia que renascia, ao aceitar cargos públicos nos governos Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff, afastando-se provisoriamente da advocacia. José Carlos sabia que o fim da ditadura militar não daria início a um regime em que todos teriam seus direitos humanos respeitados, como a experiência no governo Montoro demonstrou. A enorme resistência dos setores reacionários e adversários dos direitos humanos, descontentes com o fim do regime de exceção, transformou-se em obstáculo à universalização do estado de direito, que décadas depois ainda não foi plenamente conquistada.
Quando parecia disposto a passar mais tempo na fazenda da família, em Santa Branca, ao lado de Regina, recebendo amigos e convivendo com filhos e netos, José Carlos foi convocado no final de 2018 para, mais uma vez, defender a democracia brasileira. Sua contribuição para a Comissão Arns, idealizada por Paulo Sérgio Pinheiro para defender os direitos humanos em face de seus eternos inimigos, encastelados na Presidência da República entre 2019 e 2022 (governo Bolsonaro), foi fundamental para reconstruir o tecido da sociedade civil brasileira, esgarçado durante as crises políticas que levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Como presidente da Comissão Arns entre 2019 e 2023, José Carlos Dias foi fundamental para a reconstrução de uma ampla frente democrática, diversa e plural em defesa da democracia e dos direitos humanos. Foi a sua autoridade moral que permitiu a elaboração do Pacto pela Vida, firmado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Ordem dos Advogados do Brasil, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Associação Brasileira de Imprensa e Academia Brasileira de Ciências, além da Comissão Arns, voltado à defesa da vida, em face das ações desastrosas de Bolsonaro no período da pandemia, que levaram à perda desnecessária de centenas de milhares de vidas.
José Carlos também teve participação fundamental nos eventos de 11 de agosto de 2022, que mobilizaram amplos setores da sociedade civil, do Movimento Negro à Federação das Indústrias de São Paulo, passando pela Central Única dos Trabalhadores e pela Federação Brasileira de Bancos, além de outros setores da sociedade e da economia brasileira que não se deixaram seduzir pelo obscurantismo e se uniram na defesa do Estado democrático de direito. Coube a José Carlos Dias – que havia idealizado com amigos de geração a Carta aos Brasileiros de 1977, marco importante do processo que levou ao fim do regime militar – a leitura da Carta em Defesa da Democracia e do Estado de Direito, elaborada em 2022 pelas entidades da sociedade civil, deixando claro que a democracia brasileira não seria mais uma vez suprimida.
O percurso de José Carlos Dias tem sido marcado por enorme coerência política, correção moral e competência profissional, além de um forte compromisso com a democracia, o pluralismo, a tolerância e, sobretudo, com a defesa dos direitos humanos. Esse caminho o elevou a uma posição de reserva moral em uma sociedade marcada pelo arbítrio, pela violência e desigualdade.
Seu percurso tem, além do mais, servido de inspiração para novas gerações de advogadas e advogados preocupados com a realização da justiça, como aqueles que se reúnem em organizações como a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Pro Bono ou o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, entre outras organizações. Seus filhos, Theo, Otávio, Celina e Marina, são exemplo de seu legado, e, cada um ao seu modo e em sua área de atuação, têm dado sua contribuição para um mundo mais justo.
É intrigante constatar que em uma mesma pessoa podem coabitar tão harmoniosamente coragem, retidão moral e combatividade, com uma sensibilidade de poeta, um humor e uma despretensão militantes; e tudo isso abrigado no mais largo dos sorrisos.
Boa leitura!
*Oscar Vilhena Vieira é professor da FGV Direito SP e membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns.
Referência
Ricardo Carvalho e Otávio Dias. Democracia e liberdade – a trajetória de José Carlos Dias na defesa dos direitos humanos. São Paulo, Alameda, 2024. [https://amzn.to/4fhPP3E]
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