Por DÉBORA MAZZA & AFRÂNIO CATANI
Considerações sobre a exposição do fotógrafo tcheco, em cartaz em São Paulo
Josef Koudelka (1938) nasceu em uma pequena cidade da região da Morávia, na antiga Tchecoslováquia. Formado em engenharia em 1961 organizou, neste mesmo ano, sua primeira exposição fotográfica. Trabalhou, em seguida, como engenheiro aeronáutico até 1967, quando decidiu abandonar a profissão e dedicar-se exclusivamente à fotografia.
Josef Koudelka regressara a Praga havia apenas dois dias, retornando da Romênia, onde fora captar imagens do povo romani, quando se deu a invasão soviética na Tchecoslováquia. Ele fotografou tudo, registrando a entrada das forças militares do Pacto de Varsóvia.
Em 1970 conseguiu um visto de trabalho de três anos e fugiu para a Inglaterra, onde pediu asilo político e lá viveu por mais uma década. Incorporou-se à Magnun Photos e fez trabalhos por toda a Europa, tendo recebido vários prêmios e bolsas, que lhe permitiram dar continuidade à sua atividade. Tornou-se cidadão francês em 1987 e retornou à Tchecoslováquia pela primeira vez em 1990. Atualmente vive na França e em Praga, continuando a trabalhar.
A exposição reúne três séries fotográficas realizadas entre as décadas de 1960 e 1980. Como informa o folheto da exposição do IMS, ainda atuando como engenheiro, Josef Koudelka “pôs-se a trabalhar para teatros de Praga e, sobretudo, a viajar para registrar a vida das comunidades ciganas em seu país natal.” Os temas do nomadismo, liberdade e independência que constatou entre os ciganos acabariam por ganhar novos sentidos para o fotógrafo “após a invasão soviética que, em agosto de 1968, pôs fim à Primavera de Praga e à esperança de um socialismo democrático”.
Quando foi para o exílio na Europa Ocidental em 1970, Josef Koudelka, ele mesmo, “entregou-se a uma vida sem domicílio fixo, nas pegadas de ciganos, peregrinos, andarilhos – em suma, de formas de vida avessas ao controle social e à modernidade vertiginosa”.
Ciganos
“Com os ciganos, tudo era teatro também. A diferença é que ninguém havia escrito a peça, e também não havia diretor – só havia os atores. Era real, era a vida…só me cabia aprender a reagir diante daquilo” (Josef Koudelka).
As fotos dessa série se constituem em registros clássicos da fotografia mundial. Foram feitas em 1962 e 1970, quando Josef Koudelka percorreu inúmeros acampamentos romani no leste da Eslováquia, mas também na Boêmia, na Morávia e na Romênia. Ele fotografava a vida cigana “como uma espécie de teatro a céu aberto”.
Em 1967 ele as exibiu pela primeira vez e, em 1968, com o artista gráfico Milan Koprivo, editou-as, mas o livro não pode ser publicado “em razão da ocupação soviética da Tchecoslováquia ao fim de agosto de 1968.” Apenas em 1975, Koudelka e o editor Robert Delpire conseguiram editá-las, numa publicação em francês e inglês. Em 2011 o livro saiu em seis línguas, “na forma como havia sido originalmente concebido quase meio século antes”.
Praga, 1968
“Nessas fotos, não importa quem é russo e quem é russo e quem é tcheco. O que importa é quem está de arma em punho e quem não está. E, na verdade, aquele que não está é o mais forte, ainda que isso não seja evidente à primeira vista” (Josef Koudelka)
Josef Koudelka nunca havia trabalhado antes como fotojornalista, mas logo que soube, na manhã de 21 de agosto de 1968 da invasão da Tchecoslováquia por cinco exércitos do Pacto de Varsóvia, passou a fotografar tudo o que se passava nas ruas. Fez isso durante uma semana. Algumas fotos foram contrabandeadas para fora do país, especificamente para a agência Magnum, em Nova York, e terminaram por sair em jornais do mundo inteiro.
Para proteger o fotógrafo e sua família, a Magnum creditou as fotografias apenas com as letras P. P. (Prague Photographer, o ‘fotógrafo de Praga’). Temendo represálias, Josef Koudelka tomou o caminho do exílio em 1970, pois a polícia secreta do país poderia identificar a autoria das fotos. Apenas em 1984, após a morte de seu pai, assumiu a autoria do conjunto das imagens que registrou. Tais fotos só foram publicadas na Tchecoslováquia em 1990.
O fotógrafo britânico Ian Berry (1934) assim se expressou a respeito da ação de Josef Koudelka em Praga: “O único outro fotógrafo que eu vi era um demente completo com umas câmeras velha-guarda penduradas no pescoço e um caixote de papelão pendente do ombro. Ele avançava direto para os russos, subia nos tanques e fotografava abertamente. A multidão o apoiava, intervindo e cercando o sujeito quando os russos tentavam arrancar seus rolos de filme. Eu não sabia se aquele homem era o mais corajoso ou o mais maluco de todos”.
Exílios
“Nunca fique muito tempo no mesmo lugar… Quando você pára em algum lugar, as coisas começam a grudar em você. Quando você vai de um lugar para outro, você está se limpando” (Josef Koudelka)
A partir do momento em que emigrou, em 1971, Josef Koudelka ganhou plena liberdade e, para poder fotografar de forma ágil, passou a viver de forma modesta, deslocando-se constantemente por Espanha, França, Portugal, Irlanda e Grã-Bretanha, tornando-se um fotógrafo nômade, como grande parte de seus fotografados.
“Ao longo das décadas de 1970 e 1980, retratou modos de vida em vias de desaparecer, mas também espaços desabitados, animais perdidos em áreas densamente construídas, paisagens e naturezas mortas. Trabalhando com metáforas visuais, contando a história de um mundo em que os seres humanos procuram em vão por seu lugar”.
Em 1988, publicou o livro Exílios, que voltou a sair, com pequenas modificações, em 1997 e 2014.
No artigo de Alessandra Monterastelli sobre a exposição, o fotógrafo declarou que, quando jovem, vagava por vários países acompanhado de uma muda de roupa e a câmera, não ficando mais de três semanas no mesmo lugar. “Eu sabia que não precisava de muito para funcionar. Apenas um pouco de comida e uma boa noite de sono. Aprendi a dormir em qualquer lugar e sob qualquer circunstância”.
Henri Cartier-Bresson o alertou para que ele não perdesse o olhar. Josef Koudelka respondeu que “nasceu uma pessoa visual” e nunca trocou seu olhar por dinheiro e não aceitou trabalhos encomendados. Disse também que nunca contou histórias. “Eu queria tirar uma única foto que contasse várias histórias para pessoas diferentes”.
Numa conversação com Hervé Guibert (1955-1991), Josef Koudelka definiu o que considerava ser, talvez, o seu interesse máximo enquanto profissional da fotografia. O diálogo é o seguinte:
Esses traços que você procura, você saberia defini-los?
O que eu sei é que só me interessa o que está terminando, o que está desaparecendo, e não o que está por vir.
*Débora Mazza é professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da UNICAMP. Autora, entre outros livros, de Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira (Editora da Unicamp).
*Afrânio Catani é professor sênior da Faculdade de Educação da USP e professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ (campus de Duque de Caxias).
Referência
Josef Koudelka, fotografias: ciganos, Praga 1968, exílios
Exposição em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS) em São Paulo até 15 de setembro de 2024.
Bibliografia
Alessandra Monterastelli. Josef Koudelka foi um artista andarilho que retratou a violenta invasão de Praga. “ilustrada”, Folha de S. Paulo, 05.06.2024.
KOUDELKA. Josef. Magnun Photos.
https://www.magnumphotos.com/photographer/josef-koudelka
KOUDELKA. Josef. Ciganos, Praga 1968, Exílio. In Folheto Exposição Instituto Moreira Salles (IMS), 2024, p. 1-20. Fonte disponível: https://ims.com.br/exposicao/josef-koudelka_ims-paulista/.
Miguel Del Castillo; Samuel Titan Jr. Koudelka: Ciganos, Praga 1968, Exílios. Folheto. São Paulo. Instituto Moreira Salles, 2024.
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