Josep Borrell

Imagem: Samuel Sweet
image_pdf

Por EDUARDO VASCO

O duplo padrão por trás do aparente humanismo de Josep Borrell

No início de novembro, o alto representante da União Europeia para as Relações Exteriores e a Política de Segurança, Josep Borrell, viajou a Kiev para sinalizar que os europeus continuarão seu forte apoio às Forças armadas ucranianas na guerra contra a Rússia.

A visita se deu logo depois da vitória nos EUA de Donald Trump – que já indicou inúmeras vezes que pretende desengajar o seu país do conflito. “Temos apoiado a Ucrânia desde o princípio e hoje transmito a mesma mensagem: apoiaremos em tudo que pudermos”, afirmou o diplomata no dia 9 de novembro de 2024.

Quando da estadia de Josep Borrell em Kiev, o Instituto da Economia Mundial de Kiel, na Alemanha, calculava que a União Europeia já havia destinado 125 bilhões de dólares ao governo do presidente Volodymyr Zelensky desde o início da intervenção russa, em fevereiro de 2022. Isso é mais do que o enviado pelos EUA (90 bilhões de dólares).

Ao mesmo tempo em que defende de forma contundente a Ucrânia, Josep Borrell tem sido um forte crítico do extermínio de palestinos por Israel em Gaza. Já chamou a situação no enclave palestino, onde mais de 44.000 pessoas foram mortas por Israel, de “tragédia humana” e “a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial”.

Também indicou que Israel poderia estar cometendo crimes de guerra e propôs, ainda em novembro, a suspensão das conversas entre União Europeia e Israel devido às violações dos direitos humanos e do direito internacional em Gaza.

Apesar da adoção de uma postura crítica sobre a atuação de Tel Aviv, é um absurdo considerar as posições do chefe da diplomacia europeia como antissemitas – algo que o gabinete de Benjamin Netanyahu tem feito. Em 2022, ficou famosa sua declaração de que o extermínio de 5 milhões de judeus pelos nazistas alemães na II Guerra foi “a maior tragédia da história da humanidade”.

Uma foto tirada pelo repórter Gleb Garanich, da agência Reuters, contudo, ajuda a jogar luz sobre o duplo padrão por trás do aparente humanismo de Josep Borrell. Quando visitava uma exposição de equipamentos bélicos usados pelos ucranianos no conflito, ele passou diante de um tanque cheio de pichações e desenhos feitos pelos militares. Eles indicam que o tanque pertencia ao famigerado Batalhão Azov, pois havia o desenho de seu escudo, com um Z cortado, ao lado de uma suástica.

O Z cortado, dentro do escudo do Azov, é a Wolfsangel, um dos muitos emblemas utilizados pelos nazistas alemães. E a suástica – bem, a suástica…

O Batalhão Azov é um dos mais notórios participantes do lado ucraniano na guerra. Aliás, ele foi fundamental para o início da guerra. Foi fundado em 2014 por elementos neonazistas que formavam a tropa de choque do Euromaidan, revolução colorida que derrubou o então governo ucraniano e o substituiu por uma junta influenciada pelos grupos de extrema-direita que, como o Azov, tornaram-se proeminentes na política ucraniana desde então. O Azov esteve na linha de frente da investida do novo regime para suprimir as revoltas no Donbass contra o golpe de Estado, o que gerou o conflito que vemos até hoje.

“Os LGBT e as embaixadas estrangeiras dizem que não foram tantos os nazistas que participaram do Maidan, que só uns 10% eram [militantes] ideológicos”, disse, no início de 2022, Evgeni Karas, líder do C14, uma milícia neonazista. “Se não fosse por esses 8%, a efetividade [do Euromaidan] teria caído 90%”, continuou, acrescentando que, sem isso, o Euromaidan não teria passado de uma “parada gay” – esse tipo de reconhecimento só os extremistas mais descarados têm coragem de fazer.

O movimento que levou à derrubada do então mandatário, Viktor Yanukovich, e à ascensão das organizações de extrema-direita, teve origem na insatisfação da União Europeia com a postura do presidente ucraniano, que preferiu manter o status de neutralidade da Ucrânia ao não assinar um acordo de livre-comércio com o bloco.

Uma das antecessoras de Josep Borrell na chefia da diplomacia da União Europeia, Catherine Ashton, logo realizou viagens à Ucrânia junto com Victoria Nuland, secretária-assistente do Departamento de Estado dos EUA, onde se encontraram com representantes dos grupos neonazistas. A fachada pretensamente democrática dos protestos, as ONGs, tiveram amplo financiamento da União Europeia e dos EUA, desde muitos anos antes do Euromaidan.

Triunfantes, os membros do Pravy Sektor e do Svoboda – outros agrupamentos neonazistas – assumiram cargos no judiciário, no Ministério da Defesa e em agências de segurança nacional. Seis dos novos governadores impostos pelo novo regime eram membros do Svoboda, que até 2004 se chamava Partido Nacional-Socialista da Ucrânia. O C14, antiga juventude do Svoboda, assinou, em 2018, um acordo com a prefeitura de Kiev para patrulhar as ruas da cidade, significando uma incorporação às forças oficiais.

Já sob o mandato de Volodymyr Zelensky, foi a vez do Azov ser incorporado à Guarda Nacional, como regimento. Sua milícia, que vigiava as ruas, passou à supervisão do Ministério do Interior, sendo enviada para operar por todo o país em conjunto com a polícia nacional. No final de 2021, Dmytro Yarosh, ex-líder do Pravy Sektor entre 2013 e 2015, tornou-se assessor do comandante-em-chefe das forças armadas ucranianas.

Em 2020, o parlamento ucraniano estabeleceu o aniversário de sete colaboradores notórios da ocupação alemã da Ucrânia na II Guerra Mundial como datas comemorativas oficiais. Entrementes, os membros do Azov ajudavam Volodymyr Zelensky a perseguir opositores. Em 2019, invadiram a casa de Viktor Medvedchuk e, um ano depois, o principal opositor do regime foi preso por “traição”, segundo Volodymyr Zelensky.

Os neonazistas não cessavam de receber prêmios e cargos no alto escalão do governo. Em dezembro de 2021, o presidente condecorou uma liderança do Pravy Sektor como “Herói da Ucrânia”. Isso indica o prestígio desses setores dentro do regime, mas também um pagamento pela sua atuação decisiva no campo de batalha.

São os grupos neonazistas que estão na linha de frente da guerra, desde o seu início. Os moradores do Donbass contam até hoje as histórias tenebrosas dos horrores cometidos pela infantaria ucraniana no período mais duro da guerra, entre 2014 e 2015. Em Lugansk, onde estive no primeiro semestre de 2022, quem mais barbarizou foi o Batalhão Aidar. Outra organização de combatentes neonazistas, o Aidar – assim como o Azov – recebeu financiamento do oligarca Igor Kolomoisky, o principal patrocinador de Zelensky.

Os habitantes dos vilarejos em Lugansk nunca vão esquecer, por exemplo, do fuzilamento de 18 pessoas ao lado da igreja de Novosvetlovska, ou do bombardeio da própria igreja, onde dezenas de pessoas se abrigavam. Logo após a intervenção russa, Zelensky nomeou um ex-comandante do Batalhão Aidar como novo administrador-geral do oblast de Odessa.

Assim como as ONGs de fachada que abriram o caminho para o neonazismo se instalar no poder na Ucrânia, esses partidos e milícias armadas também foram – e continuam sendo – financiados pelos EUA e a União Europeia. Em 2016, uma parte dos armamentos enviados pelo Pentágono foi destinada ao Azov. No final de 2017, oficiais do exército americano prestaram assessoria no terreno àquele grupo. O Azov também recebeu instrutores e lançadores de granadas britânicos dos países da OTAN logo após a intervenção russa, assim como o Pravy Sektor.

Relatório do Instituto de Estudos Europeus, Russos e Eurasiáticos da Universidade George Washington publicado em setembro de 2021 apontou que o grupo “Centuria”, também de orientação neonazista e formado por oficiais do exército ucraniano, participou de exercícios militares conjuntos da França, Alemanha, Polônia, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.

Concomitante à tomada das instituições do Estado pela extrema direita fascista, a Ucrânia vem se despedaçando economicamente. Isso não se deve apenas à guerra, mas também ao alto preço pago por Kiev pela integração informal à União Europeia: o repasse dos bens públicos para mãos privadas, sejam de oligarcas nacionais ou de empresários e bancos estrangeiros. São as “reformas” que um governo subserviente faz para se adequar à vontade dos seus tutores.

“A Ucrânia continua avançando com reformas fundamentais para se tornar membro da UE, ao mesmo tempo que combate uma guerra de agressão”, disse Borrell em outubro, ao apresentar o relatório anual sobre a expansão da União Europeia. Afirmou ainda que o bloco “continuará apoiando a Ucrânia em ambas as frentes”.

A União Europeia já forneceu mais de 980 mil munições para a guerra da Ucrânia contra a Rússia, e Borrell prometeu chegar a um milhão até o final do ano. Cerca de 15 mil civis foram mortos no Donbass desde 2014, graças a esse tipo de incentivo.

*Eduardo Vasco é jornalista. Autor, entre outros livros, de O povo esquecido: uma história de genocídio e resistência no Donbass. [https://amzn.to/3AjFjdK]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES