Justiça como vingança

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Por Simão Pedro*

Para Moro o importante era fazer “justiça” como uma vingança do tipo social, em que o respeito às regras e formalidades legais eram o de menos

Moro foi um juiz provinciano, tacanho e cruel com os inimigos.  É a cara cínica da nossa elite conservadora e fascista. Desponta como candidato favorito da direita a bater Bolsonaro, porém para chegar ao seu objetivo, o caminho será árduo e cheio de armadilhas, idêntico ao que ele próprio criou para tirar os seus inimigos do caminho.

Como me escreveu o amigo Marcos Antonio Rocha Júnior, “Moro se constituiu como persona público sendo um juiz justiceiro”. Para ele, a defesa do Estado Democrático de Direito, o respeito ao devido processo e às garantias individuais nunca foram prioridades. O importante era fazer “justiça” como uma vingança do tipo social, em que o respeito às regras e formalidades legais eram o de menos. Sempre foi amparado por uma máquina politico, financeira e midiática para que seu arbítrio tivesse um verniz jurídico, ganhando assim o clamor público pelo “fim da impunidade e da corrupção.”

Assim, se o que importa combater é a impunidade, então o importante é a punição, a vingança social. Ou seja, o resultado importa mais que o processo. Direitos Humanos e garantias individuais tornaram-se secundário. Isso ficou mais do que demonstrado pelo site The Intercept,  com o vazamento dos diálogos entre os procuradores  e Moro, no escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato e colocou a nu os métodos e intenções do então juiz.

Ao perseguir as lideranças do PT e ao minar o governo Dilma na sua sustentação política, com ações espetaculosas como a condução coercitiva ilegal contra Lula para desmoralizar o ex-presidente, outros políticos e empresários, Moro cresceu na aprovação da opinião pública fabricada e acreditou ter se tornado um deus ou no mínimo, um “mito” como ainda lhe apelidam.

A cruzada moralista a que se prestou, levou Moro a ser o principal ator da oposição aos governos populares. Seu papel foi base para que as elites econômicas e políticas defenestrassem o PT do governo e viabilizassem a implantação da agenda ultraneoliberal, que tem retirado os direitos da classe trabalhadora conquistadas ao longo das ultimas décadas, enfraquecida a soberania nacional e dilapidado dos recursos naturais e empresas estatais.

Vale lembrar ainda a forte ligação de Moro com o DEA, Departamento de Estado dos EUA, órgão que desenvolve as ações secretas do império norte-americano no mundo. Moro tornou-se figurinha carimbada nos cursos e eventos promovidos nos EUA e suas ações como juiz na Lava Jato causou direta e indiretamente a derrocada da indústria brasileira na cadeia da construção civil e petrolífera gerando desemprego enorme no setor e o enfraquecimento da gigante Petrobras, que passou a ter grande protagonismo internacional sob os governos Lula e Dilma. Nunca me esqueço de que quando estourou o escândalo da Vaza Jato pelo The Intercept, Moro vazou para os EUA sem mesmo ter uma agenda definida por lá, certamente buscando se aconselhar ou pedir socorro para seus verdadeiros chefes.

Karl Marx, na A Ideologia Alemã, cunhou a seguinte afirmação: “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. E assim ocorreu aqui. As classe dominante, a que detêm o poder econômico, fez a maioria de a sociedade brasileira acreditar que o causador dos nossos maiores problemas  era a corrupção do Estado e que foi o PT o “partido que mais roubou” ou que “liderou a maior corrupção da história” e o juiz justiceiro teve papel determinante na construção dessa narrativa.

Seu principal troféu foi a prisão de Lula, em processo forjado e suspeito, sem qualquer base fática razoável, tudo para tirá-lo do jogo eleitoral de 2018.  O mesmo conjunto de forças construiu a falsa aparência de que as regras do jogo democrático foram mantidas e que as instituições estavam em pleno funcionamento para “legitimar” a eleição do seu candidato escolhido que foi Geraldo Alckmin.

Como parte do plano deu errado, ou seja, o candidato escolhido pela Direita, do PSDB, não decolou, apelou-se para o pitbull que vivia preso na jaula para que seus rosnados e latidos ameaçadores estivessem sob controle, mas que, desde o golpe de 2016, tinha sido solto para agregar setores da extrema-direita ao plano. Bolsonaro não topou mais voltar para a jaula e, principalmente depois do episódio da facada e com Lula fora do páreo, ofereceu-se para derrotar o PT. No desespero e apelando para o vale-tudo da produção de fake news e sua disseminação pela rede de Whatsapp, as elites aceitaram a proposta. Depois, “se não der certo, tira, como tiramos a Dilma” era outra ideia das classes dominantes assimilada pelos que foram contaminados pela onde de ódio e ressentimentos contra o PT e Lula. O plano foi custoso, mas deu certo!

Mas, era preciso colocar uma coleira em Bolsonaro, para controlar seu ímpeto autoritário e as relações de seus filhos com as milícias no Rio de Janeiro. Paulo Guedes, o “posto Ipiranga” que responderia pela condução da economia, foi encarregado de sondar e convidar Sérgio Moro para ser um “superministro” e na Justiça garantir a legalidade das ações do futuro governo e unir o bolsonarismo das ideias autoritárias e conservadoras, com o lavajatismo e seu ideário moralista de fachada. Uma baita de uma ideia que, de quebra, garantiria um quê de legalidade às ações do governo e aquilataria um grande apoio popular para ele.

Para compensar o desgaste e escândalo de proporções internacionais que geraria a ida de Moro para o governo, afinal, como juiz, suas ações influenciaram diretamente o resultado eleitoral, ele foi vendido como uma espécie de moderador de Bolsonaro. Eu nunca considerei ser essa a situação. A meu ver, ele seria o viabilizador da formalidade do arbítrio num governo autoritário. Até deu sinais disso, inclusive no projeto de “combate ao crime” que enviou, mas que foi desidratado no Congresso Nacional. Para Lula, na verdade, “o presidente Bolsonaro é criação do Moro”, pois foram as suas ações como juiz que permitiram a ascensão e vitória do tacanho e radical extremista de direita em 2018. Para a esposa de Moro, ele e Bolsonaro “são uma coisa só”.

Moro, em 2019, conseguiu sobreviver às revelações do The Intercept, mas enrolou-se nas teias de golpes e artimanhas que construiu com a Rede Globo, com os tucanos e com a turma do Temer e um grupo de procuradores, a ponto de o Sistema não conseguir manter Lula na prisão, pois as revelações tornadas públicas pelo site davam conta da ação do juiz justiceiro que na prática comandava a ação dos promotores, o que é ilegal, influindo na produção de provas de um lado e na malandragem de ignorar outras, de apressar os prazos do processo, no vazamento seletivo de áudios e informações para a grande imprensa. Ou seja, jogou às favas os princípios de imparcialidade e isenção de um magistrado, crimes que em país mais sério teriam levado ao afastamento da função e tornado o juiz suspeito, anulando suas decisões.

Como ministro, Moro foi um fracasso, sofrendo derrotas no Congresso e mesmo dentro do Governo. Tentou legalizar a proposta de prisão após condenação em 2ª instância – tese derrubada no STF e que permitiu a liberação de Lula – e a que permitiria às forças policiais a licença para matar através da excrecência chamada excludente de ilicitude, ambas através de um pacote de medidas legislativas que acabaram sendo desidratadas pelo Parlamento e teve que engolir a criação da figura dos juízes de garantia que, se existissem durante os processos da Lava Jato, teria tirado dele a possibilidade de julgar os acusados já que ele foi o instrutor dos processos. Esperava que Bolsonaro vetasse essa proposta incluída na Lei pelos parlamentares, mas o presidente não o fez. Perdeu também o controle do COAF, órgão que controla a movimentação financeira dos brasileiros e empresas.

Assim, a condição inicial de “superministro” foi sendo esvaziada e ele perdendo gradualmente força interna, apesar de manter os altos índices de aprovação na opinião pública, protegido que sempre foi pela grande mídia, em especial a Rede Globo, que mantém com o mesmo uma parceria estratégica. Perante a sociedade e setores da opinião pública, sua figura foi diminuída ao fazer vistas grossas e mesmo proteger, de forma contraditória com seus discursos e ações anteriores, aos crimes e acusações contra figuras do governo ou membros do clã Bolsonaro. Começou passando panos no crime confesso de uso de caixa 2 em campanha do ministro Ônix Lorenzoni, ignorou os desvios de recursos do Fundo Eleitoral pelo ministro do turismo e presidente do PSC, partido usado nas eleições pela familícia e seus políticos aliados, crimes que ficaram popularizados como “laranjal do PSL”, fez pouco caso  nas investigações dos assassinatos bárbaros da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson no RJ por bandidos milicianos íntimos do clã.

Bolsonaro engoliu Moro no seu governo, mas nunca admitiu que o ministro tivesse mais aprovação e popularidade que ele e passou a tratar o ministro como mero subalterno e exigir-lhe o controle da Polícia Federal para controlar e influenciar investigações sobre os crimes praticados por seus filhos e parlamentares da base do governo. Isso, somado à discordância com o comportamento do presidente em relação à crise do Coronavírus e o desconforto com a demissão sumária do colega ministro da Saúde, selou o racha da aliança do lavajatismo com o bolsonarismo na demissão de Moro.

Moro como mau político que sempre foi, aproveitou a oportunidade para sair atirando em Bolsonaro, acusando-o de pretender controlar as ações e investigações da PF e acabar com sua independência. Com isso, buscou se desvincular do presidente e recuperar a fama de paladino do combate à corrupção e da honestidade. Saiu se posicionando como candidato à presidente e usando a imagem positiva bem definida nas pesquisas para tentar ser a alternativa da direita em 2022.

Ele sabe que Coronavírus está descontrolado pela visão genocida do presidente em ignorar a gravidade da doença e ainda incentivar a população sair às ruas e ignorar o isolamento social. Ele certamente também já percebeu que a economia afundou ainda mais e dificilmente se recupera, com Paulo Guedes sendo o grande culpado dessa situação com suas políticas fracassadas em gerar crescimento e empregos, mas permanecendo como o único fiador junto com os militares do governo fascista.

Mas, na pressa, cometeu erros, como o de confessar um crime cometido quando, ao aceitar o convite para o ministério, negociou o pagamento ilegal de uma pensão vitalícia para sua família, “caso viesse a faltar”, o que é tipificado como crime de corrupção passiva pelo Artigo 317 do Código Penal. E também foi “delatado” pelo presidente que o tachou de mentiroso e o acusou de propor a troca do superintendente da PF com sua nomeação para uma vaga no STF. Isso reforçou a ação da defesa do de Lula junto à Corte de Direitos Humanos das Nações Unidas pela anulação das sentenças absurdas do sistema judiciário brasileiro contra o ex-presidente e a ação pela suspeição de Moro junto ao Supremo Tribunal Federal, ambas ainda sem decisão.

Agora sem os cargos de juiz e ministro, se Moro perder a superproteção que amealhou na Lava Jato com certeza vai entregar muita gente. Porém, ele sabe que é um arquivo vivo. Entregaria mais coisas do presidente, da família e de outros personagens, podendo se incriminar em definitivo? Resta a sua candidatura à presidência que depende do respaldo da Globo, dos norte-americanos, da Lava Jato e dos tucanos. Mas os inimigos deles sempre foram o PT e principalmente Lula e por isso Moro virou o que virou. Vão querer ajustar o canhão de vez contra o Bolsonaro que, até pelas pesquisas atuais, mesmo após a demissão dos ministros, ainda se mantém como força política relevante? Ou vão continuar, tendo Guedes e os militares como fiadores, mantendo o esquema atual e rifar o Torquemada de Curitiba? Guedes é o principal ator econômico no governo do esquema que deu relevância a Moro. Se cair pode ser que algo mude de maneira mais radical, mas pode ser também que o Mercado decida apenas mudar o titular para manter a mesma política econômica de destruição de direitos e do patrimônio público.

À parte desse jogo político interno entre criador e criatura, a pandemia traz uma nova realidade para o país. O atual governo aposta no caos social para capitalizar, por exemplo, a Renda Básica Emergencial e manter coesão política do fascismo e seu eleitorado. O povão, mediado pelos “intelectuais orgânicos” do bolsonarismo – pastores neopentecostais, líderes do agronegócio, empresários inescrupulosos entre outros – credita a Bolsonaro essa renda, pois têm precedente com a liberação do FGTS e do PIS/Pasep.  Sua base política controla a narrativa política com a tática de definir um inimigo por ocasião, entre eles está Moro.

Porém, a pandemia está corroendo socialmente e economicamente o País. O efeito da pedra jogada no lago dos panelaços da classe média pode alcançar o resto da sociedade? Não se sabe, já que ela se amalgou no antipetismo e no fascismo. A aposta de Bolsonaro no caos, negando a ciência e a realidade cruel do vírus, é uma aposta de altíssimo risco, porque subestima a ação do Covid-19, como ocorreu inicialmente na Itália, na Espanha e nos EUA, com resultados desastrosos e que agora se avizinha no Brasil.

Nesse cenário Moro tem uma vantagem já que um dos seus principais aliados, a rede Globo, tem mantido uma cobertura crítica em relação à incompetência do governo federal em lidar com a pandemia e principalmente sobre o papel nefasto de Bolsonaro que visa incentivar ainda mais os contágios e as mortes. A ideia é provocar além do desgaste de imagem um movimento que leve à saída do atual mandatário. Porém, fora das instituições que propiciaram poder e glória e com a nova realidade colocada pela pandemia, os setores majoritários podem eleger um novo ator político, mais afeito ao seu ninho, como o atual governador de SP João Dória, que tem se destacado no combate ao Coronavírus e confrontado Bolsonaro em suas ações genocidas, coisas que Moro nunca fez até o momento da sua saída.

*Simão Pedro foi deputado estadual (2003-2015) e secretário municipal de serviços na gestão Haddad

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