Kafka – contos de fadas pra kabeças dialétikas

Dan Salas e Maurilio Domiciano em cena de Kafka: contos de fadas pra kabeças Dialétikas. Fotografia de bea brito.
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Por ZÓIA MÜNCHOW*

Considerações sobre a peça teatral, dirigida por Fabiana Serroni – em cartaz em São Paulo.

Fernanda Torres afirmou que “Zé Celso semeou cultura com o CU maiúsculo” (TORRES, 2023). Ela tinha razão. Tal afirmação se deu no contexto do sétimo dia da morte de José Celso Martinez Corrêa e procurou marcar a radicalidade da criação do artista ao longo dos seus 86 anos de vida. À época do falecimento de Zé Celso a classe teatral perguntava-se sobre os destinos do Teat(r)o Oficina. Aainda não se passaram dois anos e muita coisa se passou no Oficina que continua a semear “cultura com o Cu maiúsculo”; a peça Kafka: contos de fadas pra kabeças dialétikas é uma prova disso.

A peça, desde o título, elege um público: Kabeças Dialétikas. A palavra dialética vem do grego e seu sentido etimológico remete a raciocínio, argumento, habilidade de conversar. O teatro de Fabiana Serroni é para cabeças com habilidade para perguntar e responder, cabeças capazes de entrar numa conversa. Cabeças que fazem o jogo da dialética em seu movimento infinito. É na cabeça do público que o movimento dialético dos contos levados à cena acontece. O teatro de Fabiana Serroni não nos coloca a pensar como a reflexão fabular da qual ao final retira-se uma lição. Encontramo-nos num processo muito diferente, na produção atual do próprio pensamento, pensamento em ato.

É no corpo da nossa cabeça que as conexões entre as cenas se concretizam. A Rua Lina Bo Bardi faz um desvio em nossa cabeça e corpo tornam-se parte da arquitetura do Teat(r)o Oficina. É em nós, público atuador, que tudo se passa. Entramos seres humanos e saímos em estado de devir animal, vegetal, mineral. É da lei, da sociedade, da cafajestagem, que o Kafka de Fabiana Serroni nos faz fugir. As minorias estão em cena. O Kafka de Fabiana Serroni, para sintetizar com uma expressão deleuziana, é um Kafka menor (DELEUZE; GUATTARI, 2003). Não é a representação que interessa, devir é o que se deseja.

A afirmação da diferença em Kafka: contos pra Kabeças Dialétikas formula-se como contágio minoritário da lei (do falo, do humano, da cultura, do homem, da sociedade, da política, da moral); trata-se de uma cartografia feita das linhas de fuga das ervas daninhas que se espalham indiferentes aos desígnios do jardineiro. Um convite a abandonar a lei do homem, único tomado como legitimamente universal, deixar ruir a representação do humano por excelência.

O teatro de Carmelo Bene, conforme Gilles Deleuze, é um teatro crítico, pois opera por subtração e amputação (DELEUZE, 2010, p. 28). Fabiana Serroni opera por amputação e substituição: amputa o homem para revelar sua onipresença na cultura e o substitui pela figura do outro – o estrangeiro, o indígena, o feminino, o animal. No lugar de Pedro Vermelho, macaco que é personagem central de Relatório para uma academia (Cf. PRECIADO, 2022), na montagem do Oficina temos uma macaca. Essa amputação e substituição faz o próprio Kafka gaguejar. Por palavras diversas, no cruzamento das ruas Jaceguai e Lina Bo Bardi, Kafka entra em devir.

O que faz um camponês peruano de ancestralidade indígena desejar entrar na lei? Por que ele pede para entrar na lei? Como a lei funciona na comunidade? E numa sociedade de cafajestes, como ela funciona? Por que um indígena da etnia Fulni-ô deseja virar índio? Conforme consta na sinopse da peça: “Entre narrativas de colonização e resistência, Kafka ressurge no Brasil, ecoando vozes indígenas e imigrantes, reafirmando sua atualidade em tempos de desumanização e embates civilizatórios” (Sinopse […], 2025).

Discordamos da ideia de que vivemos em tempos de desumanização; a peça nos mostra que é a humanização o problema. Vivemos em tempos de humanização, e o humanismo é uma praga que nos faz crer nas hierarquias impostas como padrão dominante. Não é a animalidade da macaca o problema, mas, sim, seu processo de humanização: ela é embebedada, estuprada, manipulada e tornada manipuladora. Ela é encamisada com o branco da civilização dos homens – eles a humanizam.

Ao longo da peça, a dialética em que entram nossas cabeças de público atuador nos coloca em contato com as forças caóticas de nossas dimensões intestinas em seu desarranjo inumano. É o peido artaudiano belamente interpretado por Camila Mota em Pra dar um fim ao juízo de Deus que, de algum modo, retorna (CORRÊA, 2015). O Kafka de Fabiana Serroni, em sua profunda pesquisa pelo infinito dentro, peida o infinito fora. É, novamente, no caos que nos encontramos.

As leis do caos escapam às leis humanas. Não há respostas nos contos de fadas do Kafka do Teat(r)o Oficina. Há problemas, perguntas, questões, inquietações. Não será tranquilidade o que sentiremos ao final da peça – suas inquietações nos acompanham como problemas que são nossos neste aqui e agora que nomeamos Brasil.

Pelo olho traseiro da macaca veremos, tal qual Tirésias, que, sem enxergar, via. A possibilidade de ver sem olhar é efeito da experiência com perceptos, seres de sensação que nos fazem mergulhar num plano de composição repleto de figuras estéticas desenhadas na direção, na dramaturgia, na atuação, no figurino, na iluminação, na música, no corpo, no Oficina. Artistas que, em sua ação coletiva, produziram – e estão produzindo – cultura com o “CU maiúsculo”.

Vejam a peça e me digam se estou enganado!

*Zóia Münchow é doutorando em filosofia na USP e professor no Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS).

Referência


Kafka: contos de fadas pra kabeças dialétikas
São Paulo. Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, 2025
Direção: Fabiana Serroni.
Dramaturgia e concepção: Santiago Willis da Silva e Guerra e Fabiana Serroni.
Direção de arte: Graciela Rodriguez.
Direção musical: Adriano Salhab.
Elenco: Adriano Salhab, Ana Clara Domiciano,Bruli, Carol Pinzan, Dan Salas, Gustavo Dainezi, Leandro Soussa, Lufe Bollini, Márcio Ventura, Maurilio Domiciano, Mila Sequera, Paula Bicalho, Sandra Vilchez, Stella Prata e Aury Porto.

Bibliografia


CORREA, José Celso Martinez (Direção) Pra Dar um Fim no Juízo de Deus. Direção: José Celso Martinez Corrêa. Com Camila Mota, Marcelo Drummond, Pascoal da Conceição e outros. São Paulo: Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, 2015.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka. Por uma literatura menor. Assirio & Alvim, 2003.

DELEUZE, Gilles. Sobre o teatro: um manifesto do menos/ o esgotado. São Paulo: Zahar, 2010.

Sinopse de Kafka: contos de fadas pra kabeças dialétikas. Livre adaptação da obra de Franz Kafka. Sinopse. Disponível em: https://bileto.sympla.com.br/event/103778/d/306269/s/2090903

TORRES, Fernanda. Fernanda Torres homenageia Zé Celso. [Reel – Facebook]. Disponível em: https://www.facebook.com/reel/668596655083119.

PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. 2022.

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