Lênin – um teórico sutil e complexo

Imagem: Sasha Kruglaya
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por LUÍS FELIPE MIGUEL*

A lição incontornável deixada por Lênin é a de que é possível, de que é necessário, ousar sonhar com um novo mundo e lutar para construí-lo

Neste domingo, completam-se cem anos da morte de Vladímir Ilitch Lênin. Ele foi um dos maiores pensadores marxistas de sua geração, um estrategista político genial e um ser humano admirável.

No Ocidente, o discurso hegemônico tenta vesti-lo com a fantasia do “ditador sanguinário”, um adepto primário da visão de que “os fins justificam os meios”, um Joseph Stálin. O desconhecimento em relação a seu pensamento é gritante. Até um intelectual liberal esclarecido, como Robert Dahl, quanto dedica algumas páginas a ele (em seu Democracy and its critics), não passa de generalizações primárias e comete erros tão pueris quanto chamá-lo de “Nikolai”.

Na esquerda ortodoxa, foi transformado numa espécie de Messias. Sua obra foi tão embalsamada quanto seu corpo, passando a integrar o corpo de escritos sagrados – o “marxismo-leninismo” – que não se podia interpelar, nem aproveitar criticamente, apenas reverenciar.

Mas Vladímir Ilitch Lênin foi um teórico sutil e complexo, cujas contribuições para a estratégia da transformação social, para a compreensão do Estado capitalista e para o estudo do imperialismo continuam merecendo atenção. Foi também um exemplo de militante revolucionário, com dedicação a toda prova e uma incrível capacidade de sacrifício pessoal.

Longe de aceitar a doutrina simplista de que os fins justificam os meios, Vladímir Ilitch Lênin tinha uma consciência aguda do drama da política, tal como enunciado por Maquiavel: a tensão entre princípios e resultados, entre a ação no presente e a responsabilidade pelo futuro.

No tortuoso processo de deflagração da Revolução de Outubro, brilhou a genialidade política de Lênin, que naquele momento foi capaz de decifrar com perfeição a fortuna e encarnar de maneira cabal a virtù.

Só podemos especular qual teria sido o desenvolvimento da Rússia soviética sem sua incapacitação e morte prematuras. Sabemos apenas que, em seu testamento, ele advertiu contra Stálin.

Dedicou sua vida à revolução, mas não foi um bitolado, um ser humano incompleto. Lembro de uma história deliciosa que Jean Cocteau conta em sua entrevista à Paris Review, quando discorre sobre a vida boêmia na Paris do início do século passado: “Naquela época, todos nós nos reuníamos no Café Rotonde. E um homenzinho com uma testa enorme, arredondada e cavanhaque preto às vezes costumava entrar lá para tomar um gole e nos ouvir conversar. E para ‘olhar os pintores’. Uma vez perguntamos ao homenzinho (ele nunca dizia nada, só escutava) o que ele fazia. Disse que tinha a séria intenção de derrubar o governo da Rússia. Todos nós rimos, porque, é claro, tínhamos essa mesma intenção. Era assim aquela época! Era Lênin.”

Não foi um santo – ninguém que se dedica à ação política pode se dar ao luxo de sê-lo. Acertou e errou, como todos nós. A revolução que comandou se perdeu no caminho e pereceu de forma melancólica. Mas sua principal lição nós não podemos apagar: a de que é possível, de que é necessário, ousar sonhar com um novo mundo e lutar para construí-lo.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES