Linguagem e mundo na literatura

Mira Schendel, 1954, têmpera, gesso e madeira sobre madeira, 51.00 cm x 66.00 cm. Reprodução fotográfica Romulo Fialdini
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Por LUÍS BUENO*

A propósito de canções de Chico Buarque e de Johnny Hooker

Em julho de 2017, duas canções foram lançadas no Youtube com diferença de oito dias. Vejamos a letra – menos dois versos – da que saiu primeiro, no dia 20:

O que vão dizer de nós?
Seu pais, Deus e coisas tais
Quando virem rumores
Do nosso amor

Baby, eu já cansei de me esconder
Entre olhares, sussurros com você
…………………………………..
…………………………………..

Eles não vão vencer
Nada há de ser em vão
Antes dessa noite acabar
Dance comigo a nossa canção!

E flutua, flutua!
Ninguém vai poder
Querer nos dizer como amar

E flutua, Flutua!
Ninguém vai poder
Querer nos dizer como amar

Entre conversas soltas pelo chão
Teu corpo teso, duro, são
E o teu cheiro
Que ainda ficou na minha mão

Um novo tempo há de vencer
Pra que a gente possa florescer
E, baby, amar, amar
Sem temer

Eles não vão vencer
Nada há de ser em vão
Antes dessa noite acabar
Baby, escute, é a nossa canção!

E flutua, flutua!
Ninguém vai poder
Querer nos dizer como amar

Como amar? Como amar?
Ninguém vai poder
Querer nos dizer como amar

Vamos agora à segunda letra, de música lançada no dia 28 de julho, também expurgada, esta de duas estrofes, a inicial (que aparece duas vezes, no início de cada uma das duas partes) e a final:

…………………………………..

Se o teu vigia se alvoroçar
E estrada afora te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Se as tuas noites
Não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir

Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz

Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei

…………………………………..

Se o teu vigia se alvoroçar
E estrada afora te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho a te abraçar

Mas teu amante sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

………………………………………..

Embora muito diferentes uma da outra, diferença perceptível de imediato, denunciada pelo tom e pela variante linguística empregada, essas duas letras têm muita coisa em comum. Ambas são poemas de amor e ambas ligam-se a um mesmo modelo, ainda que desdobrado em duas de suas tendências. Trata-se da tradição inaugurada pela poesia cortês que se tornou verdadeira febre na Europa entre os séculos XI e XIII, nascendo na Provença e se espalhando por todo o continente, da Alemanha e da Itália até Portugal, uma poesia do sofrimento amoroso, de uma dor de várias naturezas constantemente encenada.

Naquele caso, a fonte principal desse sofrimento era o desprezo da mulher pelo pobre trovador, que se humilhava diante daquela que o fazia sofrer – coisa bem visível na nossa segunda letra. Esse modelo forja uma visão de amor que atravessa incólume os séculos seguintes, reelaboradas por poetas como Shakespeare e Camões e contribuindo fortemente para o conceito de amor dos românticos, que tinham predileção por um ingrediente bastante visível na nossa primeira letra, que é o sofrimento amoroso causado não pelo desprezo de um dos amantes, mas sim pelo choque entre o amor verdadeiro partilhado entre os amantes e as interdições sociais que impedem ou dificultam sua concretização.

Mas voltemos às nossas canções. Na primeira, o uso do clichê do amor incompreendido dá o tom. Versos como “O que vão dizer de nós?” em chave irônica, “Eles não vão vencer”, “Dance comigo a nossa canção” e sua variante “Baby, escute, é a nossa canção”, “E o teu cheiro/ Que ainda ficou na minha mão”, “Um novo tempo há de vencer/ Pra que a gente possa florescer”, entre outros, estão mesmo no limite da autoria. São ideias e mesmo formulações inteiras tão repetidas que dificilmente poderiam ser atribuídas a alguém por um estudioso qualquer do futuro que se debruçasse sobre os escombros indefinidos de nosso tempo, como fizeram Manuel Bandeira e Rodrigues Lapa em relação às Cartas chilenas, para identificar quem teria sido o autor desconhecido que compôs essa canção. E isso não exclui a palavra “baby”, por exemplo, que os românticos não usavam, mas que a tradição da balada romântica moderna, ligada ou não ao rock, deles derivada, fez uso obsessivo, elemento, aliás, que, ao lado da informalidade geral, ajuda a dar o tom de que se trata de uma letra do nosso tempo.

Composta toda de clichês, nela sobra pouca coisa que possamos localizar como propriamente autoral. Talvez aquele “Flutua”, que mais sugere que descreve o amor livre de amarras que a letra exalta – não é à toa que ele compõe o refrão e dá título à canção. Notem que este não é um juízo de valor: uma das atribuições mais belas e intrincadas da linguagem poética é exatamente a de repetir clichês para transformá-los, no contexto de um poema, em elementos inusitados, capazes de ganhar sentidos novos, uma intensidade inesperada.

Antes de falar dos versos omitidos, vamos dar uma olhada na letra 2, que muitos aqui já sabem do que se trata, dada a polêmica que acabou provocando. Nela também  encontramos uma coleção inteira de clichês da poesia amorosa. Eles são, no entanto, percebidos por quem ouve a canção hoje como coisa mais velha, o que o uso da segunda pessoa insistentemente dentro dos padrões da norma culta, incluindo o uso traiçoeiro do imperativo, sublinha. Sem falar no vocabulário: “desalmado”, “suplicar”, “silentemente”.

Mas não é só isso: o autor não tem vergonha de repisar ideias que têm inegável cheiro de mofo como a de que a dama deixa cair o lenço para que o cavalheiro tenha a oportunidade de demonstrar-lhe sua atenção e sua gentileza; ou de que sua dedicação é tanta que ele terá ciúme até de si mesmo. A submissão do eu-lírico é do tamanho da submissão dos trovadores, e a dama vista como rainha é novidade importada diretamente do século XII.

É claro que o uso do clichê deriva de processo consciente – pelo menos é o que indicam alguns procedimentos poéticos específicos. Vou falar de três deles. O primeiro, mais simples, é o uso direto da citação. Os versos “Ou estas rimas não escrevi/ Nem ninguém/ Nunca amou” são a tradução do verso final do soneto 116 de Shakespeare: “I never writ, nor no man ever loved”, literalmente algo como “eu nunca escrevi nem homem nenhum jamais amou”. O segundo é a invenção de momentos de grande novidade, compatíveis com o velho modelo escolhido, mas inesperados, o que se vê no simples emprego de uma palavra que hoje soa como vinda da oralidade, embora seja velha na língua culta, como “aperrear”, ou na sinestesia dos versos “Basta soprar meu nome/ Com teu perfume”.

O terceiro, mais importante para a gente aqui, é a inclusão de elementos que soam fora do eixo em relação ao modelo, o que dá a toda a letra um fundo de ironia sutil, mas evidente. É assim que esse homem, para demonstrar sua submissão, vai incluir os serviços domésticos entre suas ações futuras, e o amor será feito na cama que ele arrumou, assim como no dia seguinte, ele acordará antes dela e a acordará – bem o oposto do que acontece numa clássica canção em que se diz “Todo dia ela faz tudo sempre igual/ Me acorda às seis horas da manhã”. Essa estrofe gera um ruído muito interessante porque soa como uma intenção de atualização por parte de um eu-lírico cujos valores parecem se ligar a outro mundo, o dos lenços que caem, podendo soar como um velho que procura dar indicações de que sabe, sem saber exatamente, como é o jogo no presente.

É assim também que, numa atitude sem precedentes na história do amor cortês, o eu-lírico causou polêmicas, pois, para demonstrar o grau de submissão a que estaria disposto, propõe-se a deixar mulher e filhos para seguir a amada. Diante desses versos, Flavia Azevedo assim se pronunciou no Correio da Bahia: “Mas, desta vez, no painel das emoções femininas, Chico apertou um botão controverso. Essa mulher que ele evoca, não sou, não é. Nem a que somos nem a que queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar, essa que goza ao ouvir “largo mulher e filhos”. Botão errado, pra mim. Botão errado para a amiga que disse: “achei datada”. Botão errado para Andréia que escreveu “esse negócio de largar filho não desceu”. Não funcionou. E Tua Cantiga não é unanimidade”.

Não se trata de patrulhamento nem militância tosca. Mas quem controla sentimento, maluco? Chico Buarque sempre se comunicou com a nossa subjetividade. E é a nossa subjetividade que está falando com ele agora. E a real é que esse mundo interno mudou. De repente, pra um monte de mulheres, “largo filhos” soou tão romântico quanto um arroto no meio do beijo. Uma deselegância, uma sacanagem, uma coisa feia e desnecessária. A gente broxou com a narrativa de um amor covarde, com o canalha fantasiado de super herói, com esse amante infantil e antigo, com esse tipo de amor… datado. Esse cara, esse personagem trazido por Chico (e tão conhecido entre nós) não faz mais sucesso. Porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe.

A leitura de Flavia Azevedo é de grande interesse para a discussão sobre como é preciso atentar para a linguagem sem pressupostos muito fixos, sob pena de produzirmos, no desejo de construirmos uma visada livre de ortodoxia, um discurso profundamente ortodoxo. Sem falar que se sim, é verdade, que ninguém controla sentimento, é o caso de quem sente entender bem o sentimento. Em outras palavras, como é preciso não dar nada de barato quando se trata de linguagem.

O ponto de partida de seu texto é legítimo e inteligente: há ali um eu-lírico ligado a uma visão amorosa tradicional – não porque se vale da tradição trovadoresca para se exprimir, mas sim pela via algo torta que escolhe para se destacar dessa tradição, ou para pretensamente adequá-la aos nossos dias, ou nos termos dela, a uma nova subjetividade feminina. Se “a cama que arrumei” não soou estranho para ela, o “deixo mulher e filhos” se impôs como ruído e acabou se convertendo em toda a canção. Daí a ideia de que se trata de canção datada, o que, neste contexto, quer dizer ultrapassada.

Ora, a canção toda é uma exploração desse deslizamento – daí sua eficácia. Acho que isso é perceptível mesmo sem as estrofes final e inicial, mas com sua consideração fica tudo mais claro. Antes porém de tratar desses expurgos intencionais, vejamos os dois versos que faltavam na primeira canção porque é neles que podemos encontrar todo o sentido buscado para aquele acúmulo de clichês de amor e de liberdade. Eis o que diz a segunda estrofe inteira:

Baby, eu já cansei de me esconder
Entre olhares, sussurros com você
Somos dois homens
E nada mais

Nesses dois versos se manifesta a atualidade dessa letra, é aí que reside a transformação de uma canção de amor proibido em manifesto, em hino de uma causa – para usar a descrição feita num dos comentários a seu respeito no Youtube. Aí reside a fonte de toda sua intenção e de sua força. Aí está o ponto em que os clichês se transformam em outra coisa. E isso é confirmado pelas demais camadas da canção e de sua divulgação.

A melodia também remete a um clichê de um pop engajado, que me lembra a grande era da Motown dos anos 70. É cantada por vozes rasgadas, às vezes roucas, como se gritassem, mas em certos momentos ternas (principalmente quando Liniker entra, na segunda parte). A bateria seca, sem tratamento da introdução, quase suja, já antecipa esse clima seco, direto, o piano, que vem logo em seguida, também sem qualquer tratamento, o confirma e a entrada dos demais instrumentos dá volume e vai num crescendo que amplifica o manifesto, cujo ápice sonoro está no fim, na reiteração de que ninguém pode querer dizer como é que se deve amar. Não temos um clip para ver, mas a capa do single, que antecipava o lançamento do disco Coração, mantida durante toda a execução da música no canal oficial do Youtube, mostra Johnny Hooker, que é o autor da música, e Liniker, se beijando na boca, o que já diz a quem o vê do que se trata a canção antes mesmo de ela começar a tocar. É, portanto, uma canção engajada.

A segunda canção, quem ainda não sabia já deve ter adivinhado, é “Tua cantiga”, do Chico Buarque e do Cristóvão Bastos. Sua primeira estrofe diz o seguinte:

Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Nessa abertura, que fica reforçada pela repetição também no início da segunda parte, temos a posição do eu-lírico. Já houve um relacionamento entre ele e a dama, esse relacionamento já terminou e ele tem vontade de reatá-lo. Cheio desse desejo, ele se volta para uma mulher que está ausente e que não manifestou qualquer saudade nem sentiu qualquer aperto na garganta – coisas que ele apenas deseja e antecipa – e diz a ela coisas que ele acha interessantes e potencialmente atraentes. Todo o texto é um monólogo solitário, é a especulação de um abandonado, é a manifestação de um sonho amoroso. A dama não está em posição de superioridade, está ausente de todo.

Na estrofe final surge o mais inesperado dos elementos da letra, a partir de outro tópico, esse ainda mais velho do que a poesia cortês, o da “arte longa, vida breve”. Para ficarmos em Shakespeare, vejamos seu soneto 18 em tradução de Geraldo Carneiro:

Te comparar com um dia de verão?
Tu és mais temperada e adorável.
Vento balança em maio a flor-botão
E o império do verão não é durável.
O sol às vezes brilha com rigor,
Ou sua tez dourada é mais escura;
Toda beleza enfim perde o esplendor,
Por acaso ou descaso da Natura;
Mas teu verão nunca se apagará,
Perdendo a posse da beleza tua,
Nem a morte rirá por te ofuscar,
Se em versos imortais te perpetuas.
Enquanto alguém respire e veja e viva,
Viva este poema, e nele sobrevivas

A ideia, como se vê, é a de que a beleza da amada acaba, a morte a apanhará, mas ela viverá para sempre porque os versos do poeta, afinal imortais, perpetuarão essa beleza e essa vida. Na letra de Chico Buarque o que temos é o seguinte:

E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti

É a morte do poeta que se invoca, não a da amada, e a cantiga não serve para perpetuá-la, mas sim para mantê-lo na memória dela. A sensação de desamparo da estrofe inicial se completa e amplifica nesta estrofe final. O que a canção propõe o tempo todo é um jogo de forma tradicional e intervenção no debate do presente e, o que pode parecer a mesma coisa, mas não é, a convivência entre diferentes discursos.

Ouvindo a música essa impressão fica reforçada. A melodia de Cristóvão Bastos tem também cara de coisa velha. Em debate sobre a canção reunido no blog de Túlio Vilaça, cita-se, sem indicar a autoria, a definição de que seria um samba em ternário, como Cravo e canela, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, do que discorda Luis Felipe de Lima, que a caracteriza com uma “espécie de lundu em três, um samba-reggae ímpar”, classificação de que se aproxima o próprio Cristóvão Bastos ao fazer um breve comentário: “Não é um samba em três. Está muito mais próximo de um lundu, não tem nada a ver com Cravo e canela, levada e melodia com sentido bem diferente”. Ou seja, é lundu e é valsa, música antiga, de outro tempo. A letra capta essa sugestão e se integra nela logo pelo título, ao se caracterizar como uma cantiga – exatamente o nome que tem a poesia para os trovadores medievais que escreviam em português.

A melancolia que deriva da situação sem esperança do eu-lírico fica clara na interpretação de Chico Buarque a que assistimos no clip que lançou a canção. A introdução já toca quando o cantor entra em cena. Numa interpretação verdadeiramente cênica, esse cantor canta toda a longa letra com um sorriso melancólico, que incorpora a perda de que a música fala. Ao final, simplesmente se retira, corporificando o “quando eu não estiver mais aqui” enquanto a música também continua, mas só um pouquinho, nos deixando a impressão melancólica de que nada fica. Afinal tudo – até a cantiga – tem que se transformar.

Se tudo isso faz sentido, Cristóvão Bastos e Chico Buarque não fizeram “uma coisa feia e desnecessária”. Eles talvez tivessem feito uma coisa feia e desnecessária se a canção, em seu todo, dissesse o que Flavia Azevedo apressadamente, isolando um trecho, apostando numa sensação, achou que ela disse a partir de uma espécie de interpretação padrão de nosso tempo. Sim, apressadamente porque não é preciso convocar a poesia trovadoresca ou Shakespeare para perceber que “Deixo mulher e filhos/ E de joelhos vou te seguir” é uma hipérbole, e talvez o eu-lírico nem sequer tenha mulher e filhos para abandonar. Basta deixar de lado por alguns segundos o empenho de julgar tudo moralmente, de deixar de lado por alguns instantes a vigilância diante da potencial ofensa para que a linguagem possa falar com a complexidade que ela sempre fala.

Na busca cheia de ansiedade pelo pensamento conservador que deseja manter inalterados os valores tradicionais, não é curioso que a música de Johnny Hooker não tenha causado qualquer polêmica? Felizmente nenhum homofóbico de plantão se animou a repudiar nem a música, nem a letra, nem o beijo entre duas pessoas que, afinal, são “dois homens/ e nada mais”.

Quem buscou a polêmica foi o próprio artista. No dia anterior ao lançamento de sua canção, a Folha de S. Paulo havia publicado uma entrevista com Ney Matogrosso que, perguntado se ele “se considerou em algum momento representante de uma minoria”, afirmou: “Me enquadrar como “o gay” seria muito confortável para o sistema. Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu faço com a minha sexualidade não é a coisa mais importante na minha vida. Isso é um aspecto, de terceiro lugar”. E o que é o mais importante na sua vida? – Ter caráter, ser uma pessoa honesta, de princípios, que trata bem as outras. Ser uma pessoa afetuosa, amorosa. Isso é mais importante do que com quem eu trepo.

Johnny Hooker reagiu rapidamente em seu perfil no Facebook: “É inconcebível ler a frase ‘Que gay o caralho, eu sou um ser humano’ no país que mais mata LGBTs do MUNDO(!!). Vinda de um artista cuja carreira em grande parcela se apoiou na bandeira da luta dessa comunidade, de seu próprio público. Um artista genial que perdeu o andar que o mundo tomou, ficou cristalizado, um cânone. (…) E em tempos de ‘Gay é o caralho’ a única resposta possível é que vai ter gay pra caralho, vai ser gay pra caralho sim, cada dia mais gay, cada dia um level a mais igual Pokémon”.

Falando de velho e de novo, eu estou no meio do caminho entre os dois: o Ney Matogrosso nasceu em 1941, um ano antes da minha mãe, e Johnny Hooker nasceu em 1987, dois anos depois de minha filha mais velha. Compreendo a preocupação do mais novo e, ao mesmo tempo, não compreendo por que se definir como um ser humano é uma forma de desistência e congelamento no tempo. Seja como for, eu tenho certeza de que Ney Matogrosso não apoia a violência contra gays e também não correu pra dentro do armário, negando sua condição de gay. O que, a esta altura do campeonato, tendo em vista sua história como figura pública, seria ridículo, além de inútil.

“Gay o caralho” e “gay pra caralho” não constituem enunciados de sentido oposto. Constituem apenas duas formas do mesmo ativismo. Um – “gay o caralho” – indica que o caminho é enfatizar as semelhanças, recusar portanto o rótulo e destacar a igualdade; outro – “gay pra caralho” – aposta na afirmação da especificidade como maneira de marcar posição e confrontar o discurso que se lhe opõe. Salvo engano crasso de análise do uso que fazem da linguagem, ambos querem a mesma coisa: o fim do preconceito.

Neste semestre tive duas experiências em sala de aula que me preocuparam. Num debate sobre A hora da estrela, um aluno e uma aluna discordaram sobre a interpretação de um aspecto do livro, e a moça acabou afirmando que o colega era homem e portanto nunca iria compreender Clarice Lispector. Noutra aula, um aluno afirmou que o movimento negro não tinha que ouvir qualquer crítica vinda de fora do próprio movimento.

Mais uma vez, compreendo que posições como essas têm origem numa nova forma de militância, calcada na ideia de afirmação, que se aprofundou na última década. Mas acho que levam a uma relação muito direta entre linguagem e mundo. Temo que tal atitude possa levar – se é que já não leva – a um isolamento das mil formas de ver uma sociedade mais aberta e das mil pessoas dispostas a agir para a conquista dessa sociedade. Enquanto isso, neste dezembro de 2017, as forças que realmente se opõem a essas ideias estão se compondo para ganhar a presidência e manter sua hegemonia no parlamento – e não só no Brasil.

Johnny Hooker e Chico Buarque são artistas muito diferentes, mas que, bem pesadas as coisas, estão do mesmo lado no espectro ideológico. Para o bem e para o mal, nem um tem a chave que levará às soluções dos problemas de nosso tempo nem o outro está simplesmente superado. É preciso debater sempre, mas com a disposição de ver nas manifestações do outro a complexidade – e a eventual afinidade – que elas têm.

*Luís Bueno é  professor na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autor, entre outros, livros de Uma história do romance de 30 (Edusp/Unicamp).

 

Referências


Chico Buarque. Tua cantiga.

Johnny Hooker. Flutua.

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