Luís Melo, ator e pesquisador teatral

Cathy De Monchaux, Nunca se esqueça do poder das lágrimas, 1997
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Por AFRÂNIO CATANI*

Comentário sobre a entrevista de Lígia Scalise com o artista paranaense

1.

No final do ano passado, após assistir a um espetáculo teatral, peguei um exemplar da Revista E, editada pelo SESC São Paulo, e a folheei meio ao acaso. Sempre há matérias e reportagens de bom nível, e a edição de outubro de 2023 não me decepcionou: encontrei uma excelente entrevista com o ator e pesquisador teatral Luís Melo (1957), feita por Lígia Scalise, intitulada “Ser mutável”.

Talvez cause estranheza ao leitor reproduzir partes significativas de um texto de publicação recente. Entretanto, entendo que merecem ser destacados vários pontos de inflexão do trabalho de Lígia Scalise sobre um artista que é, talvez, um dos melhores de sua geração.

A entrevista se inicia com breve síntese da carreira de Luís Melo, na precisa narrativa de Lígia Scalise: “Há mais de quatro décadas, Luís Melo dedica a vida às experimentações teatrais. Corpo, voz, respiração, fala, equilíbrio, desequilíbrio. Silêncio. Tudo é ferramenta de pesquisa e de trabalho para este ator consagrado no teatro, na televisão e no cinema. O jovem rapaz curitibano, que sonhava ser arquiteto, teve sua trajetória atravessada pelo teatro. Desde então, nunca mais se desviou do caminho, formou-se pelo Curso Permanente de Teatro da Fundação Teatro Guaíra, em Curitiba, no ano de 1979, e, de lá para cá, conquistou o Brasil, a crítica internacional e os maiores prêmios como ator” (p. 17).

Durante 10 anos, de 1985 a 1995, Luís Melo foi aluno e integrante do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) – SESC, onde conviveu com o diretor Antunes Filho (1929-2019). Foi um dos primeiros atores do CPT que, interpretando Macbeth em Trono de Sangue (1982), recebeu os mais importantes prêmios da categoria. Sua popularidade decolou quando, na TV Globo, fez a novela Cara & Coroa (1995). Fez, a partir de então, muita televisão e cinema, mas sem nunca abandonar o teatro (p. 17).

A partir de 2000, Mello desenvolveu outros projetos de pesquisas teatrais, destacando-se o Ateliê de Criação Teatral (ACT) em Curitiba, ao longo de oito anos. Vem se dedicando, desde 2017, ao Campo das Artes, “seu projeto de vida”, situado nos Campos Gerais, região da Escarpa Devoniana, a 40 km de Curitiba. Desenvolvido com o arquiteto teatral, cenógrafo e figurinista José Carlos Serroni (que trabalhou com Antunes Filho) e com o arquiteto Renato Santos. “A ideia central do Campo das Artes é ser uma estrutura para artistas residentes, ao mesmo tempo em que abriga 12 espaços para experimentação e pesquisa. Tudo em meio a uma natureza magnífica. Tem biblioteca, salas de criação de cenografia e de figurino, espaço de convivência, alojamentos, horta, estufa e espaço multiuso para ensaios e apresentações” (p. 22). Ainda há muito a ser feito, mas a luta continua – o que para ele não é lá tão difícil…

A entrevista que Lígia Scalise realizou com Luís Melo se deu no segundo semestre de 2023, por ocasião de seu retorno ao Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, com a peça Mutações, dirigida por André Guerreiro, “inspirada na obra milenar chinesa I Ching” (p. 17).

2.

Bem cedo matriculou-se em uma escola de teatro, a do Teatro Guaíra, em Curitiba. Enaltece a(o)s professora(e)s, com quem aprendeu expressão corporal clássica, dança moderna, esgrima, francês e maquiagem. Ao formar-se, em 1979, investiu na carreira de ator profissional e de professor de teatro. Entretanto, antes de ser bastante conhecido em Curitiba, declarou que “o teatro não o aceitou de cara”. Explicou que os professores o adoravam, “…mas não sabiam o que fazer comigo, porque eu sempre fui muito gordinho. Naquela época, isso era uma questão. Tanto que passei muito tempo como assistente – de voz, de corpo e de direção. Meus colegas, formados na mesma turma, recebiam propostas de trabalho com facilidade. Até que surgiu o convite para atuar numa peça infantil e, a partir daí, o jogo virou. Meu corpo não era mais um problema, porque meu nome caiu no gosto dos diretores. Eles sacaram que eu tinha talento. Era ‘Melinho pra cá’, ‘Melinho pra lá’. Foi assim que Ademar Guerra (1933-1993) (…) me escalou para participar do espetáculo Colônia Cecília (1984), um texto que retrata a história dos anarquistas italianos no Paraná” (p. 18).

E Lígia arranca uma preciosidade de Melo, quando ele revela que Ademar Guerra lhe ensinou a encarar um de seus maiores desafios em sua carreira : ‘aprender a representar com os olhos”. Ademar lhe passou pouquíssimas falas, mas lhe ensinou “a conduzir as cenas só com meu olhar. Foi a primeira vez que tive contato com um teatro experimental” (p. 18) O diretor fez com que ele saísse de sua zona de conforto, enquanto a atriz Lala Schneider o incentivou a sair de Curitiba e tentar ganhar o mundo.

Foi Ademar Guerra, ainda, que lhe indicou para Antunes Filho, que lhe aplicou testes. O mestre do CPT precisava de um “ator de centro”, expressão para designar “atores que interpretam diversos papéis e servem de apoio ao protagonista” (p. 18). E, de forma despretensiosa, revela parte dos métodos de trabalho de Antunes Filho, na condução dos testes: ele deu uma semana para Luís Melo ensaiar quatro cenas com um de seus assistentes e, quando foi se apresentar, Antunes Filho praticamente não o deixava falar praticamente nada. “Eu descobri que para o Antunes Filho só importava a minha determinação, a maneira como eu entrava em cena” (p. 18). Para a sua sorte (e para a nossa também), ele passou no teste e trabalhou 10 anos no CPT.

Antunes Filho o ensinou a coadjuvar, fez com que ele gramasse por muito tempo até que se tornasse protagonista. Dizia: “a hora do Melo vai chegar”. Demorou, mas chegou: Paraíso Zona Norte (1989) foi seu primeiro papel principal; depois vieram Nossa Velha História (1991), Trono de Sangue (1992), Vereda da Salvação (1993) e Gilgamesh (1995). Recebeu vários prêmios com sua interpretação de Macbeth.

Provocado por Lígia Scalise acerca dos aprendizados adquiridos com Antunes Filho, o ator destaca que sua carreira foi construída em torno da experimentação, sendo que para ele o ator tem que estar de poros abertos para perceber e receber, atento para resolver qualquer problema surpresa – “seja um erro técnico, uma falha de memória, uma luz fora de marcação. Aprendi muito no CPT e com o Antunes” (p. 19). Ele me ensinou a mostrar a minha precariedade; ele dizia: “se você quer seduzir o público, mostre que você tem cárie, que você transpira, que tem odor, que cospe saliva ao falar. Mostre que você, às vezes, tem dúvida e que não é super-homem. É a sua verdade como ator que vai seduzir e conquistar o público” (p. 19).

Luís Melo deixou o CPT e foi para a Globo fazer a novela Cara & Coroa. Aos 38 anos, vivia em constante instabilidade financeira e já havia recusado convites para trabalhar na TV. Era impossível conciliar o labor realizado com Antunes Filho com qualquer outra atividade. Não é preciso muita imaginação para deduzir que o mestre ficou muito contrariado com a decisão do pupilo.

O ator confessa que, para ele, a adaptação à televisão foi “um choque” e que, “honestamente, não sei se me adaptei até hoje (risos)” (p. 20). Destaca o apoio recebido de Wolf Maya e, com o passar do tempo e com mais experiências na TV, aprendeu “sobre posicionamento de câmera e como jogar com ela” (p. 20).

O conjunto das atividades artísticas de Luís Melo, ao longo do mais de 40 anos de carreira, apresenta números que impressionam: mais de 20 peças teatrais, cerca de uma dezena e meia de filmes e uns 30 e tantos trabalhos na TV (novelas e séries), tendo recebido aproximadamente 20 prêmios. Mas, entre os filmes e as participações na TV, sempre encontrou tempo para estar nos palcos.

A excelente entrevista realizada por Lígia Scalise, e que eu procurei aqui chamar a atenção para várias passagens relevantes, revela um artista generoso com a(o)s professora(e)s e colegas que contribuíram para que ele se tornasse a referência que é em sua profissão: Halina Marcinowski, Eva Schul, Lala Schneider, Ademar Guerra, Antunes Filho, Wolf Maya, Rosi Campos, Christiane Torloni, Laura Cardoso, André Guerreiro, Artur Ribeiro, André Curti são lembrados de forma carinhosa.

Ao retornar aos palcos em 2023, com Mutações, após longo isolamento em razão da pandemia, Luís Melo confessa que sentiu uma espécie de pânico, pois “ninguém volta do ponto onde parou. É preciso recuperar o corpo, voz, sensibilidade. Eu tive que correr atrás do prejuízo” (p. 21). E, fazendo blague, acrescenta: “teatro é exercício, e brinco que ele se vinga de quem o abandona” (p. 21).

*Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na Faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.

Referência


Lígia Scalise. “Ser mutável – ator e pesquisador teatral Luís Melo faz de sua trajetória nos palcos a própria experimentação de si”. Revista E. SESC São Paulo, ano 30, no. 4, p. 16-22, outubro de 2023.


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