Luiz Gama contra o império

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Por TALES AB’SÁBER

Considerações sobre o livro de Bruno Rodrigues de Lima.

1.

Em uma cultura algo permanentemente rarefeita, em geral deslocada da consciência de sua própria produtividade, seja por incompletude das noções e do quadro mais amplo, seja por interesse permanente em formulações teóricas abstratas constituídas em outras posições no sistema mundo das ideias que mais ou menos importam, saberes que desembarcam aqui no dia para explicar ou desexplicar o que nos marca de longe, sempre podem surgir momentos fortes de reconhecimento de trabalhos, trabalhos de fundamento, de autores que serão compreendidos como centrais, e que não tiveram, ou tiveram e perderam, um lugar de referência no entendimento do Brasil.

Assim vimos, em um nível de radicalização teórica que fez efeito, por exemplo, a revolução crítica realizada por Roberto Schwarz nos anos 1970 e 1980, sobre a natureza formal e social novas da obra de Machado de Assis, reposicionar o romancista brasileiro e, com ele, a compreensão das coisas do país. Seu trabalho revelava o escritor em um nível de concepção que ligava uma vida crítica e estilística singular local ao próprio sistema mundial da qualificação da crítica, o que nos faltava.

Também vimos nas pressões de toda ordem sobre a vida nacional, e sobre a vida concreta das pessoas que pensavam e produziam, desejavam política e atuavam, no final dos anos 1960, sob uma ditadura militar que se tornava totalitária, a redescoberta, a reinvenção e a reafirmação estética filosófica da obra de Oswald de Andrade. Esta descoberta, em tempo histórico revolucionado, mesmo que conservador, levou aos grandes efeitos renovadores apoiados sobre Oswald no chamado tropicalismo brasileiro – o musical, mas também nas artes plásticas, no teatro e no cinema.

Como também vimos o entendimento do sentido estrutural do campo de imensa importância da chamada música popular brasileira, na releitura e refatura do samba de João Gilberto e Tom Jobim, que geraram leitura e releitura permanente de suas obras e avanços sobre a de outros, de modo a serem cada vez mais afirmadas como pensamento do país. Obras que produziam o Brasil na medida mesma em que o compreendiam de modo historicamente implicado, autoconsciente, com consequências.

Assim, leituras e releituras históricas recentram ou descentram personagens e obras, ações e construções, pensamento e políticas brasileiras; como por exemplo se dá hoje com o trabalho da constelação feminista negra constituída nos anos de 1970 e 1980, de um próprio pensamento histórico com psicanálise, de Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Neusa Santos Souza. Este processo continuo de autocrítica como cultura gera referências que tem funções nas forças do presente, renovam a ideia do país, sempre algo incompleto, o atualizam em linhas históricas reais, em um processo de invenção desde seus produtores e não desde o alto, da história oficial e do Estado.

É o Brasil produzido e refletido na experiência cindida e clivada de seu povo, em suas origens – mundo do trabalho e vida em sociedade moderna, mundialmente inserida no sistema global dos mercados em expansão, mas decididamente escravista – o Brasil realizado desde o seu mundo da vida, o seu mundo das ruas e das existências jogadas ou criadas por aqui, e seu pensamento. Um mundo em movimento, em oposição produtiva permanente ao Brasil do Estado escravista, do latifúndio da monocultura, da sociedade da reprodução da casa grande e da senzala, dos sobrados e dos mucambos, dos capitães do mato contra os cidadãos pobres e negros do pais. Isso tudo redesenhado, “modernizado” e até hoje.

2.

Luiz Gama contra o Império, a luta pelo direito no Brasil da escravidão,de Bruno Rodrigues de Lima, é um trabalho que fundamenta a releitura de um destes poderosos produtores do problema do Brasil que, mesmo que reconhecido desde sempre, como ícone e como mito desde sua atuação abolicionista pela vida de outros, baseada em luta jurídica e pelo sentido do direito no pais escravista, e desde a sua vida exemplar de forças sociais concretas operando no mundo do país escravista ilegal, mesmo tendo se tornado um pequeno monumento já ao tempo da construção da política abolicionista a partir dos anos 1860 no Brasil, ainda não foi inteiramente processado nas dimensões mais amplas de sua obra, de sua atuação com sua literatura.

A situação de Luiz Gama na tradição crítica brasileira é um pouco um caso especial de “carapuça”, no qual o mito do reconhecimento visível costuma encobrir o caráter amplo, estrutural e radical, da obra, um mesmo tipo de efeito de mascarada avessa à crítica que já havia ocorrido com Machado de Assis.

Quando Roberto Schwarz escreveu seu pequeno e decisivo comentário sobre a carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça, a conhecida (ou, segundo Bruno de Lima, talvez de algum modo ainda desconhecida…) Autobiografia de Luiz Gama, começaram a se tornar claras as relações existentes entre a forma da escrita, as mediações do pensamento e a matéria social em jogo no texto do advogado abolicionista.

Tendo uma intuição da extensão significativa da obra, o crítico leu a carta junto e em paralelo a uma passagem satírica e reveladora de um poema irônico e de choque – o da bodarrada mestiça do Império que recusava o nome, racializando-se em nome de uma brancura que inexistia por aqui – que, com nota de insolência legítima e amplitude de vista de quem tinha contato com o mundo da vida, revelava a cobertura ideológica, carapuça, branca, de uma sociedade inteiramente mestiçada que acontecia de fato em todos os seus níveis de inserção e de poder. Mas que, porém, ainda como forma de si mesma, negava essa condição real, alucinando um europeísmo que andava por aqui como ilusão de distinção.

O que também, por outro lado, era “real” ao modo brasileiro das coisas. Voltando à carta autobiográfica, Roberto Schwarz demonstrava a eficácia concreta da narração da própria vida feita por Luiz Gama, em um projeto então novo de reflexividade por aqui, no qual “vista a enormidade do real, para que enfatizar”…

3.

Em conjunto com o aspecto absurdo das peripécias forçadas da vida de um homem negro brasileiro, em seu quadro sui generis de realidade histórica – oscilando entre a inserção do reconhecimento de ser um negro livre, um escravizado em falso do sistema geral de ilegalidades do Brasil dos anos 1830 e 1840, um escravizado fugido carregando em si todos os riscos da vida desorgânica brasileira e um cidadão livre, que se fez leitor e se fez escritor, intelectual exigente do sistema geral do direito no país operado em falso pela longa história da escravidão – Roberto Schwarz chamava a atenção para o caráter estrutural do pensamento/estilo da carta, em que, “pensando melhor, se nota que mesmo os episódios mais surpreendentes decorrem das grandes linhas da sociedade brasileira (…) o percurso biográfico incrível, o escândalo das situações, dos problemas morais e ideológicos, fazem ver um mundo sui generis, pressentido e recalcado.”.[i]

Luiz Gama não apenas contava os acontecimentos de uma vida submetida desde sempre aos jogos do Brasil escravista urbano. Ele desenhava simultaneamente o campo histórico como o sentido mais amplo de sua própria emancipação, o quadro singular das formas daquela realidade moderna única, determinada e ainda não descrita, as suas formas sociais históricas produzidas. Como a do patacho, o negreiro local, em que o menino Luiz foi entregue pelo pai à escravidão e ao tráfico interno do pais – pelo qual Bruno Rodrigues de Lima vai se interessar muito em seus ensaios – ou o enigma concreto brasileiro “das lágrimas copiosas com que se separam uns dos outros o menino e a família do negociante de africanos que o havia comprado e agora o revendia”.

Para o crítico, superando com inteligência formal gerada na própria vida e nos fatos “nosso europeísmo de fachada, para inglês ver”, tendo aguda nitidez sobre nosso racismo auto-iludido de brancura, sabendo e tocando formas sociais concretas, Luiz Gama chega a explorar a situação incógnita nacional pela possibilidade real da crítica, o que é acontecimento do pensamento que se destaca em todo lugar que se dê. Porque, “como no bom romance realista, a peripécia inesperada põe a nu a lógica e as virtudes de uma formação social, mostrando o que há de regra na exceção, de normal no exótico”.

Ou seja, na pequena biografia do ex-escravizado ilegal do império do Brasil, auto formado advogado e escritor, pensador da justiça e do direito em país de exceção, estava dada, com a beleza da inteligência reconhecível, “a literatura brasileira que podia ter sido e não foi”.

Luiz Gama se tornava um modelo possível de posicionamento e ação para jovens baixareis, a elite urbana modernizante que emergia na época, homens, radicais de ocasião do Império, que se ligavam a sua prática e multiplicavam o impacto de seu movimento. Essa caraterística da ação total do intelectual, que articulava e fazia circular a vida social das ruas e das vidas populares negras ao mundo institucional e mais a vida literária sob crítica incisiva dos poderosos e bem-postos do Brasil, será muito destacada no trabalho de Bruno Rodrigues de Lima.

E não apenas essa. O trabalho apresentado recentemente de Bruno de Lima vem demonstrando a força de um plano de pesquisa que poderíamos definir como uma espécie de historiografia total dedicada, e ao redor, de Luiz Gama e seu mundo. É de fato um trabalho de proporções amplas, com potência para deslocar o ideal de Gama de sua pequena estatuária apologética para o lugar de produtor, pensador e escritor, também total, com os parâmetros de seu tempo, do Brasil.

Uma historiografia total, porque considera a história do homem em todas as forças sociais e formas históricas mais amplas que o cercaram e o implicaram. Total, porque trabalha cada elemento da biografia como fonte de articulações humanas, institucionais, urbanas, estéticas e críticas, de modo a desdobrar o seu percurso como um amplo panorama do seu tempo. E total porque, talvez pela primeira vez de forma completa entre nós, considera como base do entendimento do processo histórico a totalidade da obra do jurista, ativista e escritor, tendo como guia as centenas de páginas fortes do personagem histórico, o intelectual engajado.

Esta massa escrita constitui no trabalho de Bruno de Lima um sismógrafo fino do alto e do baixo Império, e através dele o historiador chega a apontar para as horas e os minutos dos sentidos históricos vividos por Luiz Gama ao longo de sua vida.

Assim o escritor e sua ação é visto do ponto de vista da sua obra completa de intervenção crítica, o que ainda não se tinha a consciência inteira. Seu trabalho realizado em linguagem em uma sociedade afirmativa de não pensamento e de recusa à própria simbolização, de sua reprodução prática normal do mundo do chicote, é pensado de forma historicamente localizada. Aquela obra ativa, que evocava precocemente entre nós a ideia de democracia, e sua revolução – exatamente como três quartos de século mais tarde Sérgio Buarque de Holanda ainda faria… – na qual, nas palavras do jurista negro das ruas de São Paulo, “a artilharia é a palavra, a metralha o pensamento e o glaudio a pena”, está inteira disponível ao historiador, na sua estrutura e em detalhes historiográficos distintivos.

Em suma, se é possível sumarizar, interessa a Bruno de Lima tudo o que objetivamente, historiograficamente e criticamente se pode vislumbrar do Brasil que atravessou o corpo de Gama, e o que aquele sujeito, um tipo de intelectual formado por si mesmo nessa história especificamente ruinosa, viu e fez do Brasil, seus lugares, seus objetos e sua política.

4.

Na linha dos estudiosos de Luiz Gama que o antecederam, dos quais retoma as contribuições importantes e as trabalha de novo desde as pesquisas de agora – como Sud Mennucci, Ligia Fonseca Ferreira, Silvio Roberto de Oliveira, Elciene Azevedo, Diego Molina, Katia Leiróz Teixeira – Bruno de Lima parece fundar uma própria perspectiva sobre o fato crítico de que a obra e a ação de Gama devam ser lidas a partir da totalidade de sua escritura.

Antes de se aventurar na auto-construção do personagem histórico multifacetado, mas rigorosamente coerente, o que era raro no mundo letrado brasileiro de seu tempo – como o próprio Gama o demonstra bem – Bruno trabalhou o levantamento e a pesquisa detalhada de sua produção de escritor, a sua chamada literatura. Ele pesquisou e estabeleceu a documentação, todos os textos existentes daquela espantosa presença crítica, a trama textual de um homem em um mundo que reagia a ele: a satírica, a poética, a polêmica, a crônica do inferno das “quebradas do baixo Império”, a teorização corpo a corpo com as formas da contradição brasileira de então; uma rede de escritos em que Luiz Gama trabalhou com sistema contra os senhores da dissolução dos corpos escravizados, com sua aposta no direito em um processo histórico entendido como limite.

Um grande universo literário que revela – de um ponto de vista esclarecedor inusitado por não conhecer limite à crítica, constituído por si mesmo – a ordem satisfeita do desmando e do sadismo sobre a vida dos africanos livres no Brasil, dos centenas de milhares de escravizados ilegais e suas histórias abaixo do direito, fora de qualquer ordenação de cidadania, mesmo aquelas mínimas que lhes eram concedidas, mantidos sobre choque e sobre tortura.

Por fim, em meio a tudo do Brasil da escravidão, surge o pensamento de projeção do espaço político, que especula, desde a vida popular das ruas de onde nunca se afastou, sobre a ideia de democracia possível no Brasil, o sentido formal da batalha pela liberdade, sobre a força e o limite da justiça e do discurso jurídico, sobre a ideia da África que se produzia por este espaço social de terror conexo a ela, junto com a crítica aberta ao racismo de fidalgos mestiçados, próprios ao primeiro tempo do Império Constitucional do Brasil.

Bruno, a partir de constante pesquisa de arquivos, concebeu, organizou e comentou a compilação total da obra escrita de Luiz Gama, chegando ao número final de onze volumes concebidos, dos quais quatro já foram publicados pela editora Hedra: o referente aos textos que giram ao redor da ideia de democracia, e os que tem por título organizador Liberdade, Direito e Crime. Assim o historiador realizou uma primeira demonstração fundamental.

Completando a inciativa original de atentar para a escrita política, social e jurídica de Luiz Gama, das primeiras compilações de Ligia Fonseca Ferreira, do uso da literatura de Gama por Silvio Roberto de Oliveira, da postura epistemológica correta diante da carta autobiográfica, de Diego Molina, Bruno de Lima destaca a extensão sistemática de uma vida de embates passada à escrito, em que a política se dava na luta pelos direitos dos escravizados e desvalidos na esfera de Estado, dos tribunais e do direito, bem como no embate vivo e cotidiano constante das páginas de jornais.

Sem favor, a impressão que se esboça através da leitura de seus estudos é que Luiz Gama, intelectual brasileiro único, constituído nas raízes e nas condições históricas daqui, vai ganhando uns foros de alguma coisa que poderíamos também situar à época na Europa, entre um Heine e um Engels, um literato vivo da catástrofe e um crítico radical do terror da vida do trabalho, antecipando posições progressistas amplas que viriam, que terminariam no mundo de um Abdias Nascimento, um Paulo Freire ou um Darcy Ribeiro.

Naquelas páginas de intervenção e crônica da cidade, a ação política ganhava foros de denúncia, com derrisão moderna do poder sem outro. Luiz Gama confrontava o seu mundo através da descrição viva da violência anti-humanista do que era a vida dos escravizados urbanos, e também na reflexão teórica, com base na concretude da violência, sobre as condições barradas das possibilidades do direito e da cidadania. Eram linhas produtivas da nação, no país plenamente instalado em sua escravidão.

Bruno de Lima mostra que se houve um intelectual crítico total na luta contra a escravidão e o reacionarismo brasileiro ativo do século XIX, com obra que convoca e que surpreende ainda hoje pela nomeação da situação não descrita do caso Brasil, esse intelectual foi Luiz Gama. Assim, na extensão da visada dos múltiplos ataques de Gama ao seu mundo, que foi e que em algum traço nítido ainda é, podemos lembrar uma das autodescrições do escritor, recuperadas por Bruno de Lima nas Obras completas, observando a sociologia concreta do intelectual engajado no Brasil que implica:

“Impuz-me espontaneamente a tarefa sobremodo árdua de sustentar em juízo os direitos dos desvalidos, e de, quando sejam eles prejudicados por má inteligência das leis, ou por desassisado capricho das autoridades, recorrer à imprensa e expor, com toda a fidelidade, as questões e solicitar para elas o sisudo e desinteressado parecer das pessoas competentes”.

“Julgo necessária esta explicação para que alguns meus desafeiçoados, que os tenho gratuitos e rancorosos, deixem de propalar que costumo eu, como certos advogados, aliás considerados, clamar arrojadamente contra os magistrados por sugestões odientas, movidas pelo malogro desastrado de pretensões desarrazoadas”.

“Fique-se, pois, sabendo, uma vez por todas, que o meu grande interesse, interesse inabalável, que manterei sempre, a despeito das mais fortes contrariedades, é a sustentação plena, gratuitamente feita, dos direitos dos desvalidos que recorrem ao meu tênue valimento intelectual”.[ii]

5.

Luiz Gama contra o Império pode ser pensado como a biografia formal de Luiz Gama. Neste livro que expande os dados históricos presentes na “Carta a Lúcio de Mendonça” e em outros autoretratos disseminados pela obra escrita, trabalhando com elementos de arquivo novos e cotejando a todo tempo o fato biográfico confirmado com a escritura situada de Luiz Gama, Bruno de Lima elegeu a perspectiva de estudo do homem do direito, submetido e senhor a um tempo da formalização normativa acordada, como a lei existente, em pais que a desprezava.

Esta perspectiva é tacitamente aceita pelos estudiosos do personagem, uma vez que é realidade do sujeito, mas cujo foco maior foi a voz abolicionista e a denúncia racial anti-escravista, de modo que o esforço intenso e sistemático da formação do advogado, da ação jurídico-política e da literatura estruturada das razões dos tribunais de Gama necessitavam de atenção sistemática, que desse alguma conta do trabalho do homem.

Pela reconstrução da formação do trabalhador das leis do Império Luiz Gama, e dos meandros dos trâmites legais que passou a dominar, Bruno de Lima mostra como ele foi – após se livrar da situação de escravidão – de escrevente e auxiliar de delegado de polícia em São Paulo (delegado de polícia: agente público político formal da escravidão…) nos anos de 1850, a jurista dos direitos civis sistematicamente lesados dos escravizados ilegais nos anos de 1860, a pensador que situou a geopolítica da formação nacional pela elisão sistemática das leis anti-tráfico, desde a portuguesa de 1818, a brasileira de 1831 até a Eusébio de Queirós, de 1850.

A linha formativa do advogado que se tornou jurista crítico da formação nacional – dando pistas históricas fundamentais para as pesquisas futuras sobre a situação cindida, entre direito, simbolização e economia, no século XIX brasileiro – se torna clara na força organizada dos sucessivos processos públicos de Luiz Gama, com suas consequências sociais em sua própria vida, contra os senhores ilegais, e sádicos, os juízes ineptos, e coniventes, e contra a estrutura social pública, em oposição às leis assumidas, da sociedade formalmente perversa do Brasil Império.

A posição da pesquisa é produtiva porque penetra fundo nas ações de vida que levaram Luiz Gama a ser um jurista do direito contra o Brasil, desde o crime contra o homem re-escravizado ilegalmente – ou o homem queimado no chão das fazendas de café do interior paulista… – , até o crime estrutural geral, aquele que Luiz Felipe de Alencastro e Sidney Chalhoub anotaram como o pecado original da formação do Brasil, cuja denúncia primeira é atribuída a Joaquim Nabuco, mas foi de Luiz Gama: da fuga brasileira dos tratados acordados com a Inglaterra, e o estatuto simbólico jurídico forte desrealizado, de viver em plena oposição escravista traficante contra a própria falsa posição das leis, de Estado.

Luiz Gama é o cronista político, e o político comprometido, desta situação impossível. Ele a reconhece desde seus efeitos concretos de produção de sociedade sádica real no mundo da vida e das ruas, até a denúncia formal e racional no âmbito dos impasses de Estado sobre a sua própria contradição entre lei, símbolo, e economia, a pragmática colonial escravista que anulava a própria ideia de nação.

Luiz Gama era o escritor e o legista real, produtor da ideia da nação, contra o amontoado genérico de práticas ao redor da exploração limite dos corpos, com tortura pública como direito e extermínio pelo trabalho escravizado em massa, de uma longa situação histórica que permanecia, no mundo de uma corte e de um imperador instalados em país pensado sem povo, mas com escravizados estrangeiros. Assim, a escolha, com a força imanente da crítica, pelo direito como prática, a técnica estruturada disponível ao tempo a um homem não proprietário, foi decisão política que levou Luiz Gama do contato com os corpos desvalidos e arruinados dos africanos livres do Brasil, à crítica total da situação infernal, que se tornava objetiva através de seu trabalho. Nas palavras de Bruno em Pai contra mãe: “

A rigor, Gama articulou os dois mundos quando raríssimos eram aqueles que entendiam alguma coisa de um só. Por sua peculiar e riquíssima formação autodidata, a um só tempo profundamente prática e teórica, em uma instância na secretaria de polícia de São Paulo e na outra na biblioteca da faculdade de direito, o filho de Luiza Mahin ligou os dois polos – direito e política – em uma única e indissociável ideia de liberdade. A razão de ser do direito era a emancipação humana. E o seu caminho – “uma trilha estreita, em meio a selva riste”, por sinal, naquele inferno do Brasil escravista – era primeiro a Abolição, e depois sua irmã mais nova, a República. É por isso, em síntese, que inventou de pôr direito no abolicionismo, enquanto fazia abolicionismo por dentro do direito”.

6.

Direito dos escravizados, portanto, dos sem direitos. Outra caraterística de Luiz Gama contra o Império é o caráter hermenêutico original do pensamento de Bruno de Lima a respeito dos sentidos implicados na vida assimétrica, por assim dizer, de Luiz Gama. Há nele momentos reveladores de problemas significativos do século XIX americano, e no Brasil, visto pela perspectiva de seus escravizados. Como, por exemplo, a discussão da potência emancipatória que implicava o acesso ao dado moderno geral da leitura e, no caso de Luiz Gama, da escrita.

Uma situação em que, na ideia do historiador, a própria condição de aceder materialmente à leitura significava um tanto de subjetivação emancipatória, em nome de uma universalidade moderna dos direitos que parecia impressa na prática das letras. De forma que, para o escravizado, ler e ser sujeito político se confundiam em um processo único.

Ou, em outra passagem do trabalho, a sensibilidade para a situação fronteiriça das possibilidades das margens sociais de um escravizado fugido no Brasil, ainda não declarado livre: escapar para o fora absoluto, da fuga permanente e dos quilombos – hoje o centro da ideia crítica atual de vida anti-colonial – ou escapar para dentro, para o interior da sociedade brasileira de então, buscando a formalização do direito à vida e à cidadania, assumindo um tanto dos horrores da sociedade nacional como membro da comunidade de Estado, e tendo acesso aos instrumentos críticos disponíveis, oficiais, para habitar aquela comunidade, contra ela?

Ser “escravo fugido”, mesmo na falsificação do próprio direito, ou saber excluir-se – como disse Raul Pompeia a respeito do amigo Luiz – como agente da crítica em meio ao mundo do tênue reconhecimento de direitos, afirmando-os, em sociedade de promoção de escravidão e de recusa permanente das próprias possiblidades?

Este é um dos paradoxos resolvidos da existência do intelectual negro, ex-escravizado ilegal: aceitar e assumir os tênues termos oficiais, técnicos e progressistas, do mesmo Brasil que legitimava a sua destruição, e de milhões de escravizados ilegais, não caindo na abstração determinada da vida marginal. Fugir para dentro, se formar junto com a formação do país, entrar e sair simultaneamente, uma verdadeira figura da crítica no Brasil.

Ou ainda, a presença no livro da subliminar e permanente história da amizade, dos vários outros que reconheceram e investiram em Luiz Gama em cada um dos estágios de sua vida – a começar pela fascinante personagem da tia Maria Rosa de Jesus, de Pai contra mãe, passando pela “boa senhora” Vieira, e suas filhas, a matrona da família do traficante que o comprara ainda criança, cuja lembrança emocionou Gama por toda vida, até o amigo, “irmão dileto”, Antonio Rodrigues do Prado Junior, que o ensinara a ler pouco antes da fuga aos 18 anos, ou o preto sapateiro Antonio Marcelino do Rêgo, “honrado, amigo e mestre”, sacristão na Igreja do Rosário dos Homens Pretos e eleitor convicto do Partido Conservador…, até o delegado e jurista Furtado de Mendonça o acolhendo como ordenança e escrivão, e na biblioteca que dirigia na Faculdade de Direito, quando ele não tinha nada, homem que se tornaria mais tarde o padrinho de seu filho e ainda romperia com Luiz Gama quando da sua luta abolicionista total…, ao alemão brasileiro liberal anti-escravista Wilhelm Delius, que saudou em seu jornal de Santos a aparição das Primeiras trovas burlescas de Getulino, e que abriria, em 1862, a coluna original de Luiz Gama na primeira página de seu jornal, a quem o advogado dos pretos dirigia “o sagrado dever do reconhecimento” e agradecia “as lisonjeiras expressões de animação e benevolência”, ou o parceiro de diatribes e charges públicas explicitas contra a Guerra do Paraguai, o italiano recém chegado Ângelo Agostini, ou o amigo pessoal das confidências da autobiografia, Lucio de Mendonça, o Ruy Barbosa do jornal O Radical Paulistano, o amigo Raul Pompeia das conversas finais… ou o preto velho P. P. Carneiro, coautor no jornal satírico O Polichinelo e parceiro no desvendamento de crimes contra crianças negras cometidos “por torpeza de brancos”, bem como o anônimo amigo coveiro do Cemitério da Consolação, também parceiro no desvelamento de crimes de brancos… entre tantos.

Se o Brasil sempre foi a terra da exclusão e do terror da dominação sem lei dos escravizados, baseada no valor direto da mercadoria, da produção, da riqueza e do sadismo, a política da amizade, fundada em tipos de vinculo de amor como dizia o psicanalista Wilfred Bion, foi um contraponto real a tal ordem e mundo, sem forma e sem direito, como o nomearam Caio Prado Junior e Luiz Gama.

Em terra de total pessoalidade no lugar da estruturação política da cidadania, a estratégia social, biopolítica da cordialidade, podia tanto garantir a vida de agregados e homens livres sem nenhum poder na sociedade escravocrata, a não ser se diferenciarem dos escravos, fundando a nossa tênue classe média dependente, altamente conservadora, quanto podia, noutra direção, quando elevada ao segredo da politica da amizade, sustentar a vida de desvalidos, populares, escravizados que fugiam e homens pobres excepcionais.

Antecedendo toda estrutura de reconhecimento, de mérito científico, abstrato, burocrático e instituído, a esfera da política da amizade brasileira era de protoreconhecimento, pré-político, mas político, que fazia de laços amorosos básicos a porta de entrada imaginada da cidadania a conquistar. Por isso a reconstrução de Bruno de Lima dos apoios decisivos e das amizades de Luiz Gama ao longo da vida marcada pela escravização em país perverso é sensivelmente relevante. Ela gera momentos excepcionais de historiografia dos rebotalhos do mundo.

Como a reconstrução da cidade, do mundo e da vida do mestre sapateiro Antonio Marcelino, e seu apoio ao menino Luiz desembarcado em São Paulo, passagem em que Bruno exercita sua habilidade como historiador, sua filologia histórica, nos detalhes perdidos nos centenas de escritos de Luiz Gama, e também de escritos contra ele.

O próprio Luiz Gama, historiógrafo do presente, fez de seu registro casuístico de disputas políticas e judiciais contra senhores e juízes, feras da escravidão, junto à sua crônica da barbárie cotidiana nos jornais, um exercício consciente de anotar a vida sob risco permanente de destruição dos escravizados que defendia. E, na impossibilidade de salvar a todos do Império escravista, se pôs aberto ao recebimento, ao cuidado, ao conselho, à “animação e à benevolência” na direção da vida livre e do direito, de todos os que o procuravam. Não por acaso, ficou conhecido ao seu tempo, entre outros epítetos, como “o amigo de todos”.

7.

Bruno Rodrigues de Lima é um historiador que não se furta à identificação mais profunda com seu objeto, que é também, como temos visto, um espírito e uma política. Muito das questões que concebe vem da imaginação humana plausível a respeito do homem, bem conhecido (mas nem tanto…) pelas ideias escritas e pela ação histórica, em cada momento de desvalimento referente aos passos de um escravizado no Brasil do XIX, e na posição e no quadro histórico das disputas e guerras antiescravistas que assumiu.

Há uma psicologia histórica também operando na historiografia total de Luiz Gama por Bruno de Lima. Como ocorre na psicanálise, sabendo muito da linguagem e do mundo de uma pessoa, pode-se arriscar um pouco entender como ela vive, pensa e sofre os próprios sentidos de suas coisas. Junto ao testemunho do homem, e o quadro contingente da sua vida, vislumbra-se o seu psiquismo atuando. Necessariamente a tabua comum desta avaliação do humano, sobre a qual se destacam as tensões e os problemas, é a estrutura ética dos direitos universais, fundamental para Luiz Gama e, ao modo de seu próprio trabalho, também para Bruno de Lima.

Sem descuidar do documento em nenhum momento, o historiador concebe como um intelectual negro comprometido com a abolição e a República, tendo vivido na pele as coisas da escravidão, que ascendia à crítica escrita como instrumento de pensamento em mundo de grande oposição à ideia, vivia o seu tempo. Ele parece exercitar aquela arcana arte da correspondência, que Walter Benjamin localizou em Marcel Proust e nos surrealistas, e com a qual se identificava, para se mover no mundo de Luiz Gama, entre o fato, as potencias hermenêuticas dos sentidos e o homem.

Assim, para além do seu foco muito forte na formação do advogado como político crítico do Brasil, podemos observar no cuidado biográfico dos vários Gamas da história, o testemunho, o jornalista, o poeta, o polemista, o advogado, o crítico político, a formação gradual de uma figura maior, que fala das possibilidades do pensamento crítico em país de violências basais, forjadas na compulsão à repetição.

Bruno de Lima destaca e integra, em seu Luiz Gama, tanto o polemista satírico, chargista insolente, poeta do desmascaramento e das carapuças, dedicado ao Brasil como absurdo histórico, quanto o sério homem da técnica, do conhecimento formal, da linguagem precisa e elevada, da demanda de nação justa, duas figuras que tinham iguais poderes de choque e revelação na sociedade informe e sádica.

Os vetores importantes entre nós do modernismo e da vanguarda marginal – e sua crítica derrisória total, que destaca a razão como riso sardônico diante do fundo postiço e ruinoso, mas real, da chamada civilização brasileira – e, noutra direção, do homem implicado na construção nacional, que deve edificar-se pela técnica e pela exigência teórica, dos tipos progressistas de um Sérgio Buarque, ou de um sério e conhecedor Celso Furtado, ou dos tecnocratas de esquerda da redemocratização brasileira do século XXI, estavam presentes na pulsão crítica exemplar de Luiz Gama.

Cindida deste modo, estas tendências fortes do pensamento no Brasil se juntam de forma especial no homem único, que uniu o escravizado, o progressismo, o direito e a crítica, no século XIX brasileiro.

*Tales Ab’Saber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra) [https://amzn.to/4ay2e2g]

Referência

Bruno Rodrigues de Lima. Luiz Gama contra o Império, a luta pelo direito no Brasil da escravidão. São Paulo, Editora Contracorrente, 2024, 628 págs. [https://amzn.to/4gtmrtu]

Notas


[i] Roberto Schwarz, “Autobiografia de Luiz Gama”, Seja como for, São Paulo: Editora 34, Livraria Duas Cidades, 2019, p. 345.

[ii] Luiz Gama, “Direito em linguagem enérgica”, Democracia, São Paulo: Hedra, 2021.

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27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
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O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
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Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
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Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
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Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
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O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
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Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
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O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
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