Lula: um presidente populista?

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Por JULIAN RODRIGUES*

Todo ou qualquer governo com compromissos democráticos e populares é espinafrado de antemão e sem tréguas

Populismo é um daqueles conceitos que de tão usados acabam quase totalmente esvaziados de qualquer sentido prático. Pode ser isso, aquilo – ou mesmo seu contrário, ao mesmo tempo agora – conforme o gosto do freguês. Na grande mídia, por exemplo, o termo aparece para adjetivar o que eles consideram regimes autoritários (quase sempre os de esquerda). Populismo seria, portanto, uma forma de governar maligna que deve ser repudiada.

A rigor, qualquer chefe de governo que acena com políticas públicas voltadas à diminuição da desigualdade e/ou à constituição de algo parecido com um Estado de bem-estar social é condenado imediatamente pela “tigrada” (os ricos e seus porta-vozes na mídia). Ganham carimbo fortes: viram feios, sujos, malvados – e ainda por cima recebem o anátema-mor: populistas.

Ou seja: fazer qualquer coisa para melhorar a vida do povo constitui-se em algo ruim por si. Todo ou qualquer governo com compromissos democráticos e populares é espinafrado de antemão e sem tréguas, porque, afinal, teria sido infectado pelo vírus populista. Mas o que é esse tal de populismo? O PT e Lula são populistas também? Se sim, isso é algo negativo ou positivo (e para quem)?

Ater-me-ei aos limites e características desse textinho – que é humilíssimo –, breve artigo jornalístico. Fugirei, portanto, de controvérsias teóricas. Solenemente vou desconsiderar a imensa produção crítica relacionada ao tema do populismo – tentarei ir direto ao ponto.

Jogo rápido: populismo é classificação atribuída a governos progressistas que implementam reformas sociais (geralmente na América Latina). Seus líderes – considerados carismáticos – costumam deter apoio tanto de frações da burguesia como das classes subalternas.

Pessoalmente prefiro enxergar tais governos como ensaio do que seria uma certa socialdemocracia possível em nuestra latino-américa. Perón na Argentina e Getúlio no Brasil, por exemplo.

Portanto, taxar de populista um governo como o de Jair Bolsonaro, neofascista, é muita sordidez e desonestidade intelectual – canalhice reproduzida pela grande mídia e também certos intelectuais “liberais”.

Populismo tem a ver, historicamente, com governos que melhoram de alguma forma a vida do povo. Como seria possível, então, colocar no mesmo balaio Maduro, Cristina e Bolsonaro? O que a mídia costuma rotular como populismo, na verdade se refere tão somente a governos que se situam no campo progressista – mesmo com diferenças e contradições.

Na verdade, populismo é a forma como tradicionalmente o andar de cima tende a classificar qualquer governo socialdemocrata em nosso continente (síntese afiada de Lincoln Secco). Perón e Getúlio – paradigmas do que seriam os tais governos populistas – não tinham origem pobre. Vinham de famílias “pequeno-burguesas”, por assim dizer. Todavia, fizeram na Argentina e no Brasil governos modernizadores que desenvolveram o capitalismo e seus respectivos Estados nacionais – com distribuição de renda e direitos sociais.

Ambos eram “populistas” então? Ou lideranças populares/carismáticas reformistas que operaram uma forte estratégia de comunicação e mobilização das massas trabalhadoras? Cá entre nós, talvez seja mais pertinente entender o getulismo e o peronismo como um ensaio socialdemocrata em latino-américa – e não como governos meramente “caudilhescos”.

Noves fora o “nojinho” que os liberais têm deles (o que por si só já é algo bem significativo), Getúlio e Perón deixaram sim um legado progressivo. Melhoraram a vida de muita gente com medidas modernizantes, industrializantes e distributivistas.

Aqui é preciso estabelecer um referencial: populismo – diferentemente do que propaga o senso comum, não tem, por si só conotação negativa – apesar de serem regimes/governos sempre considerados pela burguesia “feios, sujos e malvados”.

 

E o Lulão?

Há que se assinalar de saída as imensas diferenças entre a trajetória de Lula quando cotejada com a biografia dos históricos líderes populistas. Começando do começo. Lula era pobre, nordestino, migrante, um operário que se tornou líder sindical – e a partir daí protagonizou a formação do maior partido da classe trabalhadora brasileira.

Luís Inácio da Silva é, a despeito de todo preconceito e senso comum, um refinado intelectual orgânico do proletariado. Foi desde sempre arguto/dedicado dirigente partidário, além de extraordinário líder político – e ao mesmo tempo, gigantesco quadro de massas. Na Presidência da República revelou-se também talentoso gestor público. As políticas que executou no governo fortaleceram enormemente sua liderança entre as massas populares.

Às vezes acho que não temos nem de longe a noção exata da dimensão do que é agora e o que virá a ser o legado de Lula. A esquerda brasileira não deixa de ser privilegiada por poder contar com a liderança do filho da Dona Lindu. A burguesia e seus grilos-falantes se irritam demais (e nem ao menos tentam disfarçar) com a imensa capacidade que tem Lulão de falar diretamente às massas, e se firmar também como um estadista respeitado “all around the world”.

É fato. As políticas sociais de Lula foram fundamentais para estabelecer essa ligação especial que ele tem com os mais pobres. Críticas que tentam desqualificar a popularidade do Presidente, em especial a enormidade da força que detém no Nordeste, são em geral preconceituosas e elitistas – flertam com certo racismo regional.

Lula são muitos: é personagem dialético, pluridimensional. Navega por diversos espaços ao mesmo tempo – move-se entre eles com agilidade, argúcia e elegância singulares. Nas décadas vindouras Lula com certeza será tema de detalhadas pesquisas acadêmicas e figura de destaque nos livros de história.

André Singer foi pioneiro e ousado ao cunhar o termo “lulismo” – tateando, buscando uma teorização/explicação generalista. Mas, tem um problema de saída aí. Como esboçar uma teoria sobre Lula se ele ainda nem começou? Talvez seja melhor, do ponto de vista acadêmico, deixar a história se fazer por completo antes de buscar construir teses, hipóteses generalistas ou explicações sistêmicas sobre Lula e o “lulismo” (se é que isso existe mesmo).

O fato concreto (expressão que Lulão adora) é o seguinte: nem de longe se pode adjetivar Lula como líder “populista”. Suas raízes são sindicais: ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo é um agitador e organizador popular, orgânico.

Não me perfilo entre os que desqualificam e/ou consideram regressivos líderes como Getúlio ou Péron. Muito menos Néstor/Cristina Kirchner ou Chávez/Maduro – que são bem diferentes entre si, claro. Populismo, para nós progressistas, em nenhuma hipótese deve soar pejorativamente.

A Globo News e os nossos jornalões não cessam de martelar o tempo todo ideias neoliberais toscas: portam-se como assessoria de imprensa da Faria Lima. Recentemente dedicam-se o dia inteiro a incidir sobre o governo petista, sempre tentando bloquear o programa que elegeu Lula (uma plataforma keynesiana, social- desenvolvimentista).

Lula lidera um governo de coalizão com alguns setores (minoritários) das classes dominantes. Mas todos os sinais que vem emitindo vão na direção de realizar um mandato histórico. Ousado e transformador. Aliás, Lulão tem sido, na prática, a ala esquerda de seu próprio governo.

Mais experiente e preparado que nunca, marcado pela dolorosa experiência do cárcere é nítido que Lula não está a cultivar ilusões acerca do caráter das classes dominantes brasileiras. E parece determinado a deixar um consistente legado de democratização e redução da desigualdade.

 

Lula é maior que o PT? Certamente

Todavia, não existiria Lula sem o PT. Ou sem o sindicalismo, os movimentos sociais, sem toda a mobilização do campo democrático-popular. Lula tem raízes profundas no seio do povo organizado – e faz questão de as preservar. Nem de longe pode ser comparado a lideranças “populistas” (naquele sentido usual em que se emprega o termo).

Lula é a síntese das lutas da classe trabalhadora e de todos setores progressistas do país nos últimos 50 anos. É também produto do avanço da consciência política do povo. Não se trata de líder carismático que paira acima da sociedade civil e dos partidos. Pelo contrário. Lula só é o que é porque coletivamente o construímos nas últimas décadas – junto com um forte campo popular, democrático e socialista. Ele sempre reitera isso, a propósito.

Portanto, sem apressados ou superficiais rótulos. É ignorar e neutralizar a má vontade da mídia (e de certos setores acadêmicos) com um so-called populismo. Ou com o que seria o “lulismo”. (A propósito, já imaginaram Lulão em pleno modo populista? Seria bom demais).

Mas, todavia, porém, contudo, entretanto Lula e o PT expressam outro tipo de movimento, formato organizativo e representação de classe – fruto de outro contexto histórico. Além de ajudar Lula a realizar um excepcional terceiro governo, o desafio dado é aumentar a força eleitoral/social do PT e da esquerda como um todo. Portanto, é momento de apostar fortemente na mobilização/organização da juventude, priorizar a formação de quadros e realizar cotidianamente a disputa político-ideológica-cultural.

Quiçá o lulismo venha de fato a se constituir como uma força popular tão longeva e enraizada quanto efetivamente transformadora. Melhor ainda: que o PT siga sendo um partido orgânico, democrático, popular, plural e mantendo seu objetivo estratégico: a construção do socialismo no Brasil.

Parabéns e obrigado do fundo do coração a todas e todos lutadores do povo que ajudaram a construir o PT nesses últimos 43 anos. Vida longa ao Partido dos Trabalhadores. Viva Lula! Viva a classe trabalhadora! Viva o PT!

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, é militante do PT e ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos.

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