A história do Grupo Wagner

Imagem: Reprodução Telegram
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Por SCOTT RITTER*

A traição de Prigozhin fez com que Wagner fosse maculado pela ganância e ambição nua de seu proprietário

A poeira baixou após a insurreição abortada do último fim de semana de junho, encenada por Yevgeny Prigozhin, o proprietário da empresa militar privada conhecida como Grupo Wagner, ao lado de 8.000 combatentes que ele empregou, para afrontar (ou intimidar) o presidente russo Vladimir Putin. Desde então, surgiu uma imagem mais clara sobre o que exatamente aconteceu durante esse golpe e por que esses eventos ocorreram tal como ocorreram. Também deu tempo para iluminar o Grupo Wagner, revelando-o como algo mais do que o bando invencível de heroicos patriotas, celebrado pela sociedade russa em geral.

Em vez disso, surge uma imagem menos lisonjeira do grupo Wagner, que o retrata tão apenas como um empreendimento comercial dirigido por um narcisista corrupto que usou fundos do Estado russo para construir um culto à personalidade que hipnotizou a população russa, para fazê-la ingenuamente crer que Wagner seria o único recurso de salvação para a Rússia, diante da ameaça representada pela guerra com a Ucrânia.

Como analista militar com bastante experiência na cobertura de conflitos armados, não me vejo muito suscetível a ficar impressionado na presença de homens que, por sua experiência, conquistaram a reputação de guerreiros de estatura formidável. Eu mesmo fui um fuzileiro naval dos Estados Unidos, membro de uma fraternidade de guerreiros do mar orgulhosos, tanto de sua história quanto de suas habilidades militares, por alguns consideradas inigualáveis. Servi em situações perigosas, com agentes especiais de unidades militares de elite dos Estados Unidos e trabalhei em estreita colaboração com profissionais igualmente qualificados de outras nações. Suspeito que sei bem o que constitui a competência militar, e não hesito em dar a ela o crédito que lhe é devido.

Como alguém que segue de perto os eventos no Oriente Médio, tenho acompanhado as atividades do Grupo Wagner na Síria desde sua implantação inicial em 2015. Sua reputação como combatentes qualificados foi conquistada com o sangue de dezenas de seus camaradas que perderam suas vidas lutando contra terroristas afiliados ao Estado Islâmico e à Al Qaeda. Assim, quando em 2022 começaram a circular rumores sobre a presença de combatentes do Grupo Wagner operando ao lado do exército russo na região de Donbass, fiquei alerta.

Era difícil encontrar fontes confiáveis de informação, e o Grupo Wagner era reticente quanto a qualquer pessoa que prestasse informação sobre suas atividades. Finalmente, no entanto, consegui entender o papel desempenhado pelo Wagner no Donbass, juntamente com o impacto que o grupo teve na guerra. Meus comentários buscavam refletir a alta consideração que tinha por essa organização militar, como uma formação de combate na qual se depositavam o heroísmo e a habilidade dos soldados que a constituíam.

Antes de minha recente visita à Rússia, meu anfitrião me informou que as forças de Wagner envolvidas na luta feroz em torno de Bakhmut elogiaram as análises que fiz e que poderiam ser contadas entre meus maiores fãs. De fato, durante minha visita, fui apresentado a vários veteranos do Wagner, assim como a alguns funcionários ainda em serviço nele, todos os quais quiseram apertar minha mão e muitos dos quais me brindaram com presentes que expressam seu profundo apreço pelo meu trabalho. Fosse uma faca de combate, uma marreta cromada (um símbolo não oficial do Grupo Wagner) ou vários emblemas de combate Wagner (incluindo um bordado com meu nome), fiquei surpreso com o afeto genuíno e sincero que esses combatentes – conhecidos por sua tenacidade sob fogo – me demonstraram.

Quando os eventos de 23 a 24 de junho se desenrolaram diante de mim, fiquei surpreso. Uma organização que eu tinha na mais alta estima estava engajada em um ato de autodestruição diante de meus olhos, disposta a uma conduta – uma insurreição armada contra um governo constitucionalmente eleito – que qualquer profissional militar imbuído de respeito pela cadeia de comando e pela nação para a qual serve acharia repreensível (ao menos aqueles que possam ser reconhecidos como respeitáveis – os demais, evidentemente, não o são). Como muitos outros, fui compelido a reexaminar meu entendimento a respeito do Grupo Wagner, das pessoas que empregava e de sua história a serviço da Rússia.

Relativamente, pouco se sabe sobre a formação do Grupo Wagner. A pouca informação disponível vem do próprio Yevgeny Prigozhin e, como tal, deve ser vista no contexto de sua tendência à autopromoção. Yevgeny Prigozhin negou por muito tempo qualquer envolvimento com o Grupo e, chegou a entrar com uma ação legal contra jornalistas (incluindo o site web holandês pró-Ocidente Bellingcat) que relataram seu envolvimento. Isso mudou em setembro de 2022, quando Yevgeny Prigozhin discutiu abertamente sua função no Grupo Wagner em uma postagem publicada em sua página do Telegram.

As origens do Wagner remontam a fevereiro de 2014, após a violenta derrubada do presidente constitucionalmente eleito da Ucrânia, Viktor Yanukovych, por neonazistas ucranianos apoiados pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Naquela época, a Crimeia fazia parte da Ucrânia. Logo depois que o golpe Maidan derrubou Viktor Yanukovych, os neonazistas ucranianos tentaram assumir o controle da Crimeia, que sempre teve uma população de maioria étnica russa, cujas lealdades se inclinavam decididamente para Moscou. Os neonazistas foram confrontados pelas chamadas “unidades de autodefesa”, formadas pelos cidadãos locais pró-Rússia.

Mas havia outros atores no terreno também. Preocupado que o novo governo ucraniano convocasse seu exército para intervir, o governo russo mobilizou uma força de várias centenas de “homenzinhos verdes”, formada por forças especiais russas de elite que, devido a limitações constitucionais a respeito do envio de forças regulares do exército russo para atuar em uma nação estrangeira, agiram de modo encoberto sob fachada falsa (“sheep dipped”: uma tática criada pela espionagem norte-americana, que se consagrou durante a guerra secreta da CIA no Laos, nos anos 1960 e 70, onde oficiais da Força Aérea dos Estados Unidos eram transferidos para a empresa “Air America” – cujo verdadeiro proprietário era a CIA – para realizar operações dentro daquele país).

O homem encarregado desses operadores especiais encobertos (“sheep dipped”) foi Dmitry Utkin, um tenente-coronel recém-aposentado, que já havia comandado uma unidade de forças especiais russas (Spetznaz) afiliada à Inteligência Militar (ou GRU – a partir do seu nome em russo). Utkin e seus “homenzinhos verdes” desempenharam um importante papel na retomada russa da Crimeia em 26 de fevereiro de 2014, quatro dias depois que Viktor Yanukovych teve que fugir da Ucrânia. Após a reanexação da Crimeia pela Rússia, por plebiscito popular, em março de 2014, os “homenzinhos verdes” de Utkin foram enviados para Lugansk, onde ficaram encarregados de fornecer treinamento e assistência às milícias populares autonomistas que pegaram em armas contra os neonazistas ucranianos que tomaram o poder em Kiev.

À medida que a luta se expandia, também aumentava o papel dos “homenzinhos verdes” e, em abril daquele ano, parece ter ficado claro para o governo russo que seria preciso criar uma organização mais formal, que serviria de canal para a assistência militar aos russos étnicos que lutavam no Donbass. Em 1º de maio de 2014, uma nova entidade, conhecida como “Grupo Wagner” (em homenagem ao indicativo de chamada “Wagner”, usado por Utkin) foi criada, e recebeu um contrato com o Ministério da Defesa para atuar naquela função. Enquanto Utkin servia como comandante militar dessa nova organização, o Grupo Wagner era administrado por um pool de empresários civis liderados por Yevgeny Prigozhin, que naquela época havia se estabelecido como um gerente de restaurante de sucesso, cujos clientes incluíam o presidente russo Vladimir Putin.

Wagner esteve intensamente envolvido nos combates que ocorreram no Donbass de maio de 2014 a fevereiro de 2015, quando um cessar-fogo entrou em vigor após a assinatura dos acordos de Minsk 2. Com a luta na Ucrânia diminuindo, Prigozhin e Utkin procuraram explorar a experiência anterior de Utkin como agente na Síria. A possibilidade de implantar uma unidade militar profissional capaz de operar em solo estrangeiro, onde as forças regulares russas estavam proibidas de atuar, tornou-se atraente para o Ministério da Defesa russo, que contratou Wagner para fornecer assistência militar ao governo sírio do presidente Bashar al-Assad.

O sucesso de Wagner na Síria levou à execução de “contratos de apoio” (serviços terceirizados) adicionais para operações em vários países africanos. Além de ser pago pelo governo da Rússia, o Grupo Wagner conseguiu organizar suas próprias relações econômicas com seus clientes africanos, o que o levou a vários empreendimentos lucrativos, destinados a enriquecer seus proprietários, incluindo Prigozhin.

Em 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin ordenou que os militares russos iniciassem o que veio a ser chamado de “Operação Militar Especial” (SMO) contra a Ucrânia. Os militares russos começaram a se posicionar no terreno das Repúblicas Populares de Lugansk e Donietsk (ambas reconhecidas pela Rússia como Estados independentes dias antes do início do SMO), onde passaram a lutar ao lado das milícias populares. O Grupo Wagner continuou a operar no território de Donbass em capacidade reduzida de 2015 até o início do SMO.

Após os interesses norte-americanos e britânicos terem colapsado as negociações de paz de 1º de abril de 2022 entre a Rússia e a Ucrânia, que tinham ocorrido em Istambul, na Turquia, os militares russos foram instruídos a iniciar operações ofensivas em larga escala, destinadas a libertar o território de Donbass ainda ocupado pela Ucrânia. Em 1º de maio de 2022, um novo contrato foi assinado entre o Ministério da Defesa da Rússia e o Grupo Wagner por cerca de 86 bilhões de rublos (ou 940 milhões de dólares), para expandir o escopo e a escala de sua operação ucraniana de simples assessoria e assistência para a ação direta de uma unidade de combate do tamanho de uma divisão, capaz de lutar ativamente contra as forças ucranianas regulares. Para adoçar o acordo, o Ministério da Defesa da Rússia assinou um acordo separado de 80 bilhões de rublos (cerca de 900 milhões de dólares) para o fornecimento de alimentação ao exército russo, por meio da empresa de catering de Yevgeny Prigozhin. Ao que tudo indica, a guerra se tornou para ele um negócio extremamente lucrativo.

Wagner desempenhou um papel importante em muitas das batalhas travadas na primavera e no verão de 2022 que, coletivamente, ficaram conhecidas como a Batalha do Donbass. Wagner foi inicialmente organizado como uma unidade do tamanho de um batalhão, com várias centenas de militares veteranos altamente treinados. À medida que a luta se arrastava, as forças de Wagner começaram a se expandir em tamanho e capacidade, logo adquirindo seus próprios recursos blindados e de artilharia, assim como uma unidade de dedicadas aeronaves de combate.

Quando a cidade de Sievierodonietsk, em Lugansk, caiu para as forças russas, em 25 de junho de 2022, o Grupo Wagner era já uma unidade do tamanho de uma divisão, que havia conquistado uma reputação de experiência em combate urbano, assumindo a liderança na limpeza das tropas ucranianas entrincheiradas nas ruínas daquela cidade. Com a queda da cidade vizinha de Lysychansk, em 3 de julho de 2022, o Grupo Wagner tornou-se sinônimo de excelência operacional.

A luta em Sievierodonietsk e Lysychansk, por mais bem-sucedida que tenha sido para os russos e para o Grupo Wagner, provou ser extremamente cara do ponto de vista das baixas. Tornou-se evidente, tanto para o comando militar de Wagner, constituído em torno de um grupo de veteranos militares experientes, conhecido como “conselho de comandantes”, quanto para os proprietários corporativos do Grupo, chefiados por Prigozhin, que Wagner padeceria tanto em termos de eficiência militar quanto de lucratividade se tivesse que recrutar e atualizar veteranos para substituir os que haviam caído em batalha. Durante os combates de casa em casa, que definiram as batalhas de Sievierodonietsk e Lysychansk, os comandantes de pequenas unidades de Wagner desenvolveram táticas que combinavam poder de fogo (artilharia indireta e apoio de fogo direto de tanques) com ataques de infantaria agressivos que subjugavam os defensores ucranianos.

Assim, em vez de desperdiçar combatentes experientes nesse estilo de luta, Prigozhin começou a recrutar novos combatentes a partir das prisões russas, prometendo-lhes a eliminação de seus antecedentes criminais em troca de um contrato de seis meses para lutar na linha de frente. Os comandantes de Wagner treinaram esses recrutas próprios ao longo de um programa de 21 dias, que se concentrava nas habilidades rudimentares de combate necessárias para executar as táticas de guerra urbana que o grupo utilizava, antes de organizá-los em unidades de choque. Essas unidades, embora eficazes, sofreram até 60% de baixas. Entre os 30 a 50 mil detentos recrutados por Wagner, cerca de 10 a 15 mil teriam sido mortos nos combates logo subsequentes, pelas cidades de Soledar e Bakhmut.

As batalhas por essas duas cidades gêmeas começaram em 1º de agosto de 2022. O Grupo Wagner e suas unidades de choque constituídas por ex-detentos desempenharam um papel central nos intensos combates que se seguiram. A essa altura, o mundo já começava a notar a ação dos combatentes dessa companhia militar privada. Rotulados pela mídia e governos ocidentais como mercenário, e como heróis patrióticos pelos russos étnicos do Donbass, cujas casas, vilas e cidades estavam sendo libertadas, Wagner começou a emergir das sombras. Enquanto anteriormente o governo e a mídia russa eram reticentes até mesmo em reconhecer sua existência, no final de setembro de 2022 Prigozhin assumiu que ele era o proprietário do Grupo, em uma postagem em seu canal no Telegram em que o admitia.

Enquanto muitos observadores tomaram o passo inesperado de Prigozhin, para o centro das atenções, como um sinal do crescente perfil público de Wagner, a realidade por trás da decisão do empresário era não muito mais que um simples negócio. De 25 a 27 de setembro de 2022, os cidadãos do Donbass realizaram um referendo sobre se queriam ser incorporados à Federação Russa. Já no final do primeiro dia do plebiscito, ficou claro que o resultado seria um “sim” esmagador.

Prigozhin tornou público seu papel como proprietário do Grupo Wagner em 26 de setembro de 2022. Essa foi a primeira salva do que se tornaria uma grande campanha de relações públicas, projetada para criar a impressão de que Wagner era uma parte essencial do esforço de guerra russo, cujos lutadores eram singularmente capazes de derrotar os ucranianos. A campanha de relações públicas de Prigozhin foi reforçada pelo fato de que o público russo ficou chocado com a retirada das escassas forças do exército russo durante a ofensiva ucraniana de Kharkov, que começou em 6 de setembro de 2022. Enquanto o exército regular estava em retirada, as forças de Wagner continuavam a avançar ao longo da frente Soledar-Bakhmut, fornecendo ao povo russo o único exemplo de sucesso no campo de batalha durante esses dias sombrios.

Para Prigozhin, tornou-se essencial separar Wagner do exército russo aos olhos do povo russo. A razão era simples: com o Donbass agora parte da Federação Russa, o Grupo Wagner encontrava-se em violação técnica das leis russas que proibiam a operação de empreiteiros militares privados em solo nacional. Já se falava sobre a necessidade de mudar o status contratual do relacionamento de Wagner com o Ministério da Defesa da Rússia assim que o contrato de Wagner expirasse em 1º de maio de 2023.

Mas Prigozhin tinha seu próprio esquema para ganhar dinheiro, especialmente quando se tratava do uso de detentos das prisões russas. O empresário podia pagar a eles menos do que um soldado regular de Wagner, e o custo de seu treinamento era mínimo em comparação com o de combatentes mais especializados. O dinheiro economizado nesse processo chegou a ser estimado em dezenas de milhões de dólares, que encheram os bolsos de Prigozhin e seus colegas proprietários e investidores. Desesperado para manter esse empreendimento intacto, Prigozhin partiu para a ofensiva, condenando publicamente generais e oficiais russos, incluindo o ministro da Defesa, Sergei Shoigu.

Em novembro, Wagner inaugurou um novíssimo centro em São Petersburgo, projetado para impulsionar a empresa, na psique do público russo, como um importante participante nos assuntos de segurança nacional da Rússia. Enquanto isso, os combatentes de Wagner avançavam em seus ataques a Soledar e Bakhmut, estimulados pelo desejo de Prigozhin de serem vistos como a força de combate mais eficaz na luta contra os ucranianos. E, cada vez mais, as unidades que lideravam o ataque eram compostas por ex-detentos russos.

Prigozhin, no entanto, enfrentava um problema. Ele foi forçado a parar de recrutar nas prisões pelo simples fato de não ter um suporte contratual para pagar os detentos depois de 1º de maio de 2023, o que significava que o último recrutamento de presidiários foi procedido por Wagner em 1º de dezembro de 2022. Os presos ainda podiam se voluntariar como combatentes da linha de frente, mas dali por diante eles teriam que assinar contratos com o Ministério da Defesa. Como os contratos dos detentos ficavam vinculados a períodos específicos de serviço, que deveriam ser cumpridos antes que seus registros pudessem ser eliminados, Wagner não podia comprometer os presos com nada menos do que seis meses completos de alistamento. Wagner só poderia recrutar não presidiários, pois, com eles, não haveria problemas legais se Wagner não renovasse seu contrato com o Ministério da Defesa.

Enquanto a campanha de relações públicas de Prigozhin tornava-se um tremendo sucesso – Wagner até lançou um longa-metragem, Best in Hell (“O melhor no inferno”), em fevereiro de 2023, que levou para a tela os horrores da guerra urbana, assim como o heroísmo individual dos seus combatentes –, ele não conseguia, por outro lado, conquistar o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o chefe do Estado-Maior da Rússia Forças Armadas e Primeiro Vice-Ministro da Defesa, Valery Gerasimov. Prigozhin então transformou o que seria apenas um desacordo profissional sobre legalidades em um assunto pessoal, sobre o qual carreou alegações de corrupção e incompetência dos chefes militares. Prigozhin também começou a acusar o Ministério da Defesa da Rússia de atrasar deliberadamente o fornecimento de munição às forças de Wagner, um fenômeno que ele descreveu como “fome de artilharia”, que se viu coincidentemente acompanhado de um número de baixas desproporcionalmente alto.

Prigozhin começou a se comportar de forma irregular. Estava ficando cada vez mais claro que o contrato de Wagner não seria renovado, o que significava que as forças de Wagner teriam de ser incorporadas ao próprio Ministério da Defesa russo, assim como sua liderança. Também estava ficando claro que o lucrativo contrato de alimentação de Prigozhin com o Ministério da Defesa também não seria renovado, uma decisão provavelmente ligada aos ataques de Prigozhin aos dois funcionários mais graduados do Ministério da Defesa, Shoigu e Gerasimov.

Foi nessa época que Prigozhin discutiu pela primeira vez a questão do que aconteceria com a força de 50 mil homens de Wagner se o Ministério da Defesa russo continuasse a insistir em sua incorporação formal. Em uma entrevista em fevereiro de 2023 com Semyon Pegov (ou “War Gonzo”), um correspondente de combate e blogueiro pró-Rússia, o tópico de um possível ataque de Wagner a Moscou foi levantado no contexto das “restrições” de munição do Ministério da Defesa ao Grupo. Ainda que Prigozhin tenha notado que a ideia não se originou dele, acenou que ela lhe parecia interessante. Isso é algo que ninguém deseja ouvir de alguém que possui um grande exército privado, bem equipado e endurecido pelo combate.

Foi também em fevereiro de 2023 que, segundo a inteligência dos Estados Unidos, Prigozhin e o serviço de inteligência ucraniano começaram a se comunicar diretamente. Talvez captando a frustração e a paranoia de Prigozhin, o serviço de inteligência ucraniano notificou o proprietário do Wagner sobre uma conspiração envolvendo ex-funcionários do grupo para orquestrar um golpe na Moldávia. Prigozhin e Wagner estariam, nessa época, portanto, conduzindo conversas secretas com a inteligência ucraniana. Considerando o fato de a inteligência russa ter ficado sabendo desses contatos, a Ucrânia aventou na mídia a possibilidade da prisão de Prigozhin e sua subsequente estigmatização como traidor.

O impacto de Prigozhin perder quase 2 bilhões de dólares em contatos, combinado com um nível crescente de paranoia de sua parte, por ter se engalfinhado em uma luta de vida ou morte com Shoigu e Gerasimov, levaram o proprietário do Wagner a dobrar seus ataques histriônicos contra a liderança militar russa, na pretensão de, assim, criar a impressão de que ele e Wagner sozinhos poderiam garantir a vitória militar da Rússia sobre a Ucrânia. Esses ataques atingiram seu ponto culminante nas lutas finais por Bakhmut, que terminaram em 20 de maio de 2023, quando Prigozhin anunciou que seus combatentes haviam capturado a cidade. Prigozhin mencionou a dimensão de “moedor de carne” dessa batalha e como Wagner, com grande sacrifício, “quebrou a espinha” do exército ucraniano, matando entre 55 e 70 mil soldados inimigos e perdendo entre 20 a 30 mil de seus combatentes.

Enquanto a Rússia comemorava as realizações de Wagner em Bakhmut – elevando ainda mais o status quase mitológico que Wagner e seus combatentes desfrutavam aos olhos de um público russo embevecido –, Prigozhin tinha assuntos mais urgentes para lidar. Seu contrato com o Ministério da Defesa havia expirado. Ele havia recebido uma prorrogação de dois meses (até 1º de julho de 2023), por conta do fato de Wagner estar fortemente engajado nos combates em Bakhmut.

Depois desse tempo, porém, as forças do Grupo que operavam no Donbass teriam que firmar uma relação contratual com o Ministério da Defesa, ou então seriam dissolvidas. Prigozhin retirou seus combatentes de Bakhmut para acampamentos no leste de Lugansk, onde pressionou seus comandantes endurecidos pelo combate a rejeitar os termos do Ministério da Defesa, e, em vez disso, juntar-se a ele para criar uma frente comum de oposição à liderança do exército russo.

A oposição de Prigozhin a Shoigu e Gerasimov, e sua conspiração para suplantá-los, não escapou aos olhos do governo russo, como também de seus maiores inimigos, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Vladimir Putin, em um discurso proferido a autoridades de segurança russas em 27 de junho, indicou que as autoridades russas estavam em contato constante com os comandantes de Wagner para avisá-los a não ajudar Prigozhin a usar Wagner para sua própria ambição pessoal. Dias antes de Prigozhin enviar forças de Wagner para Rostov e Moscou, a CIA informou o Congresso dos Estados Unidos e o presidente Biden sobre a existência da conspiração de Prigozhin. O MI-6 britânico fez o mesmo, informando o primeiro-ministro britânico e o presidente ucraniano Zelensky.

De acordo com fontes ucranianas, os britânicos também pressionaram os ucranianos a interromper as operações ofensivas durante o período em que se esperava que Prigozhin avançasse sobre Moscou, na esperança de que uma guerra civil estourasse, o que faria com que a Rússia retirasse as tropas de combate da linha de frente, situação que ofereceria maiores oportunidades de sucesso ao exército ucraniano. O MI-6 também mobilizou suas conexões com os serviços de inteligência ucranianos, em coordenação com oligarcas russos sediados em Londres e controlados pelo MI-6, para reforçar a crença de Prigozhin de que ele tinha o apoio de militares, políticos e da elite empresarial russa, levando Prigozhin a acreditar que se uniriam a ele assim que Wagner começasse a marchar sobre Moscou.

O fracasso da jogada de Prigozhin já está historicamente consagrada. No entanto, resta um componente, na sociedade russa, que, tendo sido influenciado pela intensa campanha de relações públicas de Prigozhin, continua a acreditar que as queixas de Prigozhin contra Shoigu e Gerasimov seriam legítimas e, como tal, também o seria sua marcha sobre Moscou. Os fatos, no entanto, não o respaldam. À época do movimento precipitado de Prigozhin sobre Moscou, Sergei Shoigu e Valery Gerasimov supervisionavam a campanha militar russa que vinha eviscerando o exército ucraniano treinado pela OTAN, causando-lhe baixas em uma proporção de 10 para 1.

Durante as primeiras três semanas da atual contraofensiva ucraniana, mais de 13.000 soldados ucranianos foram mortos, junto com a destruição de centenas de tanques e veículos blindados (muitos dos quais recentemente fornecidos à Ucrânia). Os militares russos encontram-se bem equipados, bem treinados e bem liderados. A moral está alta. Qualquer ideia de que Shoigu e Gerasimov sejam profissionalmente incompetentes é desmentida pelos fatos.

Prigozhin gabou-se da superioridade das forças de Wagner quando comparadas às do exército russo. Mas a verdadeira razão pela qual as forças de Wagner interromperam sua marcha sobre Moscou e voltaram a seus quartéis foi o fato de terem encontrado os militares russos em Serpukhov, ao sul de Moscou. Lá, cerca de 2.500 forças especiais russas, apoiadas pelo poder aéreo, os estavam esperando. Ao mesmo tempo, cerca de 10.000 forças especiais chechenas “Akhmat” se aproximavam de Rostov-on-Don, onde Prigozhin tomou o quartel-general, e se preparavam para atacar a cidade, com a intenção de destruir as forças Wagner lá posicionadas, junto com seu líder. A experiência de combate de Wagner não compensava o fato de que eles não estavam preparados para realizar uma ação terrestre sustentada contra as forças regulares russas.

Prigozhin não só foi confrontado com a realidade da sua morte iminente e dos homens que o acompanhavam, mas, ao contrário das expectativas criadas pelos serviços de inteligência britânicos e ucranianos antes do motim, com o fato de que nenhuma unidade militar, nem um único político, nem um único empresário, absolutamente ninguém, se uniu à sua causa. A Rússia ficou do lado de seu presidente. Embora a extensa campanha de relações públicas de Prigozhin tenha conseguido conquistar os corações e as mentes do povo russo, ela falhou em convencer as pessoas de que deveriam trair seu presidente.

No interesse de evitar o derramamento de sangue entre russos, Prigozhin aceitou um acordo, negociado pelo presidente bielorrusso Alexander Lukashenko, que fez com que ele, Dmitry Utkin (o único comandante Wagner sênior a se juntar a ele) e os 8.000 combatentes Wagner que participaram do fracassado golpe retornassem a seus acampamentos no leste de Lugansk. Lá eles se desarmaram e entregaram seu equipamento pesado aos militares russos, antes de serem enviados para o exílio na Bielorússia.

Para os combatentes de Wagner – cerca de 17.000 – que se recusaram a participar do ato de traição de Prigozhin, do mesmo modo que seus comandantes, lhes foi dada a opção de assinar contratos com o Ministério da Defesa ou então voltar para casa. Os contratos de Prigozhin foram cancelados e Wagner se desfez. Ademais, não houve mudanças no Ministério da Defesa russo. Shoigu e Gerasimov permaneceram nos seus respectivos cargos.

Mesmo se Prigozhin não tivesse traído a Rússia, o Grupo Wagner teria deixado de existir como seu exército particular. Nesse caso, a honra do Grupo teria permanecido intacta. A traição de Prigozhin fez com que Wagner fosse maculado pela ganância e ambição nua de seu proprietário, um homem que procurou explorar a boa vontade do público russo – boa vontade que os combatentes de Wagner conquistaram com seu sangue e sacrifício nos campos de batalha do Donbass, da Síria e da África –, tudo em um esforço equivocado para usurpar o mandato constitucional de um governo que o próprio povo colocou e mantém no poder.

*Scott Ritter, ex-oficial de inteligência do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, foi inspetor-chefe de armas da ONU no Iraque de 1991-98.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente em Substack/ Scott Ritter Extra.


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