Mágico e palhaço

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO ANTUNES*

No Brasil, os saudosos da ditadura militar saíram dos seus armários putrefatos, difundindo diuturnamente o vírus do ódio

Thomas Mann escreveu duas novelas italianas: a primeira, Morte em Veneza, e a segunda, Mario e o mágico, ambas tendo como cenário a magnífica cidade italiana.

Ao discorrer sobre Mario e o mágico, Thomas Mann afirmou que não lhe agradava ver sua “história ser considerada uma sátira política”, deixando de lado seu “plano artístico”. Foi perseguido, exilado e sua obra se tornou um libelo contra o nazifascismo.

Seu principal personagem, Cavaliere Cipolla, era uma “impressionante e nefasta figura”, um “virtuose ambulante”, misto de “artista cômico” e “bobo da corte” dotado de “alguma coisa de anormal em sua conformação”. Nessa criatura – “nem na atitude, nem nos gestos, nem na maneira de se comportar” – via-se a “menor tendência pessoal à brincadeira ou mesmo à palhaçada”. Ao contrário, “exprimia-se com uma gravidade severa, uma recusa de qualquer humor”. Algo estranho a um pretenso cômico, mas bem plausível para um protótipo fascista.

Além da “careta arrogante” e dos “lábios alongados”, o dito-cujo tinha um gestual nada usual que, entretanto, impactava a plateia. Quando fumava, devolvia as tragadas “em turbilhões cinzentos por entre seus dentes pontudos e estragados”. O que não o impedia de ter acolhida em tantos admiradores: “Parla benissimo… O homem ainda não havia feito nada, e seu discurso já era apreciado como um talento”. Um mito!

E em meio aos movimentos tensos que se sucediam em sua ação, ao ser interpelado por um “jovem de cabeleira africana”, vociferou: “Chega de brincadeiras… Não vamos admitir que se zombe da cidade diante de estrangeiros”.

Comandar e obedecer era seu lema: “um só princípio, uma unidade indissolúvel” entre a “ideia de povo e a de chefe”, sendo que a esse cabia “o papel supremo, a tarefa mais árdua e extenuante” de transformar a “vontade em obediência e a obediência em vontade”.

Quando Thomas Mann publicou sua novela (1930), o fascismo de Benito Mussolini já estava no poder, e o nazismo de Adolf Hitler seguia pelo mesmo caminho. Dois experimentos abjetos que estão entre as maiores atrocidades vividas pelo Ocidente. Quase cem anos depois de Mario e o mágico, ameaça se esparramar como praga em diversas partes do mundo.

No Brasil, os saudosos da ditadura militar saíram dos seus armários putrefatos, difundindo diuturnamente o vírus do ódio. Vale recordar que Mussolini também cultuava as motocicletas. Mais um rude decalque, no qual os ricos brancos saem em debandada, cavalgando no lombo das moto(mili)ciatas, sob os olhares ressabiados de assalariados pobres a exarar uma sábia desconfiança de classe, que deverá decidir as eleições presidenciais.

Com a pandemia se misturando ao pandemônio, com quase 700 mil mortes, a palavra genocida voltou à tona, somando-se ao sentimento popular de que a política é o espaço preferencial do larápio. Mesmo quando travestido de mágico e de palhaço.

Aflora um dilema quase hamletiano: Cavaliere se forjou inicialmente como genocida ou larápio? Ao modo de Frankenstein, uma aglutinação esdrúxula nos ajuda a responder: trata-se de um “genopio” (misto de genocida com larápio) ou de seu inverso, um típico “laracida“?

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES