Por SAMUEL KILSZTAJN*
Após o desastre da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, então considerado um paraíso racial, era um exemplo a ser seguido. A “democracia racial brasileira” foi objeto de pesquisa da Unesco em prol da superação do racismo a nível internacional.
1.
O Continente Africano, em termos conceituais, é habitualmente dividido em duas grandes regiões, África do Norte (predominantemente árabe e muçulmana) e subsaariana (habitada majoritariamente por pessoas de pele negra). Excluímos desta divisão os povos da Ethiópia e da Somália, que, embora de pele negra, diferenciam-se étnica e culturalmente dos demais povos da região subsaariana.
Na colonização do Continente Americano, entre os séculos XVI e XIX, os europeus promoveram a imigração compulsória de grandes contingentes de africanos subsaarianos escravizados. Por meio de violência física, os europeus assumiram direitos de propriedade sobre os africanos, enquanto coisa. Além de terem a sua humanidade arrebatada, diferentes etnias, com origens, culturas e línguas distintas, ao serem arbitrariamente agrupadas, perderam suas identidades ancestrais. A maioria dos descendentes africanos nas Américas, consequentemente, não é capaz de traçar a sua origem para resgatar a sua herança cultural na África.
Crenças, religiões, festas, cantos, danças, costumes, vestuário, culinárias e outros valores culturais de várias regiões da África acabaram sendo mesclados e sincretizados como frutos de matizes africanas, de forma genérica, Mama África!
Na primeira metade do século XIX, após a Revolução Industrial, a Inglaterra se empenhou em interromper o tráfico negreiro no Atlântico. Por pressão inglesa, o Brasil proibiu o tráfico em 1850 e, em 1888, foi o último país das Américas a abolir a escravidão de africanos.
Diga-se, de passagem, que D. Pedro I, Imperador do Brasil entre 1822 e 1831, era crítico à escravidão. O parlamento brasileiro, dominado por escravocratas proprietários de terras, contudo, fez com que o Imperador abdicasse do trono da ex-Colônia, deixando em seu lugar um filho menor de idade como herdeiro. Em carta ditada em 10 de setembro de 1834, duas semanas antes de sua morte, D. Pedro I afirmava que: “Não posso deixar de vos dirigir huma advertencia acerca da escravidão dos negros. A escravidão he hum mal, e hum attentado contra os direitos e a dignidade da especie humana; mas as suas consequencias são menos damnosas aos que padecem o captiveiro, do que á nação, cuja legislação admitte a escravatura [entenda-se menos danosas como uma ironia]. He um cancro que devora sua moralidade.” O movimento abolicionista no Brasil só adquiriu relevância após a interrupção do tráfico, em 1850.
Em 1888, os proprietários dos negros libertos reivindicaram a indenização pela perda dos escravos. Ninguém sequer pensou em indenizar a população de origem africana pelo trabalho escravo por gerações e pelo desamparo a que ficaram reduzidos os sobreviventes e seus descendentes. Muito menos em distribuir terras aos libertos. Doar terras para os pobres que precisam delas como meio de vida?! Quando haviam invadido as terras do além mar, por direito de conquista, os europeus decidiram declarar virgens todas as terras “descobertas”.
Para ocupar e administrar a colônia, o Brasil havia sido dividido em capitanias hereditárias, distribuídas a fidalgos donatários, que ficaram encarregados de doar as terras da coroa, na forma de sesmarias, a nobres, militares e funcionários públicos portugueses.
2.
No final do século XIX, a Europa tomou conta e colonizou todo o continente africano, com exceção da Ethiópia e da Libéria (criada pelos Estados Unidos para incentivar o retorno dos africanos libertos). A partilha da África entre alemães, belgas, espanhóis, franceses, ingleses, italianos e portugueses foi realizada artificialmente, constituindo países sem identidade étnica e cultural. Várias etnias foram separadas por fronteiras políticas arbitrárias, com a instituição dos diferentes idiomas nacionais dos países colonizadores.
O racismo dominou a ciência e a civilização ocidental na primeira metade do século XX. As elites brasileiras, em sua política de imigração, tiveram como princípio o branqueamento do país, de modo a “melhorar a raça”, sem manifestar pudor algum em relação à população negra de origem africana. Após o desastre da Segunda Guerra Mundial, o Brasil, então considerado um paraíso racial, era um exemplo a ser seguido. A “democracia racial brasileira” foi objeto de pesquisa da Unesco em prol da superação do racismo a nível internacional.
Contudo, Florestan Fernandes e Roger Bastide, já na pesquisa da Unesco, denunciaram o racismo à brasileira. A pesquisa Percepções sobre o racismo no Brasil, realizada em 2023, revela que 8 a cada 10 pessoas consideram que o Brasil é um país racista. A sogra branca de uma amiga negra, logo após o parto, se apressou em perguntar a ela se a menininha tinha saído “branca ou preta”.
No Brasil, as políticas de ações afirmativas só começaram a ser implementadas de forma sistemática no século XXI, especialmente com a criação de cotas raciais e sociais em universidades e programas de inclusão no serviço público. Paralelamente, principalmente nas duas últimas décadas, estamos assistindo a uma crescente imigração de africanos naturais de Angola, Senegal, Nigéria, Congo, Gâmbia, Guiné-Bissau e Mali, além de descendentes oriundos do Haiti e de outros países do Caribe.
Organizações da sociedade civil têm atuado para promover a inclusão e os direitos dos imigrantes, apátridas e refugiados no Brasil, a exemplo da Missão Paz, que oferece abrigo, assistência documental e jurídica, cursos de língua portuguesa, capacitação, inserção laboral, serviço social e atendimento à saúde.
3.
Entre os poucos africanos subsaarianos que ancoraram no Brasil no século XX, Ernesto Mané, natural da Guiné-Bissau, imigrou no final dos anos 1970 como bolsista do governo brasileiro e viveu no país até o seu falecimento em 2014. Seu filho Ernesto Mané (Júnior), nascido em João Pessoa em 1983, foi ao encontro da terra de seus ancestrais em 2010 e esteve com seus avós e vários outros parentes. Os diários de sua peregrinação, publicados em Antes do início, são uma viagem em palavras.
Embora preto, Ernesto era visto e chamado de branku em Guiné-Bissau, porque a identidade racial, “a noção de branquitude, para os africanos, tem a ver não só com a cor da pele, mas também com a cultura”. O seu comportamento era de estrangeiro branco, “diferente do deles”.
O ocidental, por outro lado, se define pela cor de sua pele, em contraposição ao negro (e ao “vermelho” e ao “amarelo”). Uma amiga, natural da Somália, só se descobriu negra quando imigrou para os Estados Unidos. Ela, que fazia questão de salientar os traços finos do rosto dos somalis, “descendentes diretos dos faraós”, tinha preconceitos contra negros subsaarianos. Ficou muito surpresa ao se dar conta de que, para os americanos, negros da Somália e negros subsaarianos era tudo a mesma coisa. Quando arrumou um namorado afrodescendente, isto é, negro descendente de subsaarianos, toda a sua família rompeu relações com ela.
Falando em Somália e Ethiópia, não conheço obra literária mais contundente, denunciando o racismo, que O Mouro de Pedro, o Grande, o conto inacabado de Pushkin sobre seu bisavô, Abraham Hannibal, natural da Abissínia, que foi capturado ainda criança e levado para Rússia, de “presente”, como souvenir para o Czar Pedro I.
A cor de uma pessoa, dentro da escala cromática, é uma construção sociocultural. Estava com meu filho, então com quatro anos de idade, num ônibus, quando ele perguntou alguma coisa sobre “aquela mulher branca na nossa frente”. Eu não estava vendo nenhuma mulher branca na nossa frente e ele, não querendo apontar para ela, começou a ficar irritado comigo, “como é que você não está vendo aquela branca na nossa frente?” Era uma mulher negra com blusa branca.
Precisamos urgentemente libertar os brancos, é preciso ter raça, ninguém merece viver na ignorância!
* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política. Autor, entre outros livros, de 1968 – sonhos e pesadelos. [https://amzn.to/4gGOgOO]
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