Maracanã – 1º de maio de 1964

Gabriela Pinilla, Still de Bairro Policarpa, Acrílico sobre papel, 20 X 25 centímetros, 2011, Bogotá Colombia
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Por HELCIO HERBERT NETO*

A possibilidade de insubordinações no futebol fazia com que o esporte, além de instrumento de publicidade, fosse fonte constante de preocupações. 

Pelé – o principal jogador de futebol da história –, sob os olhares da maior multidão agrupada em torno de um escudo de clube: a torcida do Flamengo. O cenário, digno de um dia ensolarado no Maracanã, não se prestava aos gritos de gol ou à paixão dos torcedores. O jogo se iniciou estranhamente antes de os times entrarem no gramado. Pelo verde do campo desfilaram outros personagens, sem habilidade com a bola nos pés, em trilha sonora distante das fanfarras de sopro que, àquela altura, ritmavam a arquibancada.

Era 1º de maio de 1964, primeiro Dia do Trabalhador depois da ofensiva contra o presidente João Goulart. Em um mês, desde o golpe que articulou civis e militares para interromper o calendário democrático, a sustentação do representante do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi alvo primordial de ataques do regime recém-instaurado. Portanto, os sindicatos se tornaram os principais perseguidos nos trinta dias que separam a deposição do governo através das armas e aquela data, no maior estádio do planeta.

No período, as organizações de trabalhadores sofreram com a violência: encerramento absurdo das atividades sindicais, prisão das lideranças e até tortura foram usados como estratégia para calar a insatisfação de diferentes setores. A caçada rasga a retórica de que o Brasil viveu uma ditadura branda – contradição em termos já a princípio –, antes do acirramento da agressividade política ao fim de 1968. Os relatórios das comissões da verdade, publicados pela União e por governos estaduais, concluem a superação dessa mentira.

Na data comemorativa, Flamengo e Santos se encontravam em território carioca para a disputa do Torneio Rio-São Paulo. O time de Pelé, ídolo àquela altura bicampeão da Copa do Mundo com a seleção brasileira, visitava o Maracanã em campanha que terminaria com mais uma taça na sala de troféus da baixada litorânea paulista. O desempenho dos colegas de equipe do principal jogador brasileiro perde valor, assim como o dos rivais rubro-negros. O evento em questão é, sobretudo, político.

Não seria a primeira vez que um estádio seria utilizado pelo ditador Humberto Castelo Branco ou por seu bando. O marco inicial, mais dramático, foi o campo de concentração improvisado no Caio Martins em Niterói. A praça esportiva foi usada como prisão coletiva para a primeira leva de perseguidos pelo regime. Na maior parte dos casos, quem sofreu com essa violação em massa dos direitos humanos foram os mesmos sindicalistas. Até porque a preocupação do regime era com as multidões.

No dia a dia, não havia um consenso nas ruas do país. Antes de ser derrubado, Jango deu demonstrações públicas de popularidade – não só voltadas para a sua figura, mas também para as reformas que parcelas representativas do Brasil defendiam. A difusão das ideias era grande e houve pressa para sufocar os núcleos que forçavam o avanço dessas pautas. Isso justifica a prioridade contra as entidades sindicais. É necessário afirmar ainda que existia, simultaneamente, grande aprovação ao golpe pelas cidades.

Manifestações igualmente numerosas estimularam uma contraofensiva, em nome de tradições nacionais. As disputas fizeram com que, mesmo após a investida em direção ao poder, o grupo que se assentara em Brasília tomasse atitudes rápidas. Mas as ações não seriam capazes de concretizar um silenciamento em escala tão grande. Era, acima de tudo, necessário transparecer um clima de normalidade para que os focos de conflito deixassem de ser aparentes e que um controle mais efetivo pudesse ser levado a cabo.

Do Dia do Trabalhador de 1964, não se sobressaíram nem as festas dos torcedores: antes de a partida ser iniciada, foi um extravagante ato cívico que ocupou o Maracanã. Apresentação de bandas marciais, desfiles de militares e hasteamento de bandeira são, aos olhos de hoje, mais chamativos – ficam em segundo plano o que fizeram Flamengo, dono da mais numerosa torcida do país, e Santos, esquadrão multicampeão da década de 1960. E não era somente a chance de propagandear a ditadura que atraía as ações.

Da popular modalidade partiriam movimentos contestadores até 1985 – quando o último dos generais, João Baptista Figueiredo, deixaria a cadeira da presidência. Isso sem contar os gestos simbólicos que o próprio Pelé realizou ao longo de toda vida contra o caráter excludente da sociedade brasileira. Seja na valorização da negritude, seja na defesa da infância no país. A possibilidade de insubordinações no futebol fazia com que o esporte, além de instrumento de publicidade, fosse fonte constante de preocupações. 

O ato no estádio, no mesmo ano do ataque contra o regime democrático, foi ainda uma forma de desvincular a data das reivindicações históricas dos trabalhadores. Fria e formal, a cerimônia se distanciava da vibração das multidões que, a bem da verdade, mantinham seu ímpeto enquanto se acotovelavam na arquibancada. Nada mais diferente do ordenamento e da disciplina em campo ao longo da celebração cívica dos militares do que o comportamento dos torcedores durante os dois tempos da partida.

O evento, resgatado por conta da política de publicação do acervo audiovisual do Arquivo Nacional em plataformas digitais, serve de exemplo para 2024 – quando a disposição do governo federal é para esquecer que exatas seis décadas se passaram desde o golpe civil-militar. O começo do período de exceção para o futebol se deu em 1º de maio justamente para tentar emudecer as dinâmicas populares, algo que de fato não foi capaz de fazer. A política não se resume aos gabinetes.

*Helcio Herbert Neto é pós-doutorando no Departamento de Estudos Culturais e de Mídia da UFF. Autor do livro Palavras em jogo. [https://amzn.to/4aaGzfF]


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