O escândalo político acabou?

Imagem: Anderson Antonangelo
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Por SANDRA BITENCOURT*

Talvez necessitemos de novas teorias para entender por que nossas consciências anestesiadas não mais se escandalizem com a infâmia

Dia 11 de março de 2021. O registro de 282.127 mil mortes causadas pelo Coronavírus nessa data coloca o Brasil na dianteira de óbitos pela doença no mundo. Na live semanal no Facebook, canal que a Presidência usa para se comunicar com os cidadãos, o inimaginável. Lábios finos, olhar transtornado, dicção sofrível e, pela primeira vez na história, um presidente do país lê a carta de um suposto suicida, um feirante do interior da Bahia. O objetivo da leitura mórbida é criticar medidas de restrição contra a Covid-19 impostas por prefeitos e governadores. A carta teria sido escrita para a mãe do rapaz e relaciona a morte com as dificuldades econômicas provocadas pelo fechamento de estabelecimentos comerciais. O mesmo conteúdo também foi publicado por seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), no Twitter, junto com imagens do corpo do feirante. Estarrecimento. Sentimento que se repete a cada limite ultrapassado. A cada insulto, a cada ofensa, a cada negligência consciente, a cada recomendação necrófila, a cada mentira reiterada emerge a perplexidade: até quando esse escândalo será tolerado?

Esse é o objeto desta análise. Ainda há escândalo político no Brasil? Porque a ocorrência de um escândalo requer que determinado fato, conduta ou acontecimento revelado tenha a capacidade de provocar ofensa, revolta, indignação de pessoas e instituições. Ou seja, é necessário que as pessoas se escandalizem com a revelação ou com a mentira encoberta. E essa construção, inclusive de caráter estético e noticioso, com percursos bem definidos, forma a opinião pública e tensiona a atuação de políticos, causa erosões na reputação e, não raro, inviabiliza muitas vezes a permanência no poder.

Uma busca rápida no Google com as palavras escândalo e Bolsonaro apresenta 1 milhão 360 mil resultados. Ou seja, é uma busca recorrente e com farto material. Mas isso não está evidenciado no noticiário. A palavra escândalo associada ao atual governo não aparece quando a busca é feita na categoria notícias. A cobertura jornalística dos meios de referência está longe de ser favorável ao Presidente. Contudo, mesmo no que poderia ser classificado como escândalo de corrupção, uma bandeira tão empunhada pela direita e encampada pela mídia, as denominações encontradas em títulos e manchetes não utilizam o termo escândalo.

Nesta semana, as denúncias de “retrocessos” na prevenção e combate à corrupção apresentadas pela Transparência Internacional para a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos) e o Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) não vieram acompanhadas dessa denominação, embora se trate de um escândalo internacional, com forte repercussão na imagem e nas relações do país. A entidade citou o inquérito no qual Bolsonaro responde por crimes como corrupção passiva por suposta interferência na Polícia Federal para proteger amigos e familiares, como seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro; a falta de explicações para depósitos na conta bancária da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, vindos da família de Fabrício Queiroz, pauta vinculada ao que convencionou chamar de “rachadinha”, o que de fato, por precisão e dimensão de gravidade, poderia ser caracterizado como escândalo de peculato.

O inglês John B. Thompson é um dos principais estudiosos contemporâneos do impacto social dos meios de comunicação eletrônicos e autor do livro O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia, que se propõe a estudar o fenômeno do escândalo político e como ele “afeta as fontes concretas do poder” – pois o poder, nos regimes democráticos eleitorais, é submetido à pressão da opinião pública e está ligado à reputação. Haveria, na atualidade, uma presença forte do escândalo na cobertura midiática, não por conta de uma pretensa redução da qualidade dos líderes políticos, mas por causa das transformações de sua visibilidade pública, observado, segundo o autor, um gradual declínio da política ideológica e uma crescente importância da política de confiança, relacionados com a preeminência atual do escândalo na esfera política (THOMPSON, 2002, p. 146-7). Outro fator é que a mudança na cultura jornalística nas décadas de 1960 e 1970 rompeu as barreiras que impediam a divulgação de determinados segredos de poder.

O escândalo é empregado hoje a ações ou acontecimentos que implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos dos outros e alcançam um status suficientemente sério para provocar uma resposta pública. O percurso para a formação de um escândalo implica que as transgressões podem se relacionar com certos valores, normas ou códigos morais; precisam conter um elemento de segredo ou ocultamento (conhecido pelo não-participante); geram ofensa e desaprovação dos não-participantes; ocorrem mediante denúncia pública do acontecimento e finalmente a revelação e condenação podem prejudicar a reputação.

Na especificidade do escândalo político que se nutre de lutas pelo poder simbólico, tais elementos são ainda mais determinantes, já que reputação e confiança estão em jogo. O que os caracteriza como escândalos políticos, portanto, não é a natureza da transgressão cometida, mas os efeitos que produzem. Daí a pergunta incontornável: o que mais o atual presidente do país precisaria fazer ou dizer para caracterizar a sucessão de escândalos que protagoniza, provocar desaprovação e ter diariamente nas manchetes o termo escândalo associado às suas ações ou inações?

Um aspecto muito importante na descrição/compreensão do fenômeno, segundo Thompson, seriam as Transgressões de segunda ordem, quando na tentativa de negar, bloquear ou afastar revelações e acusações, a figura política usa a mentira e provoca uma ofensa ainda maior, ou seja, a busca do encobrimento do delito inicial gera novas transgressões, em geral mais graves.

O autor usa exemplos históricos. O affair de John Profumo com Christine Keeler certamente não contribuiria para sua carreira, num Reino Unido que ainda não deglutira por inteiro os novos padrões da moral sexual, mas o determinante para sua queda foi a revelação de que ele mentira ao Parlamento ao negar o caso. Richard Nixon teria se complicado mais com a rede de negativas e obstrução à investigação do que com a denúncia da espionagem ao Partido Democrata. O mesmo vale para Bill Clinton, cuja imagem pelo relacionamento com Monica Lewinsky não sofreu tanto quanto a acusação de mentir à justiça, que quase o levou ao impeachment.

Seria razoável, no entanto, dizer que na atualidade a mentira deixou de ser uma falta grave? Ou que a verdade passou a ser uma categoria manipulável, com versões sob medida para o consumo dos distintos grupos em disputa? De que outro modo explicar que as mentiras reiteradas de um presidente não provoquem revolta, não escandalizem?

Em 804 dias como presidente, Bolsonaro deu 2.568 declarações falsas ou distorcidas. Os dados estão em uma base que agrega todas as declarações a partir do dia de sua posse como presidente, com a checagem feita pela equipe da agência Aos Fatos semanalmente (https://www.aosfatos.org/todas-as-declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/).

A mentira mais repetida, 87 vezes, é a de que um ministro do STF determinou que as ações de isolamento social, quarentena, suspensão de atividades e restrições do comércio são de decisão de governadores e prefeitos. A declaração é falsa porque o STF não delegou a responsabilidade de combate à Covid-19 a governadores e prefeitos, nem muito menos eximiu a Presidência da República de atuar contra a disseminação da doença.

A defesa da hidroxicloroquina como tratamento precoce efetivo foi uma mentira repetida 32 vezes. Uma defesa insustentável por falta de evidencias científicas.

Thompson discute o papel da hipocrisia como componente central de muitos escândalos, nos quais o mais grave não é tanto a transgressão de uma norma social compartilhada, mas a contradição entre as ações descobertas e a imagem pública daquela personagem – como o chefe de uma cruzada moral flagrado em adultério. Mas no caso aqui concreto, não se trata de uma pulada de cerca ou de uma conduta moral hipócrita. Tratam-se de posições e de medidas com o potencial de desorientar e causar mortes. Os números assustadores a cada dia mostram que as mentiras e manipulações são escandalosas não por viés moral, mas por perdas assustadoras de vida e de possibilidade de sobrevivência, se contarmos também a grave crise social, a fome, o desemprego e a desesperança. Isso sem contar outras áreas, como a ambiental, a científica, a cultural, todas prósperas em exemplos de destruição e retrocesso.

Poderíamos dizer que é um escândalo que a palavra escândalo tenha sido aposentada das manchetes. Ou que talvez necessitemos de novas teorias para entender por que nossas consciências anestesiadas não mais se escandalizem com a infâmia.

*Sandra Bitencourt, jornalista, doutora em Comunicação e Informação, é pesquisadora do grupo de pesquisa Núcleo de Comunicação Pública e Política (NUCOP).

Publicado originalmente no Observatório da Comunicação Pública (OBCOMP)

Referência


THOMPSON, John B. O Escândalo Político: Poder e Visibilidade na Era da Mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

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