Por Ronald Rocha*
Amalgamam-se os termos de uma tríplice crise: econômica, sanitária e política.
Tão logo se calaram os singelos cânticos do Natal, os alegres fogos do Réveillon, as maliciosas marchinhas do Carnaval e as trágicas orações da Semana Santa, impregnados sucessivamente pelos arquétipos da cultura nacional, engatou-se o câmbio automático para o segundo ano do Governo Bolsonaro, em que havia “sinucas” já por si armadas. O calendário era idêntico aos anteriores, mesmo que se olhem as referências remotas: uma previsão de partida em soluços, arrancando e parando até que se firmasse o motor, como se comportavam no começo da manhã os primeiros carros a etanol. Todavia, o enredo seria bem outro, pois a sociedade brasileira estava entrando em um dos períodos mais turbulentos e duvidosos de sua história. Pergunta-se, tomando-se o meme de origem palaciana em sentido avesso: “Mas, e daí?”
Uma resposta inicial vem de 1978, em Clube da Esquina 2, quando – em plena mobilização democrática de oposição ao regime ditatorial-militar em decomposição – a canção petulante, incisiva e dramática de Milton Nascimento e Ruy Guerra narrava e questionava, em dimensão histórica: “Iguarias na baixela / Vinhos finos nesse odre / E nessa dor que me pela / Só meu ódio não é podre / Tenho séculos de espera / Nas contas das minhas costelas / Tenho nos olhos quimeras / Com brilho de trinta velas / E daí?” Mantem-se a mesma indagação reversa, mas com respostas precisas, pois, se a poesia e a música embelezam e instigam – perdurável, axiológica e abstratamente –, a política e a práxis têm que analisar e realizar na conjuntura concreta. Hoje, amalgamam-se os termos de uma tríplice crise.
Inicialmente, o ciclo adverso da economia inaugurado no Brasil em 2014: são aproximadamente seis anos de recuperação débil, marcada por ziguezagues, recaídas e mazelas sociais, que desmentem as previsões, as promessas e, por que não dizer, as esperanças pueris dos responsáveis pelas políticas econômicas oficiais. Está em curso mais uma particularidade local e conjuntural – portanto, relativamente autônoma – da estagnação planetária que sucedeu à Golden Age, compondo a Fase B mais duradoura entre as ocorridas nas Ondas Longas experimentadas pelo capitalismo desde o século XVIII, quando se impôs internacionalmente a sua lógica sociometabólica. Sobre tal pano de fundo, a ordem mundial se move por meio de conflitos multipolares agudos, mas em modo contrarrevolucionário, enquanto aqui o processo golpista depôs Dilma Rousseff e iniciou a passagem a um novo período na luta de classes, afinal estabelecido com a ocupação do Governo Central pela extrema-direita.
Na sequência, intensificou-se a paralisia econômica pela efetivação do afastamento social, uma resposta médica dura, mas necessária e incontornável, à pandemia do novo coronavírus. Gerou-se a recidiva da recessão e a sua imersão abissal. Ocorre que o cerne da valorização capitalista foi atingido e também se rendeu à quarentena. Concretamente, a campanha sanitária interferiu na contradição entre o carácter social da produção e o cunho privado imperante no exercício de apropriação, bem como, correlatamente, na maneira exclusiva e universal de se realizar mais-valia na esfera da circulação mercantil, que reside na transformação do valor-trabalho em sua forma-dinheiro. Em suma, para se poupar vidas foi preciso bancar o recuo no fabrico de bens, na prestação de serviços e nas operações do comércio, com as suas consequências.
Por fim, os vetores anteriores se fundiram com a instabilidade no topo da sociedade política, provocada especialmente pelo ataque da horda protofascista contra o Congresso Nacional, o STF, os governadores, os prefeitos e todos que, por algum motivo, desafinassem de suas pautas e timbres, inclusive alguns membros do primeiro escalão da Esplanada: o general Santos Cruz, o Dr. Mandetta e o ex-juiz Moro, para lembrar tão somente os mais notórios. Desde 1988, as forças reacionárias jamais tinham investido com tal virulência contra o País, as instituições democráticas e a população. Nesse quadro, as várias classes, integralmente ou por meio de suas frações, inclusive as expressões político-partidárias, buscam novos lugares para reafirmarem os seus interesses ou se reposicionarem perante as mudanças reais, mesmo com as ruas semidesertas e os parlamentos aprisionados no mundo virtual. Em suma, configurou-se uma nova conjuntura política no interior da resistência que já estava em curso.
Em face da radicalização por cima, houve quem recordasse a esplêndida imagem que Marshall Berman retirou do Manifesto em sua edição inglesa de 1888, fixada em retórica um tanto quanto criativa e impressa quando Marx já repousava, conforme as palavras do próprio Engels no Prefácio à Edição Alemã de 1883, “no cemitério de Highgate”, onde “sobre o seu túmulo […] a primeira erva” já crescia: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Se lida fora do contexto – que se refere à destruição das relações precedentes pelo avanço do capital como relação social – tal frase poderia sugerir a ideia de que o Governo Federal, por baixo de sua imagem granítica, estivesse prestes a cair de podre, como aquele “resfriadinho” diagnosticado pelo chefe. Se o agrupamento bolsonarista merecesse alguma espécie de metáfora clínica, dever-se-ia recorrer ao nome de alguma doença mais obstinada e danosa.
Em vez das palavras de Samuel Moore, que parametrizaram incontáveis traduções pelo mundo afora, mais profícuo será lembrar o texto clássico em sua forma original e integral, cujo conteúdo é assim: “Toda ordem vigente se vaporiza e toda santidade se profana, compelindo as pessoas, por fim, a encararem com sobriedade as suas condições de vida e suas relações recíprocas.” Tal complexidade, matizada sutilmente pelos autores, permite que se procurem analogias mais frutíferas e interessantes, como a instabilidade política, o declínio dos mitos e a condenação do senso comum à percepção dos fatos como realidade nua e crua, no seu movimento incessante, nas suas vinculações universais e na sua concretude, isto é, a salvo de impulsos escatológicos.
Considerando-se as graves agruras que afligem o País, a conduta governamental, exacerbada pelo presidente convertido em cabeça das milícias paramilitares que organiza, mobiliza e acoberta, se transformou em um sério problema nacional. Se há recessão, joga o seu peso nos ombros dos setores mais pobres, dos trabalhadores, das camadas médias e do pequeno empresariado, eliminando as políticas sociais, suprimindo as conquistas laborais e deixando as multidões à sua própria sorte. Se há Covid-19, repete quase ipsis litteris a frase “Arbeit macht frei”– “o trabalho liberta”, colocada no portal de Auschwitz – para sabotar o esforço da campanha sanitária e os profissionais da saúde, bem como defender medidas típicas de um darwinismo social que relega um número incalculável de cidadãos ao descaso e à morte. Se há crise institucional, joga tudo no seu aprofundamento, conspirando para “purificar” completamente a sua equipe, manter o seu aparelho pessoal de nome Abin, controlar nos mínimos detalhes a Polícia Federal, colocar debaixo de seu domínio privado as Forças Armadas, liquidar os direitos fundamentais e mergulhar o Brasil na guerra civil.
O seu propósito maior é a supressão do regime democrático desenhado pela Constituição de 1988. As restrições que ontem apaziguaram os temores castrenses na transição conservadora já não satisfazem a ultrarreação de hoje. A contrarrevolução contemporânea precisa destruir o establishment, a exemplo do que afirmam seus aderentes. Notável como as circunstâncias histórico-sociais se refletem na consciência e na conduta individual: mesmo quando aparentemente são idênticos, agem os atores de forma díspar. Geisel apresentou aos dirigentes da Arena, em 1974, o seu plano de passagem “lenta, gradativa e segura” da velha ordem à “democracia”. Agora, 46 anos depois, Bolsonaro quer o retorno ao regime ditatorial mediante um autogolpe, mas de maneira rápida, abrupta e não tão segura como pensa. Um teve que aniquilar fisicamente a resistência – lembre-se do Massacre da Lapa, em 1976 – para nivelar o terreno, ao passo que outro precisa destruir as instituições vigentes para banir os desafetos e começar um banho de sangue.
Não há dúvida: o Governo Federal, ilegítimo desde a posse, adentrou agora o terreno da ilegalidade. Prepara-se para ditar quem será imunizado, poupado, investigado, condenado, sem ao menos cobrir o ativismo policial pretendido com a capa já esfrangalhada e suja da lei, como fizera o lavajatismo em seus dias heroicos. A fila dos atingidos é cotidianamente verbalizada e povoa o imaginário do chamado “gabinete do ódio”. Em ordem aproximada, os comunistas, os partidos à esquerda em geral, os liberais, as mídias incômodas, os empresários insuficientemente alinhados, as religiões discrepantes, as pessoas consideradas imorais, os indivíduos que ousarem reclamar, os seus próprios correligionários e assim por diante. Só os direitistas fanáticos e os silenciosos estariam meio que a salvo, e olhe lá.
Quem duvidar pode repassar os precedentes históricos nos regimes clássicos da ultradireita: Itália de Mussolini e Alemanha de Hitler. São exemplos replicantes nas tendências germinais e incompletas que dão a tônica na contrarrevolução brasileira, que dominam o governo central e que também se dizem detentoras do “poder” como fez Bolsonaro ao repetir a ilusão empirista comum para fugir da responsabilização por autogolpismo. De fato, nem mesmo conseguiram esculpir à sua imagem e semelhança o regime político até agora constitucional-democrático – decerto, restritivo –, que ademais se articula com instâncias do Estado pertencente à classe dominante, isto é, controlado estruturalmente pelo capital e hegemonizado por sua fração monopolista-financeira, e não a pessoas específicas ou agrupamentos políticos individuados. Assim, têm motivos para se apavorarem, diuturnamente, com a reeleição que não lhes sai da cabeça e parece lhes fugir das mãos.
Eis porque a resistência democrática se manifesta não só na sociedade civil, como também na sociedade política e até internamente a órgãos típicos do poder burguês permanente. Protestam não somente os partidos de oposição e as representações sindicais ou de movimentos populares, mas também várias personalidades e forças conservadoras, inclusive algumas frações burguesas, que influem na mídia, que orbitavam o Palácio do Planalto há pouco e que até habitam no interior de órgãos estatais chaves. Os pronunciamentos se dirigem contra o que há muito acontecia e agora quase todos finalmente viram: os limites foram ultrapassados e a marcha liberticida, que adentrou em um caminho sem volta, jamais se deterá por si: terá que ser barrada. Ficou patente que o comportamento presidencial nada possui de fortuito. Ao contrário, é um traço imanente aos fanáticos da contrarrevolução conservadora, cônscios de que a Carta Magna e a legislação infraconstitucional estorvam o retrocesso a um regime ditatorial-militar semelhante ao de 1964, “aperfeiçoado” pelo traço autocracia pessoal.
Eis o mito que funda o processo de autogolpe orquestrado no gabinete presidencial e vertido em ação no dia 15 de março, desafiando publicamente o esforço antipandêmico de seu próprio ministro. A lógica se repetiu em 19 de abril, quando, camuflado cinicamente pela desculpa de comemorar uma data especial, Bolsonaro discursou em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, reforçando as suas metas explicitadas em gritos e faixas uniformes, de antemão preparadas e financiadas irregularmente: fechar o Congresso Nacional e o STF, assim como provocar uma intervenção militar para reimplantar um regime ditatorial e reeditar o AI-5, tudo emoldurado com insultos dirigidos a membros de órgãos estatais e autoridades públicas. Semelhante absurdo é coerente com a também inédita pequenez da figura presidencial, que de “autoridade suprema” das Forças Armadas se rebaixou ao mero agitador barato que sempre foi, agora disseminando intrigas e cizânias defronte às casernas, bem como pisoteando a destinação constitucional dos militares “à defesa da Pátria” e “à garantia dos poderes constitucionais”. As mesmas condutas e padrões se repetiram no dia 3 de maio, acompanhadas por ameaças explícitas.
Ressalte-se que a defesa do regime democrático e o rechaço aos ataques aventureiros foram tão amplos quanto contundentes nas duas esferas da sociedade, civil e política. Como consequência, Bolsonaro e seu grupo de fanáticos desceram mais alguns degraus na escada que os conduz ao isolamento. Crescem, nos ambientes oposicionistas mais indignados, as sugestões de caminhos e lemas focados na figura individual do pretendente a tirano, do impeachment, passando por reclamações judiciais e investigações de toda ordem, bem como propostas congressuais de instituir eleições diretas imediatas em caso de vacância na cadeira presidencial, chegando até manifestações de inconformidade como sons de panelas batidas, postagens nas redes sociais, notas de partidos e abaixo-assinados vários, acompanhados por consignas como basta, chega, fora e abaixo, além de orientações contra o propósito autogolpista como deter, resistir, barrar, derrubar e assim por diante, todas legítimas como expressões do sentimento democrático e das várias inconformidades acumuladas.
Ao mesmo tempo, aprofundam-se as conspirações no cume para substituir um reacionário por outro considerado mais ameno e astuto, visando ao aggiornamento situacionista sem participação popular e sem protagonismo democrático, verdadeiro pacto direcionado à reciclagem conservadora do regime político e das finalidades ultraliberais. Com a desmobilização das massas em fase de afastamento social e sem uma presença proletária de peso no miolo do enfrentamento, as “soluções” migram para entendimentos e acertos congressuais, judiciais, militares e palacianos, terrenos caracterizados pela maioria e pela hegemonia do capital, em que os partidos à esquerda e as forças populares transitam com poucas chances de cumprirem um papel determinante ou mesmo relevante.
Nessas condições, a crise institucional é também, objetivamente, a oportunidade para uma saída nos marcos do jugo monopolista-financeiros e da situação dependente. Assim, justifica-se, às vezes remando contra o senso comum e a simplificação, a linha de alicerçar o combate a Bolsonaro e seu agrupamento em quatro pilares centrais: a oposição ao Governo Federal como conjunto e não simplesmente a uma ou algumas figuras individualmente mais execráveis; a formação de uma frente ampla democrática, nacional e progressista, no interior da qual os comunistas e os partidos à esquerda sejam o polo mais dinâmico e consequente; a mobilização das grandes massas proletárias e populares com base nas suas reivindicações mais sentidas; e a elaboração de uma plataforma emergencial que unifique os diferentes segmentos em contradição com as condutas e políticas da extrema-direita. Cabe desenvolver algumas reflexões acerca de semelhantes pilares.
O Governo Bolsonaro não se confunde com a mera somatória de seus ministros e demais auxiliares, mesmo que se agreguem os funcionários da Esplanada no conjunto. Possui uma qualidade superior, pois o todo é mais do que o simples arrolamento empírico das partes, mesmo que fulanizadas exaustivamente. O mesmo enunciado foi recuperado por Marx em O Capital, quando, ao notar “que nem toda soma de dinheiro ou valor de troca […] pode ser convertida em capital sem que a transformação pressuponha a existência de um mínimo”, referiu-se à “lei descoberta por Hegel em sua Lógica, conforme a qual variações meramente quantitativas se convertem, ao chegarem a um determinado ponto, em mudanças qualitativas.”
Os atritos, desencontros e demissões, dentre outros casos que ocorreram ou ainda virão, comprovam que a mão tirânica do chefete, secundada pelo séquito e atada pelo projeto político-social ultraconservador, centraliza o combo administrativo em uma íntima conexão com as frações mais reacionárias do capital monopolista-financeiro e os interesses imperialistas, por cima dos eventos na planície, inclusive os relacionados à indefectível figura do vice com ar de soldado sempre disponível à troca de guarda. Limitar-se a nomear Bolsonaro e alguns ministros, em fileira de beltranos e cicranos, seria converter a tática em mera invectiva pessoalizada e inútil, centrada em citar um desafeto que no dia seguinte poderá ser demitido e até fazer o jogo da reconfiguração palaciana, isto é, admitir na prática um governo da extrema-direita sem Bolsonaro.
A cada canetada o Planalto se “purifica”, tornando ainda mais equivocado separar o governo de seu titular que, abstraindo-se as suas dimensões pessoal-privadas, compõem a mesma coisa. Os ministros e demais componentes, como sugere Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “não escolhem as suas circunstâncias” e têm, pois, que se curvarem ou serem defenestrados, pois são cativos da lógica hegemônica que os cerca e que jamais poderão alterar substancialmente. Na verdade, o escracho ao individuo flerta com a concepção burguesa da história em variante jacobina, cujo teto à esquerda é o democratismo radical. O ataque a Bolsonaro é obrigatoriamente indissociável do combate à sua gestão como conjunto, sob a pena de se adotar um discurso apto a fenecer na recomposição reacionária subsequente. Igualmente seria ineficaz reduzir a volição política, simploriamente, a uma ideia força que se realizaria pela repetição retórica, como no Gênesis 1, versículo 1: “No Princípio era o Verbo”. A tática tem que dialogar concretamente com as condições gerais da realidade política.
Daí a necessidade objetiva de uma frente ampla na oposição ao Governo Federal, que agregue integralmente as forças e segmentos em contradição com as suas condutas e políticas. Na presente conjuntura, em que o movimento operário-popular vive a difícil fase de resistência contra um adversário truculento e implacável, a composição exclusiva no rol da esquerda organizada seria insuficiente para barrar o autogolpismo e vencer o protofascismo, pois jamais englobaria os democratas na íntegra e as grandes massas de milhões. Lembrem-se as experiências nacionais e internacionais, ilustradas respectivamente pelo combate ao regime ditatorial-militar e pelo relatório de 1935 ao VII Congresso da III Internacional Comunista, em que Dimitrov sustentou a política de aliança unitária contra o flagelo consubstanciado na extrema-direita em ascensão.
Dois anos depois, às vésperas da II Guerra Mundial, em A frente popular, o dirigente búlgaro reiterou a unidade ampla na guerra civil espanhola, sublinhando que “o fascismo significa a destruição integral dos direitos democráticos conquistados pelo povo, a implantação de um reino de trevas, ignorância e destruição cultural, as teorias sem sentido da raça e a pregação do ódio”. Frisou também: “os combatentes do exército republicano que lutam nas muralhas de Madri, na Catalunha, nas montanhas das Astúrias, em toda a Península, estão dando suas vidas para defender não apenas a liberdade e a independência da Espanha republicana, mas também as conquistas democráticas de todas as nações e a causa da paz”. Tal linha revolucionária permitiu a vitória contra o nazifascismo.
No Brasil, vários encontros mais ou menos alargados vêm acontecendo em formas fragmentadas e setoriais, mas de relevante importância. Recentemente, houve alguns exemplos práticos: a nota O Brasil não pode ser destruído por Bolsonaro, firmada por várias personalidades; o abaixo-assinado com 100 entidades sindicais contra a MP 936; a carta em defesa do regime democrático, lançada pelo Fórum dos Governadores no dia 19; o comunicado elaborado pelo Fórum de Partidos em Minas Gerais no dia 21; o combate vitorioso à MP 905 no Congresso Nacional; o 1º de Maio Unificado; e a mensagem divulgada pelas seções mineiras de cinco partidos em apoio à iniciativa comum das centrais no Dia do Trabalhador. Concomitantemente, a defesa das liberdades ocorre também no interior de órgãos estatais, como as dezenas de solicitações pelo impeachment, vários acórdãos no STF conforme a Constituição, as investigações abertas pela Polícia Federal sobre ações ilegais das forças autogolpistas e assim por diante.
A cada dia é mais necessário e urgente agregar tais buscas e ações comuns em um fórum nacional orgânico e permanente, sob a pena de permanecerem como iniciativas limitadas e de menor potência. Para tanto, os protagonistas precisam concentrar-se nos assuntos maiores, buscando criar consensos e acordos capazes de ampliarem a unidade. Seria inconsequência e sectarismo insistir ou alimentar pequenas desavenças e querelas sobre as minúcias das palavras-de-ordem ou a exclusividade para determinado instrumento legal. Também se revelariam prejudiciais as obsessões por formas orgânicas preconcebidas ou pontos programáticos de facções. Os melhores lemas e instrumentos são sempre os mais capazes de unir forças. Portanto, as concessões devem ser vistas não como negatividades que gerariam incompletudes, pareceriam traições ou lembrariam ressentimentos, mas como positividades indispensáveis à formação de consensos em torno de assuntos essenciais, como liberdades democráticas, soberania nacional, direitos trabalhistas e amparo aos segmentos mais necessitados.
Todavia, o ponto nodal reside na mobilização de massas. O engajamento efetivo do movimento proletário e popular – em greves, manifestações, lides judiciais, disputas parlamentares ou campanhas eleitorais, especialmente na luta política traduzida em aspirações concretas – é condição prioritária para o êxito da oposição ao Governo Federal, seja que rumo tome ou que forma de ação predomine. Portanto, somente a unidade superior das entidades representativas sindicais e dos vários movimentos populares, com a presença nuclear da esquerda partidarizada, poderá forjar uma força material capaz de interferir na luta de classes de tal forma que a disputa por espaço e protagonismo tenha chances reais de vencer a extrema-direita, de se contrapor às tentativas de saída por cima e de garantir um desfecho favorável às grandes maiorias.
Aqui se localiza, porém, o Calcanhar de Aquiles da oposição popular. Os movimentos de massas estão em descenso. Em que pesem as importantes ações de resistência nos últimos anos, perdeu-se um tempo precioso em disputas confessionais e duelos de siglas ou personalidades. Ademais, acumularam-se novas dificuldades por causa dos ataques oficiais às entidades sindicais, especialmente com leis restritivas e supressoras de conquistas históricas. Sob a pandemia, o afastamento social e a recessão, agravaram-se as condições de vida e o desemprego, bem como se limitaram os canais de contato entre as entidades representativas e as massas, dificultando as manifestações públicas. Nesse quadro, é preciso manter a iniciativa de forma criativa, evitar hiatos prolongados e preparar grandes mobilizações tão logo se cumpra o ciclo sanitário de proteção, especialmente para intervir na crise nacional em curso. Tal é uma tarefa chave na dobra da conjuntura.
Com base nessas considerações, a luta para vencer as tentativas autogolpistas e barrar o Governo Bolsonaro precisa de uma plataforma emergencial para salvar o Brasil, o regime político democrático, as vidas humanas e os interesses populares, a ser fixada nacionalmente pelas forças e setores interessados, contemplando os aspectos prioritários em face da pandemia, da recessão e da crise político-institucional. Um exemplo é a barragem às ideias obscurantistas e incentivadoras do contágio massivo, apoiando-se medidas especiais de combate, contenção e controle ao Covid-19, que se desdobram em: respaldo às iniciativas estaduais e municipais para suprir a omissão do Planalto; centralização dos recursos disponíveis para o enfrentamento aos males da pandemia e para o reforço ao SUS; eliminação das medidas hostis aos direitos populares, aos gastos sociais, às empresas estatais e à soberania nacional.
Ademais, urge destinar, durante os próximos seis meses, um suporte maior e mais abrangente às pessoas e famílias desempregadas, informais, desalentadas, contaminadas ou com idosos em casa, bem como vedar qualquer dispensa no serviço público e nos conglomerados particulares, além de garantir apoio às pequenas empresas que mantenham os postos laborais. Mostra-se também indispensável defender a campanha sanitária e o regime democrático contra os sabotadores privados e os conspiradores governamentais, por meio das mais variadas formas de luta, inclusive o enquadramento em crimes de responsabilidade, seja por ação explícita ou velada, seja por qualquer omissão. Por fim, é preciso, na diplomacia, eliminar os preconceitos e solicitar o suporte internacional em ajuda material, técnica e humana, especialmente a países que tenham demonstrado prática, qualificação e conduta solidária, como China, Cuba e Rússia.
Sinteticamente, o centro da tática, hoje, reside na seguinte orientação, a ser efetivada simultaneamente: isolar os partidos e falanges que agora hegemonizam, operam e sustentam o Governo Federal; neutralizar os segmentos pragmático-burgueses que ocupam os espaços intermediários do espectro político e não raro tendem ao apoio fisiológico; atrair os níveis que se imobilizam na conciliação; e consolidar, em uma frente ampla – com flexibilidade, senso de mediação e formas pertinentes, nacionais, locais ou setoriais –, as forças e indivíduos pertencentes ao vasto campo democrático, nacional e progressista, por cima das preferências ideológicas, partidárias e religiosas.
Está na ordem do dia, pois, com a mesma importância que merece o combate antipandêmico e o amparo aos mais atingidos, investigar os crimes cometidos por Bolsonaro e seus cúmplices, com a punição e afastamento aos responsáveis mediante os recursos disponíveis. O propósito geral das forças oposicionistas é não ficar “de cócoras na praia dos acontecimentos” – como se declarou Tenório Cavalcanti na condição de astro conservador poente –, mas impor sucessivas derrotas ao governo reacionário para debilitá-lo, acumular na correlação de forças e criar condições favoráveis para substitui-lo pelos métodos que mais facilitem o pronunciamento popular da maneira mais democrática possível. Deve pontificar incontestável a certeza, conforme constata Brecht no poema Elogio à dialética, de que “As coisas não continuarão a ser como são; / Depois de falarem os dominantes / Falarão os dominados”.
*Ronald Rocha, sociólogo, é diretor do Instituto Sérgio Miranda – Isem.