Memórias de 2016

Imagem: João Nitsche
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Por MARCUS IANONI*

Tragédia e farsa em dois golpes de Estado

Com a aprovação pelo Senado da admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, afastada até a conclusão do julgamento do mérito, o país possui um novo presidente, Michel Temer, de caráter interino, que já empossou seu ministério pluripartidário. A democracia está de luto para os brasileiros que não legitimam o modus operandi politicamente arbitrário que fundamenta a investidura governamental desse presidente e da coalizão entre PMDB-PSDB-DEM-PP-PPS-PR-PRB-PSB-PSD-PTB-PV, muito mais de direita que de centro, devido à forma e ao conteúdo de suas ações e propostas.

Mais uma vez, a soberania popular estorvou interesses econômicos, políticos e ideológicos conservadores, havendo semelhanças e, também, obviamente, diferença com o ocorrido em 1964. Em ambas as situações, a crise econômica pesou, mas agora o sistema representativo não foi abolido ou regressivamente reformado. Haverá eleições municipais em outubro desse ano e gerais em 2018 e o mesmo sistema partidário continua em vigor. Mas, casuisticamente, decepou-se a cabeça presidencial para, a fórceps, dar-se à luz um mostrengo governamental fantasiado com a indumentária da legalidade, embora explicitamente desprovido da ficha limpa do chefe do Executivo e de vários ministros, que busca legitimidade, sobretudo, pela via da economia, como no golpe de outrora, que estaria ruim pelo desarranjo fiscal.

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, diz a clássica frase. Em 1964, o golpe militar que depôs o governo João Goulart veio à história na crueza da tragédia, recorrendo ilegalmente à força, para se livrar da incômoda legitimidade democrática e, na medida do possível, resgatá-la por meio do crescimento econômico, mesmo que ele ocultasse a concentração de renda e o aumento da desigualdade.

O golpe em curso, conduzido por uma ampla coalizão conservadora, desinteressado – ao menos até aqui, e oxalá também no porvir – de mobilizar os quartéis, abriu seu caminho de afastamento da presidente eleita pelo trato discricionário da Constituição e de outros dispositivos legais; instrumentalizando seletiva e politicamente o combate à corrupção; subvertendo direitos civis em nome de ações jurídico-investigativas; criando, com respaldo de massa, um inimigo público (o PT e suas lideranças) midiaticamente construído e, por fim, produzindo uma maioria parlamentar, primeiro na Câmara e, agora, no Senado, que, nas duas casas legislativas, politizou a lei do impeachment, forjando, arbitrariamente, um crime de responsabilidade, no mínimo, altamente controverso, que põe em risco o reencontro da estabilidade política e social perdida ao longo da crise.

Como dito, a economia, novamente, é a principal razão de fundo desse golpe latino-americano do século XXI. Mas, se no passado, a ela se chegou pelo fantasma da subversão, agora o pretexto é a corrupção. Os procedimentos jurídicos e políticos hipócritas, mobilizados em nome do combate à corrupção, são hoje a via de acesso para se tirar da frente o obstáculo que, supostamente, atrapalha a economia. Mas a aliança entre o interesse econômico do grande capital, nacional e estrangeiro e as elites políticas oportunistas e indiferentes à fidelidade à democracia também lança mão de outro argumento golpista, qual seja, a superação da ingovernabilidade, situação que os próprios subversivos de terno e gravata se esforçaram para produzir, por exemplo, com as pautas-bomba e os vários tipos de veto à ação do governo que queriam depor. Com um moralismo anticorrupção militante e hipócrita e com o boicote à governabilidade, a ampla coalizão golpista pavimentou seu acesso ao Palácio do Planalto e à Esplanada dos Ministérios. A subversão da direita seguiu seu curso justificando-se tanto na farsesca atribuição à presidente eleita de crimes na política fiscal, como na alegada fatalidade da ingovernabilidade, que, na verdade, foi fabricada em uma crise política orquestrada no terceiro turno da disputa eleitoral. As lideranças dessas manobras se dizem circunscritas à ordem institucional, quando se trata de um golpe de Estado de novo tipo, sofisticado, executado sob o manto da Constituição, respaldado nos representantes do povo e na mobilização popular, para se passar por democrático, enfim, um golpe ardiloso e fraudulento. A imprensa internacional está percebendo a farsa.

O golpe militar resultou de uma conspiração, que partiu para a ação de modo violentamente explícito. Chamou a si próprio de “revolução”, colocou tanque nas ruas, rasgou a Constituição de 1946, decretou atos institucionais, conferiu poderes autoritários aos novos donos do poder, definiu os crimes contra a segurança nacional, cassou parlamentares, perseguiu, prendeu e torturou inimigos internos, destinando muitos deles ao rol dos mortos e desaparecidos, impôs o bipartidarismo, fechou o Congresso quando precisou etc. Tudo isso foi executado com a lamentável bênção das bases sociais do autoritarismo de então, começando pelo empresariado, nele incluída a imprensa mercantil, como a CNBB (hoje progressista), a OAB, a classe média, enfim. Além disso, a aliança golpista entre grupos civis e os militares, costurada em contexto de Guerra Fria, teve o respaldo estratégico do governo Kennedy-Johnson.

O golpe das oligarquias latino-americanas do século XXI, em curso no Brasil atual, implementa-se com várias ousadias distintas: o combate seletivo à corrupção, a aliança partidarizada entre o Judiciário e a mídia, a fabricação de uma opinião pública pró-deposição, a alavancagem dos protestos de rua pelo poder econômico, que disponibiliza às suas lideranças vários tipos de recursos, os abusos jurídico-investigativos – como na implementação e uso da delação premiada e da escuta telefônica – e a volatilização da lei do impeachment, de modo a considerar crime de responsabilidade práticas fiscais recorrentes no Brasil pós-1988. Ademais, a subversão de direita conta com a omissão ou conivência da Suprema Corte, mas alguns de seus ministros, como Gilmar Mendes, não hesitam em expor seu golpismo.

Está um curso o golpe da regressão do desenvolvimento democrático, não necessariamente o retorno a um regime autoritário, mas a diminuição do teor de democracia nas instituições públicas e nas relações sociais, pois, além da seletividade partidarizada do Estado de Direito, mobilizam-se subculturas políticas de intolerância e ódio contra adversários ideológicos, preconceitos dirigidos a mulheres, negros, pobres e beneficiários de programas sociais. Criam-se fantasmas, também imaginados em 1964, como o comunismo, hoje chamado de bolivarianismo ou de petismo. Tal como há vários tipos de regimes autoritários, há também várias democracias, passando pelas semidemocracias. Os sistemas políticos podem aumentar ou diminuir seus níveis de autoritarismo e democracia. Na ditadura brasileira, por exemplo, ocorreu o “golpe dentro do golpe”, que promoveu aumento do autoritarismo.

A qualidade das crenças e ações das lideranças políticas e o respaldo social ao golpe mostram como os valores políticos dos atores e a capacidade de persuasão são importantes para o desenvolvimento ou subdesenvolvimento da democracia, que não deveria ser concebida pelas ciências sociais como um mero regime, e sim como um tipo de sociedade, a sociedade democrática, erguida sobre uma cultura democrática.

Trata-se também do retrocesso nas políticas públicas social-desenvolvimentistas. A ponte para o futuro do PMDB conduz, na verdade, à retomada do passado neoliberal sem conciliação, dos tempos de Fernando Collor de Mello e, sobretudo, Fernando Henrique Cardoso, tempos de crescimento baixo, desemprego, juros elevadíssimos, imensa captura da política fiscal pelos credores da dívida pública, privatizações e aumento da dependência nacional em relação ao capital estrangeiro, este sempre ávido por aprofundar sua presença no mercado nacional e por botar as mãos nos recursos naturais do Brasil, a começar, hoje, pelo pré-sal, mas não só.

Por fim, o caráter de farsa do golpe atual não exclui sua dimensão trágica. Ou não é trágico o retrocesso democrático sofisticado, operado ao arrepio da ordem legal, retrocesso que pretensamente se vê como berço esplêndido de União Nacional destinada a erguer um suposto gigante despertado, mas que, na verdade, é berço congenitamente carente de legitimidade? Como não serão trágicos os resultados da reunião de um conjunto de farsas?  Combate à corrupção com corruptos e fichas sujas? Diminuição do clientelismo no sistema político com o partido que mais o encarna comandando a caneta do Estado? Democracia com mobilização de comportamentos políticos de tipo fascista nas ruas e nas ações de líderes institucionais, empenhados em criminalizar o maior partido de trabalhadores surgido no mundo desde o pós-guerra? Justiça cega, mas que, na realidade, enxerga e tem partido? União Nacional, mas contra os direitos populares e a serviço da plutocracia brasileira e internacional?

Trata-se de uma farsa maliciosa e enganadora, construída entre anseios contraditórios, que se processam na junção, por um lado, dos privilegiados – sempre avessos aos direitos de cidadania e adeptos da tradicional hierarquização em classes sociais, visando delimitar papéis e lugares distintos e estáticos aos brasileiros – e, por outro lado, dos eleitores vestidos nas ruas de verde e amarelo, que, ao menos em parte, desejam políticas sociais e um Estado justo. Talvez mais ainda que o golpe clássico, nu e cru, o golpe atual seja até pior, por estar muito munido, ao menos no curto prazo, do poder ideológico de iludir, ao passo que a movimentação militar, de caráter ditatorial, impôs o medo das baionetas prontamente aos trabalhadores. Mas não é uma tragédia anunciada acreditar que políticas orientadas para o mercado possam ser o caminho capaz de elevar a renda média e o padrão de vida do conjunto da nação? O neoliberalismo vai vingar justamente no Brasil, um país emergente, profundamente desigual, com uma economia altamente oligopolizada e pouco competitiva? Como o neoliberalismo pode dar certo se ele vai na contramão de um modelo de desenvolvimento nacional, independente da poupança externa e na contramão de um Estado democrático-republicano, que implemente políticas de bem-estar e direitos de cidadania? Basta olhar para o que a austeridade fiscal e monetária e os interesses mesquinhos que norteiam a lógica dos agentes de mercado estão propiciando em matéria de recessão, desemprego, afora o arrocho que está por vir, para se ter uma ideia do tempo obscuro e regressivo no qual a reação conservadora contra a revolução democrática está conduzindo o país. Mas a resistência progressista está viva e não aceita a farsa trágica do governo interino de Temer, como não aceitou a tragédia do golpe militar de 1964. Desde as eleições de 2014, os golpistas escolheram o caminho da polarização política.

*Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Publicado originalmente no Jornal do Brasil, em 17 de maio de 2016.

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