Mobilizações propositivas

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Angelita Matos Souza*

A aposta é no poder de convencimento do Sejamos todos sociaisdemocratas, inclusive como caminho para fazer avançar o Sejamos todos feministas na direção liberalidentitária

Ao final de setembro de 2018, em várias cidades do Brasil, manifestantes saíram às ruas atendendo à convocação “Ele Não”. As manifestações organizadas por mulheres, com público maiormente feminino, foram alegres e expressivas, porém sondagens sobre intenções de voto realizadas depois mostraram o crescimento das intenções de voto entre as mulheres no candidato Jair Bolsonaro. Nas redes sociais, alguns apontaram que a “marcha das mulheres” estimulou o avanço do candidato da extrema direita nas eleições.

Não tenho ideia se a correlação é pertinente, todavia suspeito que mobilizações propositivas costumam ser politicamente mais interessantes. Dessa ótica, o caráter negativo e personalizado do #EleNão pode ter sido contraproducente, provavelmente seria mais atraente uma chamada afirmativa, que ao invés de mirar no candidato, agora presidente, focasse na proteção social, evitando pautas controversas.

Mais creches, menos descriminalização do aborto! É provocação, mas a hipótese a ser considerada é a de que talvez estejamos em uma situação tão desvantajosa que seja melhor, para dar um passo à frente, dar dois passos atrás e abraçar proposições feministas sem falar em feminismo, rechaçado pelos movimentos conservadores em ascensão no país, como apontam pesquisas a respeito.

 Antipatia certamente relacionada ao fato de a dimensão social dos estudos feministas vir sendo abafada pelas pautas mais liberais dos movimentos identitários, que ofuscam a relação de complementaridade e de contradição entre as esferas da produção econômica e a da reprodução social. Isto é, boa parte das pesquisas e produção bibliográfica no campo dos estudos feministas denuncia a quantidade de tempo e recursos destinados a produzir pessoas (força de trabalho), por meio de atividades a cargo, principalmente, das mulheres, atividades muitas vezes não remuneradas, associadas ao mundo dos cuidados/afetos, em oposição à esfera da produção econômica, inviável sem a esfera da reprodução social.

Contraditoriamente, condição subordinada à lógica econômica, de produção de bens & acumulação financeira. A injustiça implícita nessa hierarquia torna-se ainda mais dramática em um momento de crise como o que estamos atravessando, que exponencia a necessidade de proteção social. Além de evidenciar, se algum ainda o desconhece, que cabe sobretudo às mulheres cuidar da família, ao mesmo tempo em que muitas têm de conciliar essa responsabilidade com a situação de força de trabalho no mercado, sendo o trabalho feminino dominante na terceirização dos cuidados, no setor privado, mormente doméstico, e nos serviços públicos de assistência social.

Duplicação (ou jornada dupla) que predispõe as mulheres a posições políticas sociais-democratas. A defesa de serviços sociais de qualidade tem potencial para atrair tanto as mulheres da classe trabalhadora dependentes desses serviços como as dos estratos médios, na medida em que propiciaria ganhos na renda se subtraídos gastos com educação e assistência médica. Uma bandeira dos movimentos feministas, mas talvez o melhor seja defender a oferta e qualidade dos serviços públicos, além da renda mínima, sem falar abertamente em feminismo. O objetivo da conquista de votos para o campo progressista justificaria ofuscar pautas caras aos movimentos feministas, como a da autonomia decisória sobre o próprio corpo.

Para concluir, vale indagar sobre as chances de um país periférico e dependente como o Brasil vir a ser uma socialdemocracia avançada? Tudo indica que são escassas, no entanto algumas conquistas são sempre possíveis e a demanda por assistência tem potencial maior de acirramento das contradições em favor do campo progressista. A aposta é no poder de convencimento do Sejamos todos sociaisdemocratas, inclusive como caminho para fazer avançar o Sejamos todos feministas na direção liberalidentitária.

*Angelita Matos Souza é professora do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Um estudo do caso Ailton Krenak1974__Identidade ignorada 21/07/2024 Por MARIA SILVIA CINTRA MARTINS: Prefiro sonhar com Krenak o parentesco com a natureza e com as pedras do que embarcar na naturalização do genocídio
  • Clarice Lispector no cinemacultura a paixão segundo g.h. 22/07/2024 Por LUCIANA MOLINA: Comentário sobre três adaptações cinematográficas da obra de Clarice Lispector
  • O princípio de autodestruiçãoLeonardo Boff 25/07/2024 Por LEONARDO BOFF: Qual ciência é boa para a transformação mundial?
  • Filosofia da práxis como poiésiscultura lenora de barros 24/07/2024 Por GENILDO FERREIRA DA SILVA & JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA: Fazer filosofia é, para o Poética, fazer filosofia contemporânea, crítica e temática
  • Que horas são no relógio de guerra da OTAN?José Luís Fiori 17/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: Os ponteiros do “relógio da guerra mundial” estão se movendo de forma cada vez mais acelerada
  • Apagão digitalSergio Amadeu da Silveira 22/07/2024 Por SÉRGIO AMADEU DA SILVEIRA: A catástrofe algorítmica e a nuvem do “apagão”
  • A disputa de Taiwan e a inovação tecnológica na ChinaChina Flag 20/07/2024 Por JOSÉ LUÍS FIORI: A China já é hoje a líder mundial em 37 das 44 tecnologias consideradas mais importantes para o desenvolvimento econômico e militar do futuro
  • A produção ensaística de Ailton Krenakcultura gotas transp 11/07/2024 Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: Ao radicalizar sua crítica ao capitalismo, Krenak esquece de que o que está levando o mundo a seu fim é o sistema econômico e social em que vivemos e não nossa separação da natureza
  • A radicalidade da vida estéticacultura 04 20/07/2024 Por AMANDA DE ALMEIDA ROMÃO: O sentido da vida para Contardo Calligaris
  • A questão agrária no Brasil — segundo Octávio IanniJose-Raimundo-Trindade2 19/07/2024 Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE: As contribuições de Ianni podem auxiliar a reformular o debate agrário brasileiro, sendo que as obras do autor nos apontam os eixos para se repensar a estrutura fundiária brasileira

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES