Modificações na formação universitária no Brasil

Foto: Gerd Altmann
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A posse de qualquer um diploma universitário deixou de ser um diferencial tão forte e profissões exigentes de maior escolaridade passaram a enfrentar maior competição

Investidores com patrimônio acima de R$ 5 milhões, em bancos menos exigentes, situam-se na classe Private Banking (PB), mas os “bancões” privados exigem acima de R$ 10 milhões. Neste caso, a classe de investidores conhecida como varejo tradicional (VT) tem menos de R$ 1 milhão em volume de negócios e o do varejo de alta renda (VAR) situa-se entre os dois segmentos.

De acordo com a ANBIMA, em 2024, o volume total investido por pessoas físicas nesses segmentos de clientes alcançou R$ 7,3 trilhões. Representou um crescimento de 12,6% em relação ao ano anterior.

Especificamente, o segmento do varejo de alta renda registrou um aumento maior de 15,4%, totalizando R$ 2,57 trilhões, enquanto o varejo tradicional cresceu 13,6%, acima do crescimento médio, atingindo R$ 2,43 trilhões. Juntos, esses dois segmentos somaram R$ 5 trilhões, correspondendo a 68,6% do total investido por pessoas físicas. O segmento de PB, por sua vez, apresentou um crescimento menor de 8,7%, alcançando R$ 2,3 trilhões, representando os 31,5% restantes.

Analisando as evoluções desses segmentos do início da série temporal em 2015 ao fim dez anos após, o varejo tradicional multiplicou sua riqueza coletiva por quase três vezes, de R$ 827 bilhões a R$ 2,427 trilhões, e o varejo de alta renda multiplicou-a por 4,4 vezes, de R$ 586 bilhões a R$ 2,572 trilhões. A multiplicação da fortuna do PB foi de pouco mais de três vezes.

Proporcionalmente, a classe média alta enriqueceu mais e passou a deter 35% do total em 2024 diante 28% em 2015. As classes baixa e média baixa foram de 39% para 33% e os ricaços de 34% para 31,4%, depois de terem atingido 40% e mantido o patamar de 39%-38% nos anos do populismo de extrema direita.

Quando considera os números de contas (não CPFs) por segmentos, a “financeirização” aparece no varejo tradicional por ter passado de 66,6 milhões a 163 milhões e no varejo de alta renda de 5 milhões a 15 milhões de contas nesses dez anos. O PB passou de apenas 110 mil contas para 162 mil, mas neste ano a ANBIMA passou a divulgar esse segmento ter 741.218 contas, bem acima daquelas 162.045 publicadas como “número de contas exclusivas” – deve ser de CPFs dos 65.692 grupos familiares.

Se essa hipótese for válida, há quase cinco contas por CPF, e extrapolando para o varejo de alta renda seriam 3 milhões de clientes nessa elite financeira – aí a riqueza per capita seria de R$ 170.000 x 5 ou R$ 850 mil. Outra hipótese levantei a partir dos números sobre Educação do Censo 2010: eram apenas 14,3% graduados, 0,7% mestres e 0,5% doutores na população brasileira, e entre o 1% mais rico encontravam-se 62,4% graduados, 9,3% mestres 5,1% doutores. Eu supunha nos segmentos varejo de alta renda e PB predominarem os clientes com formação universitária.

Essa formação no Brasil foi restrita a uma elite cultural e econômica até pelo menos a década de 1990. Durante grande parte do século XX, o acesso ao ensino superior era limitado por fatores como a escassez de instituições públicas, o alto custo das instituições privadas e a baixa escolaridade média da população.

O ensino superior era um privilégio de grupos de renda mais altos. Tinham maior acesso à educação básica e ensino médio de qualidade, além de poderem arcar com os custos associados à formação universitária.

Durante os governos social-desenvolvimentistas do início do século XXI, houve uma ampliação significativa das universidades federais e estaduais, com a criação de novos campus e programas de inclusão, como o Reuni (Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais). A adoção de políticas afirmativas, como cotas raciais e sociais, além da reserva de vagas para alunos da escola pública, ampliou o acesso de grupos antes excluídos.

Programas como o ProUni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) permitiram estudantes de baixa renda ingressarem em universidades particulares com vagas ociosas, gerando um aumento expressivo no número de matrículas. O setor privado cresceu de forma acelerada, especialmente com a popularização do Ensino a distância (EAD). Pelo baixo custo, tornou a busca por um diploma de educação superior mais acessível.

Pela PNADC 2023, entre pessoas de 25 anos ou mais de idade, 19,7% tinham superior completo. Se considerasse de 35 a 34 anos atingia o maior percentual de 24,9% com essa formação e de 65 anos ou mais de idade era o menor percentual: apenas 11,4% dessa faixa tinha essa formação.

A massificação do ensino superior teve efeitos diretos sobre o mercado de trabalho, especialmente na remuneração dos profissionais graduados. Com mais pessoas obtendo diplomas, a concorrência por certas vagas aumentou, diminuindo o diferencial salarial antes existente entre graduados e não graduados.

A posse de qualquer um diploma universitário (tipo de “Uniesquina”) deixou de ser um diferencial tão forte. Profissões exigentes de maior escolaridade passaram a enfrentar maior competição, piorando os rendimentos médios.

O avanço da inovação e da digitalização em diversas áreas alterou a demanda por determinados profissionais com formação universitária, permitindo a inovação ser adotada por camadas de menor nível escolar. A qualidade do ensino superior tornou-se mais heterogênea, com algumas instituições com ensino de excelência formando profissionais altamente competentes, enquanto outras passaram a oferecer cursos de menor prestígio no mercado, dificultando a empregabilidade.

Acompanhando o ocorrido em países avançados, a formação universitária no Brasil deixou de ser uma vantagem das elites a partir da virada do século XXI, devido às políticas públicas de expansão e inclusão, bem como à participação crescente do setor privado. Esse impacto teve impactos positivos na democratização do conhecimento, mas também gerou problemas, como a queda de nível dos ensinamentos relevantes de graduados e a necessidade de diferenciação no mercado de trabalho por meio de pós-graduações e especializações.

Essas informações parecem ser adequadas à hipótese de o segmento de clientes bancários do varejo de alta renda estar correlacionado com o número de profissionais formados nas Universidades brasileiras, no século passado, por terem tido condições de poupar e fazer investimentos em longo prazo, tornando-se milionários, inclusive em dólares. O segmento de clientes bancários do varejo de alta renda reúne quem conseguiu acumular patrimônio expressivo ao longo da vida profissional.

Essa correlação se dá porque, no século XX, o acesso ao ensino superior no Brasil era restrito a uma elite cultural e econômica. Quem conseguiu se formar, especialmente em áreas como medicina, engenharia, direito e administração ou economia, tinha alta empregabilidade e maiores rendimentos ao longo da vida.

Profissionais formados nas décadas de 1960 a 1990 tiveram uma vantagem salarial expressiva em relação à média da população, permitindo maior capacidade de poupança e investimento. Esses profissionais tiveram acesso a fontes de renda diversas, no setor público ou em grandes empresas privadas, garantindo renda consistente e a possibilidade de investir a longo prazo.

Durante o período de alta inflação no Brasil (até o Plano Real em 1994), quem possuía conhecimento financeiro e acesso a investimentos protegidos da inflação (como imóveis, overnight e títulos indexados) conseguiu preservar e aumentar seu patrimônio. Com o crescimento do carregamento de títulos de dívida pública, na segunda metade dos anos 1990s e, depois, com o “tripé macroeconômico” com juros disparatados para atrair ao risco soberano em vez do risco cambial, esses profissionais passaram a investir mais em ativos como fundos de investimento, previdência privada e depósitos a prazo – e menos em ações e imóveis.

A financeirização da economia brasileira, no século corrente, permitiu a ampliação de opções de investimento para aqueles já com algum capital acumulado, facilitando a transição para faixas de riqueza mais altas. Os bancos desenvolveram segmentos como Personnalité, Estilo, Prime e Van Gogh para atender pessoalmente clientes com um patrimônio expressivo, oferecendo consultorias.

Muitos desses clientes são ex-profissionais liberais, ex-executivos e ex-funcionários públicos ou estatutários aposentados. Acumularam riqueza ao longo de décadas e hoje fazem parte desses segmentos.

A correlação entre a formação universitária, alcançada no século XX, e o crescimento do segmento de varejo de alta renda nos bancos brasileiros tem indícios de ser forte, pois esses indivíduos tiveram melhores oportunidades de emprego, renda e investimentos. Isso lhes permitiu acumular riqueza suficiente para ingressar em segmentos de alta renda e, em alguns casos, até no Private Banking, dependendo do nível de patrimônio atingido.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP). [https://amzn.to/4dvKtBb]

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