Por KETRIM BUENO DE FRAGA*
No Rio Grande do Sul temos um retrato cruel da misoginia estrutural do sistema penal brasileiro, que transforma pena em tortura e invisibiliza corpos já socialmente descartados
1.
No extremo sul do Brasil, onde o frio castiga com dureza e a tradição costuma mascarar desigualdades seculares, mulheres privadas de liberdade vivem uma realidade que desafia qualquer parâmetro de humanidade.
O estado do Rio Grande do Sul, apesar de se apresentar como progressista em vários aspectos, abriga uma das situações mais gritantes de violação de direitos no sistema penitenciário brasileiro: quase mil mulheres cumprem pena em unidades prisionais masculinas, improvisadas, hostis e absolutamente inadequadas à sua condição. São corpos femininos alojados em espaços que foram pensados, estruturados e mantidos para homens – o que não é apenas uma impropriedade administrativa, mas uma afronta constitucional.
Os dados são contundentes. Em 2025, há apenas seis presídios destinados exclusivamente a mulheres em todo o território gaúcho. A carência de unidades prisionais femininas obriga o Estado a empurrar detentas para alas adaptadas em presídios masculinos, onde a superlotação, a ausência de estrutura mínima e a negligência sistemática produzem um ambiente de violação permanente. Nesses espaços, direitos elementares como acesso à saúde, privacidade, proteção contra abusos e até mesmo a convivência materno-infantil são ignorados ou tratados como concessão. A pena de prisão converte-se, na prática, em pena de abandono estatal.
É neste cenário que a condição de mulheres gestantes ou mães de recém-nascidos ganha contornos ainda mais dramáticos. Relatos de presas que dão à luz algemadas, sem acompanhamento adequado, sem acesso a cuidados pré e pós-natais, se acumulam nos registros de organizações de direitos humanos. O caso emblemático de uma presa grávida mantida em uma cela sem luz, com banheiro entupido e sem colchão, durante o período gestacional, não é um desvio da regra: é a regra. As consequências físicas e emocionais para mães e bebês são profundas, e o silêncio institucional que recai sobre essa realidade reforça o descompromisso com a dignidade humana.
Não se trata de uma falha isolada, mas da expressão de uma política penal que nunca foi pensada para mulheres. O modelo prisional brasileiro foi historicamente desenhado por e para homens. As mulheres entraram no cárcere como exceção – e seguem sendo tratadas como tal. A ausência de políticas públicas específicas, a escassez de unidades adaptadas às suas necessidades e o desprezo por sua condição de gênero revelam um sistema penal estruturalmente misógino. No caso do Rio Grande do Sul, esse panorama se agrava pela inércia dos poderes públicos em implementar medidas concretas que respondam à urgência da situação.
2.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, assegura o respeito à integridade física e moral dos presos, e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) estabelece regras claras sobre o tratamento digno da população carcerária. No entanto, esses dispositivos são tratados como abstrações jurídicas quando se observa a realidade vivida pelas mulheres presas no estado. A seletividade penal, que atinge com mais força mulheres negras, pobres e com baixa escolaridade, reforça o caráter classista e racista do sistema. Não são quaisquer mulheres que estão encarceradas em celas masculinas – são mulheres que, antes de serem criminalizadas, já haviam sido socialmente descartadas.
É preciso lembrar que a maioria das mulheres presas cumpre pena por crimes não violentos, como tráfico de drogas em pequena escala, muitas vezes praticado em contextos de vulnerabilidade, coerção ou sobrevivência. A resposta punitiva do Estado, ao invés de dialogar com políticas de redução de danos, alternativas penais e reinserção social, escolhe encarcerar e silenciar. A ausência de presídios femininos adequados é mais um capítulo dessa lógica de punição desproporcional e cruel.
Em tempos de promessas institucionais de equidade de gênero e respeito aos direitos humanos, a omissão diante dessa realidade é mais do que negligência – é conivência com um sistema de tortura institucionalizada. O debate sobre o encarceramento feminino não pode seguir relegado ao rodapé das discussões jurídicas ou ser tratado como um “problema de gestão penitenciária”. Trata-se de um problema político, ético e civilizatório. A quem interessa manter essas mulheres invisíveis, confinadas em espaços que negam sua humanidade? Quem lucra com a manutenção de um sistema que abandona mães, gestantes e jovens em celas escuras e fétidas?
A resposta exige coragem. É necessário enfrentar não apenas a estrutura carcerária, mas o imaginário punitivista que a sustenta. Enquanto o cárcere for visto como a única resposta possível à marginalidade, e enquanto a sociedade aceitar que certas vidas valem menos que outras, o encarceramento feminino seguirá sendo uma ferida aberta, sangrando silêncio e abandono.
*Ketrim Bueno de Fraga, advogada, é pós-graduanda em direito penal e criminologia pela PUC-RS.
Referências
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G1 RS. Com apenas seis presídios femininos no RS, quase mil mulheres cumprem penas em unidades masculinas. GaúchaZH, 4 abr. 2024. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br.
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SILVA, Lílian Carla Rodrigues. Encarceramento feminino: a exclusão do direito à maternidade no Brasil. Repositório UFPB, 2022. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br.
SOUZA, Karen Batista. Mulheres encarceradas no Brasil: entre o abandono e a resistência. Repositório UNINTER, 2023. Disponível em: https://repositorio.uninter.com.
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