Por SANDRA BITENCOURT*
A cada 90 minutos um feminicídio, mas a operação policial é contra o aborto. A violência real não é a que ameaça a ordem, mas a que mantém a dominação
“Não me olhe, como se a polícia andasse atrás de mim…” (Caetano Veloso, Dom de iludir).
1.
Começo o dia nublado, grudento e quente em Porto Alegre, ainda em êxtase pela vitória colorada, logo murcha ao ouvir a diligente notícia das competentes forças policiais gaúchas: a Polícia Civil do Rio Grande do Sul e a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), identificaram uma rede de criminosos que “estimula” a realização de abortos mediante pagamento.
Às 8 horas da manhã tórrida e úmida estavam sendo cumpridos 23 mandados judiciais de busca e apreensão, em oito diferentes estados, para desarticular essa “organização criminosa interestadual, especializada no tráfico de medicamentos controlados”. Sim, senhores: a turma que vende Cytotec pela internet, o Misoprasol, que a bem da verdade tem salvado muitas vidas ao oferecer uma alternativa mais segura que os outrora açougueiros de clínicas clandestinas.
Nesta mesma manhã de investida contra o tal crime do aborto, na primeira hora do cumprimento de busca e apreensão, pelas estimativas mais recentes da Agência Brasil (2022) com dados do “Relógios da violência”, oito mulheres por minuto estavam sofrendo algum tipo de agressão. Os esforços policiais e a coordenação das autoridades estão, no mínimo, fora de sintonia com o medo e o sofrimento que se espalha. Ao final da operação, pelo menos uma mulher terá sido morta.
Sim, a cada 90 minutos uma mulher é assassinada no Brasil, segundo a Defensoria Pública. As manchetes estão aí, as estatísticas não mentem (Ministério da Saúde, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, IPEA, TJMG, Agência Brasil, etc.) e a percepção pública não se equivoca: a cada 10 mulheres no nosso país, três já sofreram violência doméstica. A quem pedir ajuda?
A polícia é a terceira opção: 58% recorreram à família, 53% à igreja e 28% procuraram Delegacias da Mulher. Entre as que solicitaram medida protetiva, quase metade relatou descumprimento. Esses são dados da 11ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada em 2025 e que entrevistou 21.641 brasileiras com 16 anos ou mais, em todos os estados e DF, entre maio e julho. A percepção social permanece preocupante.
Segundo a pesquisa do DataSenado,79% das entrevistadas acreditam que a violência contra a mulher aumentou no último ano. Perguntadas se as mulheres são tratadas com respeito, a resposta é de 47% para as vezes e 46% para não. Questionadas se alguma amiga, familiar ou conhecida já sofreu violência, 67% respondem que sim.
2.
São números alarmantes sobre violência física e situações limite. Mas há outros, muitos, elementos sobre uma cultura, um imaginário, uma mentalidade que torna tudo muito mais grave e não só aqui. Isso tem autoria, tem fomento, tem método. A extrema direita age com uma combinação iníqua de discurso político, ataques a instituições e direitos e desmantelamento de políticas públicas.
É concreto. É fácil de levantar e identificar. Padecemos de manipulações discursivas, monetização de discursos misóginos, desmonte de políticas, alteração de legislações que protegem direitos, censura e violência na educação. Isso começa cedo. Há um ataque sistemático às mulheres e à infância. A proteção às crianças ou à família é sorrateiramente empunhada como uma bandeira moral em jogos de cena políticos para ocultar domínios e opressões.
Crianças tornam-se alvo de discursos patriotas e a manipulação inescrupulosa para fins políticos, mas na prática, a extrema direita recusa controle do ambiente digital (alegando liberdade), ataca educação nas escolas (insultando nossa inteligência com a tal ideologia de gênero), restringe o acesso à saúde física e mental (com medidas que impedem a atenção e a proteção para crianças abusadas).
O aborto é esse tema de dupla moral que se traveste de defesa da vida, criminaliza meninas e mulheres pobres, e é acionado como estratégia política baseada em hipocrisia e apelo moralista. Um assunto doloroso, imbricado em teias jurídicas, morais, religiosas, sanitárias. Defender a escolha, não é defender a morte. Ninguém defende o aborto. Se defende a liberdade e a proteção.
Mundo afora, no entanto, essa mobilização é acionada, sensível que é, para arregimentar forças que garantam retrocessos totalitários. O foco da opressão se localiza, via de regra, no corpo feminino. Esses corpos vilipendiados, arrastados, incendiados, consumidos. E claro, violados em todas as formas possíveis. Inclusive, algumas consideradas já consagradas. E para isso a Internet é ambiente perfeito.
Nos Estados Unidos, nos últimos meses, o lema “Repeal the 19th” viralizou nos espaços da extrema direita, onde alguns líderes religiosos e comunicadores sustentam que as mulheres não deveriam participar da política ou votar! O movimento começou a ganhar força depois da vitória do candidato democrata Zohran Mandani à prefeitura de Nova Iorque com 80% dos votos femininos.
As redes foram inundadas com mensagens misóginas que alcançaram o Trend Topic na plataforma X. A ideia seria proteger as mulheres de si mesmas. Perfis como Joel Webbon que declarou que as mulheres não estão destinadas a fazer política ou do pastor Dale Partirdge que disse que não é contra as mulheres, mas que seria necessário proteger a nação da empatia suicida feminina.
É ainda, logicamente um movimento minoritário, mas tem eco nas redes e apoio explícito de figuras próximas do poder, como o Secretário da Guerra Pete Hegseth. É só ruído, um perigo real ou um sinal de alerta sobre como são frágeis os direitos fundamentais das mulheres?
3.
Essa erosão de direitos tem uma dimensão concreta, jurídica e política. Mas tem sobretudo, uma dimensão simbólica. Nesse terreno, sobejam espaços, perfis e discursos que alcançam fama e dinheiro disseminando ódio, propondo manuais, vendendo cursos e ideias amplamente consumidas de submissão feminina, hierarquia de gênero e culto a um certo tipo de masculinidade.
Esse abrigo para jovens confusos com o próprio papel na sociedade e a sua necessária convivência com mulheres que exigem igualdade, é cada vez mais rentável e mais letal. Às vezes, no entanto, ocorre de ruir a performance diante da vulgar e dura realidade. O case do Calvo do Campari, apelido de Thiago da Cruz Schoba, coach de masculinidade, acusado de agressão e estupro pela ex-namorada gerou uma crise de imagem corporativa sem precedentes.
A empresa Campari nunca patrocinou – e em 2023 repudiou falas misóginas do ícone do movimento Red Pill – mas teve sua reputação arrastada no escândalo de misoginia. O retrato digital do estrago é feio. A reputação online está numa pontuação de 3.9 em um ranking que vai até 10 (segundo dados da empresa Claritor).
Uma crise noticiada no canal Info Money, (com 18 mil views por menção), ou seja, viral, mais do que volumosa ou expressiva. O sentimento negativo associado à marca domina as conversas, portanto, gera mais engajamento. Das 55 menções totais, 377 são negativas, quase 70 % da conversa. Mais de um milhão de engajamento tóxico demonstra que o público está decidido em condenar a associação e não reconhece que a marca não tem a ver com o problema.
No Twitter onde se concentram 70 % das menções, o número de visualizações alcança 3,6 milhões, maior parte dominada pelo sentimento negativo. É inequívoco que houve uma condenação pública e isso é algo positivo. Como a Campari vai desinfetar seu nome, veremos. Como as mulheres seguirão tendo que tratar de sobreviver é o mais urgente.
Como a política se transforma a partir disso, é o relevante nesta quadra histórica de um capitalismo em crise comandado por espíritos prenhes de megalomania, fracos e covardes, sejam eles do gênero que for. Não vamos esquecer que tem por aí mulher “comandante” portadora do pior e mais patético autoritarismo.
Mas, nestes dias de incandescência nos termômetros e na paciência das mulheres gaúchas, teve marcha e teve construção, com a doçura e a meticulosidade das colmeias. O movimento MEL, Mulheres em Luta, tomou as ruas da cidade como enxame e como força polinizadora. É uma boa ideia para o hoje e para o amanhã. E assim, cantamos: “você sabe explicar, você sabe entender tudo bem, você está, você é, você faz, você quer, você tem!”
*Sandra Bitencourt é jornalista, doutora em comunicação e informação pela UFRGS, diretora de comunicação do Instituto Novos Paradigmas (INP).
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