Ricardo Nunes não escolheu esperar!

Foto de Christiana Carvalho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SIMONY DOS ANJOS*

O prefeito e sua base na Câmara Municipal já estão promovendo a ofensiva conservadora aos direitos humanos na Cidade de São Paulo

Há pouco mais de um mês escrevi que o Ricardo Nunes é uma ameaça fundamentalista à cidade de São Paulo, no que se refere aos direitos das mulheres. Pois bem, mal assumiu o comando da prefeitura e já colocou seu rosário na vida das e dos adolescentes paulistanos. A prefeitura emitiu um parecer técnico – mantido sob sigilo – garantindo a efetividade do Programa Eu Escolhi Esperar, proposto pelo PL 813/2020 do vereador e Pastor da Igreja Evangélica Quadrangular Rinaldi Digilio (PSL), no combate à gravidez na adolescência. Ao ver essa proposta de lei, me remeti à minha infância e adolescência, enquanto uma pessoa evangélica.

Na igreja, sempre ouvi sobre esperar para iniciar a vida sexual, assim como uma porção de adolescentes ouvem nas Igrejas todos os finais de semana. Essa prática de reiterar a abstinência como ética de vida, não impediu que boa parte de adolescentes e jovens tivessem relações sexuais, não impediu que conhecidas minhas engravidassem, ou pior, que não tivessem escolha ao serem abusadas. Esse tipo de iniciativa culpabiliza a pessoa que não mantém a castidade, a colocando como moralmente reprovável e silencia as meninas e meninos que possam ter sofrido algum tipo de violência sexual, uma vez que a violação será entendida como pecado, e, portanto, objeto de juízo moral e religioso.

Juízo moral que muitas vezes se efetua em muitas esferas sociais: legislativas, jurídicas e educativas. Expressões como “você tentou fechar as pernas para impedir o abuso?”, “ah, mas se ela era abusada desde os 6 anos, ela estava acostumada”, “mas com que roupa ela estava?”, ‘se estivesse em casa isso não teria acontecido” etc. Falas essas que foram dirigidas a meninas que foram abusadas e que são totalmente excluídas por este PL.

O PL que institui um programa educacional sobre sexualidade para adolescentes, simplesmente ignora o abuso sexual de meninas abaixo de 14 anos. E isso é extremamente problemático, pois credita o problema social da gestação precoce à escolha das meninas e meninos. O PL ignora que em 2015: 29.979 registros de abusos contra meninas abaixo de 19 anos, sendo 8.541 vítimas de 10 a 14 anos. Em 2016: 32.704 registros, sendo 9.477 vítimas de 10 a 14 anos. Em 2017: 39.471 registros, sendo 11.019 vítimas de 10 a 14 anos e em 2018: 45.219 registros, sendo 12.599 vítimas de 10 a 14 anos (Segundo o Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais da UFJF).

Um projeto que prima por atender adolescentes, formar professores e profissionais da saúde em relação a prevenção de gravidez na adolescência, tem que versar sobre acolhimento à vítima de abuso sexual, como identificar alguém possa ser vítima e ainda, orientar adolescentes e jovens sobre abuso. Deve ter por objetivo o enfrentamento às Infecções sexuais transmissíveis (ISTs) e como evitá-las – e o PL não se preocupa com esse cenário, ele apenas institui um programa cujo objetivo é o proselitismo religioso em relação à sexualidade, com dinheiro público.

O ponto é que usar a abstinência como política pública, vai apenas reforçar a culpa de quem não esperou, ou foi violada sendo impossibilitada de esperar. Obviamente, em uma sociedade segura e que a educação sexual e de gênero seja oferecida de maneira séria nas escolas e UBSs, a escolha da abstinência é possível, contudo sem prejudicar a informação sobre a contracepção, sobre o funcionamento do corpo e de como ser responsável em relação ao seu corpo e ao corpo do outro.

Não se pode esquecer que a política de abstinência já defendida pela Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos Damares Alves, foi cientificamente comprovada ineficaz. Um artigo publicado no British Medical Journal, analisou 13 pesquisas feitas com adolescentes entre 10 e 21 anos e confirmou que o impacto dessas políticas é inócuo. O estudo demonstrou que esses programas além de não prevenirem gestações precoces e Ists, não oferecem uma rede de apoio às e aos adolescentes que já iniciaram a vida sexual.

Juridicamente, segundo a nota técnica do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das mulheres da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, esse projeto fere dois princípios constitucionais: o da laicidade e da impessoalidade (artigos 19 e 37 da Constituição Federal). O da impessoalidade, pois o PL leva o nome de uma pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, chamada Instituto Eu Escolhi Esperar, ou seja, com a aprovação deste PL o município passa a promover um interesse privado, com dinheiro público. O da laicidade, pois essa mesma instituição é dirigida por pastores evangélicos e promove dogmas religiosos em relação ao sexo. Segundo a nota, esse PL fere o Estado Laico, uma vez que o “Estado laico não pode se deixar influir por uma religião especifica”.

Por fim, o PL estimula que organizações privadas recebam um dinheiro que poderia ser investido nos programas já existentes no Plano Municipal de Saúde e de Educação, com a estrutura que é garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, baseados em pesquisa, na ciência e na laicidade. A aprovação desse PL significa que Nunes e sua base na Câmara Municipal já estão promovendo a ofensiva conservadora aos direitos humanos na Cidade de São Paulo. A defesa do Estado Laico urge, a ciência, a racionalidade da gestão dos recursos públicos está ameaçada pelos fundamentalismos religiosos. Ricardo Nunes não escolheu esperar e já deu início a sua ofensiva conservadora.

*Simony dos Anjos é doutoranda em antropologia na USP. É integrante do Coletivo “Evangélicas pela Igualdade de Gênero”, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas.

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Matheus Silveira de Souza Vladimir Safatle Mariarosaria Fabris Marjorie C. Marona Leonardo Boff Berenice Bento Eleonora Albano Bento Prado Jr. Marcos Aurélio da Silva Airton Paschoa Anderson Alves Esteves Rodrigo de Faria Lucas Fiaschetti Estevez Lorenzo Vitral Flávio R. Kothe Tadeu Valadares Érico Andrade João Lanari Bo Benicio Viero Schmidt Carla Teixeira Ladislau Dowbor Boaventura de Sousa Santos Tales Ab'Sáber Mário Maestri Luiz Roberto Alves Marcos Silva Luiz Werneck Vianna Luiz Carlos Bresser-Pereira Rubens Pinto Lyra José Micaelson Lacerda Morais Chico Alencar Valerio Arcary Michael Roberts Plínio de Arruda Sampaio Jr. Dênis de Moraes Denilson Cordeiro Fábio Konder Comparato Bruno Machado Paulo Fernandes Silveira Otaviano Helene Lincoln Secco Tarso Genro Francisco de Oliveira Barros Júnior Igor Felippe Santos Antonino Infranca Vanderlei Tenório André Márcio Neves Soares Osvaldo Coggiola Armando Boito Caio Bugiato Jorge Luiz Souto Maior Marcus Ianoni Juarez Guimarães Rafael R. Ioris Luiz Renato Martins Luiz Eduardo Soares Ricardo Fabbrini Ronaldo Tadeu de Souza Chico Whitaker Leda Maria Paulani Luis Felipe Miguel Manchetômetro Jean Pierre Chauvin João Carlos Loebens Manuel Domingos Neto Antônio Sales Rios Neto Alexandre de Lima Castro Tranjan Luiz Bernardo Pericás Marcelo Módolo Ronald Rocha Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcelo Guimarães Lima Heraldo Campos Gerson Almeida Alexandre Aragão de Albuquerque Fernando Nogueira da Costa Thomas Piketty Liszt Vieira Priscila Figueiredo Gilberto Maringoni Daniel Brazil Francisco Pereira de Farias Luiz Marques José Geraldo Couto Luciano Nascimento Eduardo Borges Ricardo Abramovay Henry Burnett Vinício Carrilho Martinez Milton Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo Jorge Branco Renato Dagnino Daniel Afonso da Silva Eleutério F. S. Prado Celso Frederico Elias Jabbour Valerio Arcary Eliziário Andrade Leonardo Avritzer José Machado Moita Neto Atilio A. Boron Gilberto Lopes Claudio Katz Eugênio Bucci Antonio Martins Yuri Martins-Fontes José Raimundo Trindade Sandra Bitencourt Paulo Capel Narvai João Feres Júnior Paulo Nogueira Batista Jr Slavoj Žižek Daniel Costa Alexandre de Freitas Barbosa Eugênio Trivinho Anselm Jappe Ronald León Núñez João Adolfo Hansen Bernardo Ricupero Marilena Chauí Andrew Korybko Maria Rita Kehl Annateresa Fabris Leonardo Sacramento Celso Favaretto Gabriel Cohn Michael Löwy Salem Nasser Afrânio Catani João Carlos Salles Francisco Fernandes Ladeira Ricardo Musse Sergio Amadeu da Silveira Julian Rodrigues André Singer Roberto Noritomi Ricardo Antunes Walnice Nogueira Galvão Luís Fernando Vitagliano Dennis Oliveira José Costa Júnior Kátia Gerab Baggio Ari Marcelo Solon Fernão Pessoa Ramos José Dirceu Samuel Kilsztajn Alysson Leandro Mascaro João Sette Whitaker Ferreira Remy José Fontana José Luís Fiori Flávio Aguiar Carlos Tautz Paulo Martins Paulo Sérgio Pinheiro João Paulo Ayub Fonseca Henri Acselrad Everaldo de Oliveira Andrade Roberto Bueno Jean Marc Von Der Weid

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada