Navalhas pendentes

LEDA CATUNDA, Skate II, 2010, acrílica s/ tela e tecido, 194x297cm.
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Por MARCIO SALGADO*

Comentário sobre o romance de Paulo Rosenbaum

Na trama de Navalhas pendentes, romance de Paulo Rosenbaum (Caravana), Homero Arp Montefiore trabalha para a editora Filamentos, que é incorporada pela holandesa Forster Inc, obtendo avassalador sucesso na venda dos seus produtos. Ele desconfia de que algo fora da ordem ocorre na editora.

Os conceitos de plágio e originalidade, discutíveis desde os primórdios da criação literária, bem como a produção atual dos best-sellers, permeiam as discussões deste romance, que apresenta elementos do gênero policial que se misturam a aspectos da science fiction. O fato de o escritor também exercer a profissão de médico, certamente contribuiu para a exposição de situações e conceitos relacionados à ciência.

No decorrer das investigações, o narrador percebe que estas são capazes de provocar perigos reais – que o obrigam, inclusive, a pôr em prática um plano de fuga – e imaginários, que se manifestam nos seus delírios intercorrentes.

Homero Montefiore é atraído pelo mistério que ronda o nome de Karel F., que assina os maiores best-sellers da editora Filamentos. Um autor (ou autora) refratário às entrevistas, que jamais aparece em público. Diz o narrador: “Eu sabia que Karel era uma personalidade reclusa, considerada arredia, caprichosa e, segundo a mitologia da editora, uma das pessoas mais difíceis que já haviam editado conosco” (p. 92). Até aí, nada de extraordinário. O que as editoras desejam, de verdade, é encontrar aquele autor capaz de elevar, até as alturas, a vendagem dos seus livros.

Contudo, aqui entramos no rol das interrogações: e se este autor for uma fraude?

Por ora, algo mais sobre a identidade deste autor misterioso, somente a leitura do romance pode desvendar. Mas ainda podemos adiantar algumas notícias sobre o narrador que, de forma sistemática, envolve-se numa trama perigosa da qual não consegue sair. A sua intuição lhe dizia que um homem não seria capaz de escrever daquela forma, naquele estilo, a ponto de alcançar a completude.

Acontece, porém, que Homero não se considera, conforme ele próprio informa, uma pessoa fisicamente ou mentalmente saudável. Desde muito jovem, a sua família procurou os médicos em busca de explicações para o seu estado. O seu todo corporal apresentava certas desconformidades, o que ficou patente quando recebeu o genérico diagnóstico dos que possuíam aquelas características: “são pessoas que têm uma simetria facial única, mostram poucos sinais aparentes de envelhecimento e são considerados – vocês podem estranhar o termo – patologicamente belos; infelizmente, eles também apresentam um tronco e extremidades grandes e são ligeiramente assimétricos” (p. 43). Homero ficou muito bem impressionado com a expressão “patologicamente belos”.

O seu vacilante estado mental promove uma sensação de irrealidade na narrativa, mesmo quando se está diante de fatos que seriam vividos concretamente. “Vivo num labirinto de ideias, como aquelas mensagens de náufragos espalhadas em garrafas, que flutuam em oceanos que nunca conversam. Desde então, minha missão tem sido justificar minha sobrevivência neste mundo” (p. 28).

No capítulo “Incidente”, que abre o romance, ele não consegue uma explicação minimante razoável para o sangue que escorre do seu corpo e chega à cozinha, na conversa que estabelece com o interlocutor a quem pediu ajuda.

A investigação desencadeada por Homero o coloca como suspeito. Ele aceita essa condição ao comentar que antes acreditava na lei, nos pactos sociais e nos juízos da sociedade, mas, no seu atual estado, essa crença desapareceu. E conclui: “Há quem associe essa autoindulgência em matéria penal a traços de psicopatia” (p. 179).

De outro modo, tudo pode não passar de delírios do narrador que afirma: “Teorias conspiratórias não podem ocupar nem mais um segundo do meu tempo” (p. 181). Porém, nem tudo é tão certo nessa ficção, afinal, trata-se de um gênero que oferta aos seus autores amplas possibilidades de criação, seja dentro da realidade ou fora dela.

Não é possível ignorar o fato de que o narrador de Navalhas pendentes encontra nos episódios a que se propõe investigar, os fundamentos da Inteligência Artificial. Num cômodo secreto da editora, uma engenhoca recicla os originais recusados. Alguns desses autores chegaram a perceber a fraude, mas jamais a comprovavam. “O algoritmo da Forster impedia a ocorrência de textos idênticos” (311). Há uma boa dose de nonsense em se imaginar que os best-sellers sejam produzidos dessa forma.

Atente-se para o fato de que o personagem tem o mesmo nome do autor da Odisseia, poema épico grego (aprox. século VIII a.C.), o que remete à intertextualidade, com a ressalva de que este conceito descreve a relação estabelecida entre dois ou mais textos.

Homero envolve-se em vários outros episódios considerados crimes, pela justiça, ou, no mínimo, antiéticos, atribuídos a pressões relacionadas ao seu trabalho. Como em outras circunstâncias, os seus delírios sempre o levam à autocondenação.

Na aba do livro, Lyslei Nascimento observa que Navalhas pendentes é, sobretudo, uma armadilha. “A trama põe em perspectiva a sanidade do narrador e a linearidade da história. Complô, ilusão e farsa fazem do enredo um labirinto e multiplicam realidades instáveis ou fantasias existenciais de um protagonista que, aparentemente, não merece muita credibilidade”.

Paulo Rosenbaum nasceu em São Paulo, em 1959. É médico e escritor. Publicou vários livros sobre Medicina Preventiva, sua área de especialização. Antes de Navalhas pendentes, publicou os romances A verdade lançada ao solo (Record, 2010) e Céu subterrâneo (Perspectiva, 2016).

*Marcio Salgado é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, do romance O filósofo do deserto (Multifoco).

Referência


Paulo Rosenbaum. Navalhas pendentes. Belo Horizonte, Caravana Grupo Editorial, 2021, 342 págs (https://amzn.to/3ODvABQ).


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