Almas bárbaras

Carlos Zilio, O MOMENTO DO FERIMENTO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARCIO SALGADO*

O assassinato de Moïse mostra que o sistema político que produziu a barbárie faz de conta que ela é fruto do acaso

As imagens do assassinato de Moïse, imigrante congolês espancado até a morte na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro falam por si, e não se trata de um fato raro o qual somos chamados a testemunhar, pois tragédias como esta são recorrentes em todo o país.

O nosso testemunho deveria contribuir para mudanças de rumo, porém, como disse o filósofo grego Heráclito de Éfeso (540 – 470 a.C.): “Para homens que têm almas bárbaras, olhos e ouvidos são más testemunhas”.

É verdade que de nada vale ter olhos e ouvidos perfeitos se não se quer enxergar e ouvir a realidade. Os brasileiros assistem com um misto de revolta e indignação, outros com total indiferença, à naturalização da barbárie. São monstros os que o mataram, a Justiça deve ocupar-se deles. Mas uma sociedade que alimenta o racismo, a xenofobia e o ódio ao que é diverso também é cúmplice deste ato.

O tempo atual apresenta-nos outras tragédias – individuais e coletivas – que não são exclusivas nossas, mas se disseminam mundo afora com a pandemia. O isolamento prolongado ensinou que o inimigo pode estar no próprio indivíduo, e que não é possível fugir de si mesmo.

No mundo em movimento de Heráclito o devir é a regra, que se expressa poeticamente no fragmento: “Não é possível entrar duas vezes na mesma água do rio”. Ou, conforme outra variação: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”. As águas que passam incessantes são sempre outras, bem como também o ser.

A pandemia nos mostrou o outro lado do rio. Durante dois anos – algumas batalhas vencidas, outras dolorosamente pedidas – ficamos isolados com a sensação de que tudo girava ao redor da mesma sala, na companhia de uma ou duas pessoas próximas. Mas é razoável supor que a repetição tenha-nos ensinado as lições das experiências trágicas, levando-nos a refazer a vida por outros atalhos, enquanto a correnteza de águas turvas do coronavírus alagava as margens do nosso convívio. Uma palavra do outro lado da linha bastava à sensibilidade.

As lives dos artistas, dos cientistas e de todos os que se aventuravam a dizer alguma coisa sobre o insólito da vida cotidiana durante uma pandemia entraram e saíram de moda, enquanto a população continuava a ver o perigo de contágio diante dos olhos com o surgimento das novas variantes. Não faltaram palavras de apoio, mas a repetição dos rituais virou um aborrecido mormaço.

O ser da mudança de Heráclito obedecia a uma lei universal que harmonizava as tensões. “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”. No seu pensamento os opostos se encontram, assim como o arco e a lira. Essas oposições não se transformam numa desordem inconciliável, pois a unidade essencial do ser, como de todas as coisas, abriga a multiplicidade.

Não se pode assegurar com exatidão o significado de conceitos que datam de tempos tão distantes. No caso de Heráclito, as leituras baseiam-se numa intertextualidade quase sem fim. Hoje falamos em diversidade – cultural, étnica, religiosa, sexual – para traduzir a convivência entre grupos de indivíduos na sociedade. As vozes se harmonizam dentro de um mesmo espaço, com as divergências de praxe. Contudo, jamais devemos esquecer: o mundo tem muitos lados onde habitam as almas bárbaras.

A intolerância pode alcançar o indivíduo na primeira esquina, a sua reação ao diferente é violenta e brutal. O outro, que antes era invisível, agora transformou-se num elemento desafiador. Ele tem outra cultura, outros valores, outro jeito de estar no mundo. A sua presença é incômoda, o seu festejo uma ofensa e a sua reza uma heresia.

Há os que defendem a intolerância sem constrangimentos, inclusive nas mídias. Há poucos dias, o apresentador de um site com milhares de seguidores defendeu numa entrevista com deputados federais a ideia de que no Brasil deveria haver legalmente um partido nazista, além de estabelecer um debate com os nazistas. Fica a pergunta: no campo das ideias ou nos campos de concentração transformados em museus?

Não são raras as vezes em que se confundem propostas desse tipo com liberdade de expressão. Após defender o sistema que exterminou milhões judeus, o youtuber lançou um patético pedido de desculpas que pessoa alguma fora do seu círculo considerou. Era uma encenação para contornar o estrago, pois os patrocinadores do site de ideias pantanosas que dirigia bateram em retirada.

O sistema político que produziu a barbárie faz de conta que ela é fruto do acaso. Os crimes resultantes de discriminação ou preconceito estão previstos em lei, com punições rigorosas que deviam coibir a violência, afinal não foram elaboradas senão com este objetivo. No Brasil não faltam leis, mas a realidade é insuperável em seus recados.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, do romance O filósofo do deserto (Multifoco).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • Hans Kelsen e o eros platônicoplatão 16/10/2024 Por ARI MARCELO SOLON & LEONARDO PASSINATO E SILVA: Para Kelsen, a doutrina política platônica está calcada na homossexualidade do filósofo, circunstância que explicaria uma tendência totalitária do projeto filosófico platônico
  • Armando de Freitas Filho (1940-2024)armando de freitas filho 27/09/2024 Por MARCOS SISCAR: Em homenagem ao poeta falecido ontem, republicamos a resenha do seu livro “Lar,”
  • Genocídio sem hesitaçãoemaranhado 17/10/2024 Por ARUNDHATI ROY: Discurso de aceitação do prêmio PEN Pinter 2024, proferido na noite de 10 de outubro de 2024
  • A longa marcha da esquerda brasileiravermelho 371 19/10/2024 Por VALERIO ARCARY: Nos dois extremos estão avaliações de que ou a esquerda “morreu”, ou que ela permanece “intacta”, mas ambos, paradoxalmente, subestimam, por razões diferentes, o perigo bolsonarista
  • Van Gogh, o pintor que amava as letrasfig1samuel 12/10/2024 Por SAMUEL KILSZTAJN: Van Gogh costumava descrever literalmente seus quadros em detalhes, abusando de adjetivar as cores, tanto antes de pintá-los como depois de prontos
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Forma-livreLuizito 2 20/10/2024 Por LUIZ RENATO MARTINS: O modo brasileiro de abstração ou mal-estar na história
  • Influencer na Universidade públicapexels-mccutcheon-1212407 21/10/2024 Por JOHN KENNEDY FERREIRA: Considerações sobre a performance na Universidade Federal do Maranhão.
  • O prêmio Nobel de economiapratos 16/10/2024 Por MICHAEL ROBERTS: É preciso dizer que as teorias que avançam para a “recuperação do atraso” são vagas e, como tais, pouco convincentes
  • A tragédia sem farsaestátua 17/10/2024 Por BARUC CARVALHO MARTINS: Breves comentários sobre a derrota da esquerda na eleição municipal

PESQUISAR

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES