Por SALEM NASSER*
O que lemos, vemos e ouvimos da cobertura jornalística sobre a guerra contra o povo palestino poderia ser classificado como ficção, sem muito esforço
Fatos e ficção
Não posso dizer que sigo com muita disciplina os principais meios de comunicação ocidentais ou brasileiros. Portanto, o que direi a seguir não decorre de nenhum mapeamento abrangente da cobertura jornalística entre nós.
No entanto, estou convencido de que o que lemos, vemos e ouvimos poderia ser classificado como ficção, sem muito esforço. Se prestarmos atenção, ficam claros os limites dentro dos quais a narrativa deve estar contida: a história começou no dia 7 de outubro; nada de ruim estava acontecendo antes, especialmente com os palestinos; O Hamas é um grupo terrorista que, sem provocação, atacou civis; tudo que Israel está fazendo é apenas uma resposta e um esforço para eliminar os terroristas e o mal – é claro que serão encontradas pequenas variações, mas a ideia é a mesma.
Estou também convencido de que nós, no Ocidente, temos menos sorte, no que diz respeito ao acesso a narrativas mais diversas, que os israelenses e todos aqueles que podem seguir os meios de comunicação de israel. Não tenho dúvidas de que por lá é mais fácil criticar Israel e avaliar de forma mais crítica a situação que surgiu depois do 7 de outubro.
Procuremos, então, olhar as coisas de forma diferente, encontrar novas perspectivas de onde perceber as coisas.
O que aconteceu no dia 7?
Todos concordam que o ataque do Hamas de 7 de Outubro foi um acontecimento de magnitude sem precedentes e que terá graves consequências. Mas o acordo termina aqui.
Por um lado, no Ocidente, a magnitude do evento foi lida como localizada em mais um ataque terrorista traumático de terroristas islâmicos contra o mundo ocidental civilizado e pacífico. Veja, por exemplo, as numerosas referências aos ataques de 11 de Setembro e as comparações entre o Hamas e o ISIS…
Também, no Ocidente, a representação global dos ataques apresentou as vítimas civis e, em certa medida, ignorou o fato de que a maior parte dos alvos eram instalações militares.
Esta representação é combinada com o corolário de que Israel está de alguma forma autorizado a reagir com violência extrema e a responder punindo coletivamente os civis palestinos, como se não tivesse outra escolha.
Representações diferentes dos acontecimentos podem ser concebidas, no entanto, e elas estão por aí, mesmo que sejam menos acessíveis para nós. Em parte, pelo menos, estas representações surgem do que podemos saber sobre os próprios fatos.
O que quero dizer com fatos que precisariam ser devidamente estabelecidos? Só posso fornecer uma ilustração, embora muito decisiva.
O que sabemos sobre as vítimas dos ataques do primeiro dia do Hamas é o seguinte: fontes oficiais israelenses deram-nos um número global de 1,5 ou 1,6 mil mortos; eles nomearam certo número deles (cerca de 500 quando olhei pela última vez), dos quais quase 300 eram militares, cerca de 100 entre agentes de segurança e inteligência e cerca de 100 civis. Há, então, um número muito significativo de mortos dos quais não sabemos se eram militares ou civis ou não.
Sobre a causa da morte dos civis, quase não temos informações confiáveis. Tenho visto referências, feitas por Scott Ritter, a testemunhas oculares do fato de muitos terem sido vítimas de disparos das próprias forças israelenses. Tudo isso ainda precisa ser verificado. Não nego a existência de vítimas não combatentes e não tenho meios de atribuir culpas por essas baixas.
Por outro lado, há uma representação diferente dos acontecimentos, na qual vejo mais méritos, que se centra nas implicações estratégicas dos ataques de 7 de Outubro.
De acordo com um relato, que não posso confirmar em detalhe, o Hamas atacou, com um número entre 1.100 e 1.500 combatentes, um total de 25 instalações militares onde estavam estacionados 15.000 soldados israelitas. Neste cenário, mesmo que seja apenas parcialmente verdadeiro, a única conclusão possível é que o Hamas obteve um enorme sucesso militar e revelou um nível inesperado de fragilidade de Israel.
Aqui está a verdadeira fonte do choque que atingiu Israel e todos os seus aliados. É este choque e a constatação desta fragilidade que explicam a hesitação que marca a resposta israelense – o contínuo adiamento de uma operação terrestre e a insistência em ataques aéreos – e a participação direta dos EUA nas operações e nos processos de tomada de decisão.
Israel, e com ele os EUA, sentem a necessidade de reconstruir a confiança militar e as capacidades de dissuasão, mas parecem não encontrar uma forma eficiente de o fazer. A punição contínua da população civil de Gaza não é suficiente e, em algum momento, o tiro sairá pela culatra em termos da opinião pública internacional. É necessária uma operação terrestre que termine numa vitória decisiva, mas tal vitória parece impossível e a operação é profundamente temida.
O Hamas e os outros grupos militares palestinos estão desafiando o poder mítico israelense e convidando a um confronto “homem-a-homem”, por assim dizer. O receio, do lado israelense, decorre da possibilidade real de que a sua derrota se aprofunde ainda mais. O fracasso na obtenção de um avanço significativo na Faixa de Gaza consolidará a impressão de que Israel já não é capaz de conquistar território e de levar a guerra para o terreno do inimigo.
Todos no Oriente Médio, amigos ou inimigos de Israel e dos Estados Unidos, compreenderam as implicações a longo prazo desta derrota, e todos compreenderam que a derrota foi consumada no próprio dia 7, independentemente do que viesse a seguir, independentemente do que ainda virá.
*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP. Autor de, entre outros livros, Direito global: normas e suas relações (Alamedina). [https://amzn.to/3s3s64E]
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