Nossa noite dos cristais

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Por Thelma Lessa da Fonseca*

“Às vezes colho certo consolo de todo o terrível desconsolo da situação. Isso é o auge: nada de bom e nada de mau costuma persistir no superlativo. A  hybris, a brutalidade, o cinismo dos vitoriosos em seus “discursos eleitorais” são tão monstruosos e a ameaça do exterior assume formas tão absurdas que a qualquer hora o contragolpe terá de vir. E nós nos acostumamos tanto à nossa miséria que ainda ocorrem algumas horas suportáveis”.

Esse trecho, que bem poderia ter sido enunciado por algum brasileiro nos dias correntes, data de 30 de março de 1938. É parte dos diários de Victor Klemperer[i], professor de filologia clássica na Universidade de Dresden. De origem judaica, Klemperer pôde adiar por alguns anos sua deportação por ser casado com uma “ariana”. Mesmo assim, apenas conseguiu escapar da “solução final” por mero acaso: em 1945, quando, em vias de ser enviado para um campo de concentração, escapou em meio a um bombardeio.

Ao longo de quase mil páginas, os diários nos assombram, não pela descrição das já conhecidas barbaridades perpetradas pelo regime nazista, mas, sobretudo, pela narração que acompanha detalhadamente a submissão diária aos ditames da nova ordem vigente.

Noutros tempos, pareceria a nós completamente estranha a passividade com que se recebeu a violência ditatorial na Alemanha, especialmente por parte dos membros das camadas cultas e bem informadas da população, como era o caso do autor.

Em seu cotidiano, entre 1933 e 1945, Klemperer e sua mulher foram vítimas de sucessivas retiradas de direitos, a começar pela perda de seu cargo na universidade, passando pela restrição de moradia e de trânsito, limitação de cupons para alimentação e aquecimento, até chegar ao encarceramento de fato. Enfim, a situação política não era mistério algum para esse analista privilegiado e a crescente miserabilidade de sua própria vida material e moral era patente. Ainda assim, nenhuma indignação diante da ausência de sublevação das massas e, tampouco, nenhuma ação prática a fim de salvar a si mesmo, planejar uma fuga enquanto possível, por exemplo. Tudo se passa ali como se a catástrofe total não fosse diuturnamente anunciada.

Nas universidades a campanha totalitarista corria à solta. Em 27 de setembro de 1934, Klemperer comenta um comunicado oficial intitulado “Nova resolução para os estudantes”. Neste se apresenta como vitória a redução do número de alunos universitários em dois terços “a fim de evitar um proletariado acadêmico”, segundo o informe. Não se fazia segredo do esforço do Reich no sentido de “limpar” a Universidade de seus traços “comunistas”. Os reitores passam a ser nomeados e formam conselhos universitários dispostos a colocar em prática as diretrizes do partido nazista.

O que faz com que esse professor universitário, bem como grande parte da população culta e bem informada se permita menosprezar a ameaça que se renova constantemente, não apenas na destruição das instituições, mas também em todas as pequenas atividades do cotidiano? De um lado, há o perfil do Führer: não parecia crível que o sujeito de inteligência limitada, cultura medíocre, que faz discursos desconexos acompanhados de gestos histriônicos conseguisse se manter no poder por muito tempo. De outro lado, talvez houvesse uma espécie de fé injustificável no equilíbrio natural das coisas, afinal, parece a Klemperer que um mal de tamanhas proporções não podia perdurar.

Sobre a sedução do discurso totalitário, muitas vezes incompreendida entre os intelectuais, vale lembrar a interpretação de Adorno: “o agitador fascista é usualmente um exímio vendedor de seus próprios defeitos psicológicos.(…) Eles são vistos como histéricos, mas sua histeria cumpre a função de fazer e dizer, agir de forma tal que causa inveja aos ouvintes, vítimas de suas própria inibições”[ii]. Eles violam tabus típicos da classe média à medida que assumem comportamentos interditados ao cidadão comum sujeito à exigência da normalidade e, assim, exibem sua liberdade de quebrar a “norma”. Tornam-se ícones que impõem sua superioridade exatamente quando burlam as regras sem pruridos. Assim, o paradoxo se explica: “os agitadores fascistas são tomados a sério porque se arriscam a passar por tolos”[iii].

É evidente o quanto essa descrição cabe bem ao atual presidente do Brasil, assim como lança luz no que tange à sua influência sobre boa parte da população, sobretudo aquela que se enleva diante de preleções morais e regras de conduta. Não se trata de uma identificação por empatia, mas de um desejo de submissão. Em lugar da figura do pai amoroso, o fascista, diz Adorno, representa a autoridade ameaçadora e incita o ouvinte à regressão aos estágios arcaicos de seu desenvolvimento psíquico levando-o a reviver momentos de impotência diante da figura paterna ou diante da autoridade em geral. Tem-se aí uma relação masoquista que terminará por desencadear, por sua identificação com a autoridade, justamente seu reverso, o impulso sádico. Cá, como lá, vimos noites dos cristais: o prazer em causar e publicizar, assistir ou repercutir de maneira esfuziante, o sofrimento, a dor e a morte.

Oscilando entre a desesperança e a eventual crença numa força redentora que limite o alcance e a duração do terror, um “contragolpe” vindo não se sabe de onde, Klemperer mergulha na mais pura imediatez, debruça-se sobre seus estudos e se volta para as tarefas cotidianas, infinitamente complicadas pelas restrições de então. Ora se mostra convicto de que Hitler não durará mais seis meses; ora afirma: “não há o que fazer, não é possível viver normalmente em tempos anormais. Não quero me incomodar com o que virá amanhã, tudo é tão inútil” (28 de junho de 1937).

Também nós, por aqui, oscilamos entre a sensação de impotência ao testemunhar espetáculos de justiçamento com prisões e mesmo execuções públicas, ao assistir a autoridade eleita e seus representantes se comportarem como sociopatas com baixíssima capacidade intelectual, e a expectativa de que as revelações do The Intercept ou simplesmente a exaustão decretem o término do reino de terror, ora instaurado. Entretanto, é bom lembrar que o Terceiro Reich, a despeito das estimativas de seus críticos de então, durou bem mais do que poucos anos, mas não precisou durar um milênio para eternizar seus feitos.

* Thelma Lessa da Fonseca é professora titular do departamento de filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

Esse artigo corresponde parcialmente à aula proferida no Curso sobre o golpe de 2016, realizado na UFMS, no primeiro semestre de 1918


[i] Klemperer, V., Os diários de Victor Klemperer, Companhia das Letras, 1999.

[ii] Theodor Adorno. “Antissemitismo e propaganda fascista”. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise, Unesp, 2007, p.144.

[iii] Idem. p. 145.

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