Por ALEXANDRE DE MELO ANDRADE*
A verdadeira criação, fruto da liberdade e da subjetividade humanas, revela-se justamente em nossa imperfeição e nosso mistério, aspectos que a eficiência técnica da IA não pode reproduzir, mas apenas simular
Das muitas reflexões que têm sido realizadas a partir do desenvolvimento emergente da inteligência artificial, uma das que merece destaque é a relação estabelecida entre a produção mecânica das manifestações artísticas e a criatividade humana. Parte significativa da população e dos admiradores da inteligência artificial tem se impressionado com a capacidade que a máquina possui de dominar técnicas estéticas e criar objetos de arte, como romances, poemas, contos, melodias musicais, pinturas etc. A discussão entre a criatividade humana e a manipulação artificial de técnicas criativas está na ordem do dia, mobilizando os professores da educação básica e do ensino superior, a crítica especializada e os próprios artistas que estão no vigor da sua produção.
Na segunda metade do século XVIII, quando os fundamentos do Romantismo afloravam na Europa, as “teorias expressivas” e as “teorias miméticas” – expressões cunhadas por M. H. Abrams (1912-2015) – lançaram luz no caráter inovador e original da arte, empunhando a bandeira do gênio e sinalizando uma ruptura com a arte conservadora e obediente às regras clássicas. Essa perspectiva crítica pavimentou as bases do transcendentalismo e da metafísica moderna, centralizada no eu criador, na relativização dos ideais da tradição e na possibilidade infinita de transmutação e da subjetivização do real. O materialismo decorrente da visão renascentista e iluminista concorre, desde então, com uma visão romântica de valorização da individualidade criativa. De um lado, as necessidades do mundo político-cultural exigem uma adequação do sujeito à natureza social, limitando sua liberdade; de outro lado, a ênfase na subjetividade desloca a atenção para a capacidade criativa humana, que emerge de sua “natureza divina” e da liberdade inerente à sua condição. A própria noção de arte surge desse espaço sempre aberto da subjetividade humana, dos movimentos interiores do espírito e da livre imaginação.
Essa discussão ganhou relevo quando, recentemente, máquinas artificiais passaram a confrontar a criatividade humana, produzindo objetos estéticos com – o que já se diz por aí – certa qualidade, inclusive superior aos produtos humanos. Se a arte, desde as suas origens, surge como exercício de liberdade humana, como é possível pensar que os objetos artificiais possam colaboram com a livre criação? É mais do que sabido que a inteligência artificial manipula os dados acumulados historicamente, perfazendo caminhos, pensamentos, conhecimentos e sensações inscritas no tecido do desenvolvimento humano. Ao apropriar-se deste arsenal de informações, as máquinas reproduzem, readéquam e reajustam os conteúdos encontrados, posto que não é de sua capacidade a criação de algo novo.
Um dos argumentos utilizados pelos admiradores destes produtos artificiais é de que o artista também, ao produzir sua obra, reelabora conteúdos com os quais teve contato, ainda que inconscientemente, o que consistiria numa trama intertextual que põe em dúvida o caráter totalmente original dela. Mas, vejamos: os conteúdos intrínsecos à obra de arte, que a colocam em diálogo com outras obras, é ordenado pela subjetividade do artista; há uma consciência centralizadora que se manifesta, que faz escolhas, que se revela. O aspecto humanístico da arte não é o de justamente revelar nossa humanidade a partir das perspectivas individuais? Outro argumento utilizado normalmente pelos adeptos da produção estética da inteligência artificial é o de que os objetos por ela produzidos tendem a ser superiores, em qualidade, àqueles produzidos pelos humanos; no caso do poema, por exemplo, exaltam-se a combinação de figuras de linguagem, os efeitos sonoros e os procedimentos de versificação. Ainda que em matéria de arte o quesito “erro” seja relativo, a falta de originalidade, os descuidos e os deslizes cometidos pelos autores não são, também, revelações do humano? Ou estamos imaginando que a criatividade humana deve atingir aquilo que para nós é perfeição? Ao considerar a produção humana falha e nos deixarmos seduzir pela criação artificial, não estamos abrindo mão de nossa condição errática e imperfeita? Comparar os objetos estéticos produzidos pelos humanos com aqueles produzidos artificialmente, no sentido de regozijar-se com estes, parece-me uma descrença total na capacidade de se surpreender com a inteligência e a sensibilidade humanas. Os aspectos de nossa liberdade se revelam numa arte humana tida como “imperfeita” ou numa criação artificial tida como “perfeita”?
As reflexões de Nikolai Berdiaev (1874-1948) ainda hoje contribuem significativamente com estas proposições. O filósofo defende que a criação é um exercício de liberdade, em oposição às atividades impostas pelas necessidades de adaptação. O surgimento da inteligência artificial – cujas matrizes já se anunciavam há muito tempo – atende às necessidades do nosso tempo, e trarão, sem dúvidas, avanços nas mais diversas áreas das práticas humanas, mas não atende à criatividade. A liberdade é filha da criatividade, e as máquinas não são livres, posto que não são condicionadas por desejos. Na liberdade, há um mistério que nega tudo o que é finito e suas limitações; a liberdade não pode ser racionalizada, ela é uma expressão cósmica que se manifesta na imaginação do artista.
Berdiaev, para tratar da necessidade e da liberdade, faz uma analogia com Adão. O personagem bíblico ainda não é livre, pois está no primeiro estágio da criação. O primeiro Adão cria a necessidade. Mas, no oitavo dia, quando aparentemente o mundo está pronto, inicia a sua criação, que irá tingir a realidade a partir de seus desejos, sua ação e sua subjetividade. Apenas a liberdade pode ampliar o mundo, e este é um atributo somente humano. Ao nos submetermos à inteligência artificial, atendemos a uma necessidade material; por meio dela, o humano é reproduzido e fragmentado, mas não revelado. A arte produzida pelas máquinas indica traços de adaptação, mas não de criação. Em O sentido da história, o filósofo ainda diz, em livre tradução nossa: “[…] a invenção da máquina e a mecanização da vida que o homem leva consigo a enriquece por um lado, mas, por outro, cria uma nova forma de dependência e de escravidão muito mais forte do que supõe a dependência imediata do homem com respeito à natureza” (2017); no mesmo segmento, diz que “Ao final da época moderna, no período da crise do humanismo, o homem experimenta uma solidão, um abandono e um isolamento profundos”, e que “a ideia de progresso não deve confundir-se com a da evolução”.
Se a arte pode ser produzida artificialmente para nosso prazer e admiração, ela mesma pode interpretá-la, sem que haja qualquer esforço de nossa parte para sua compreensão; basta um comendo e temos a decodificação do texto “inventado”. A máquina cria, a máquina interpreta, e nós desaparecemos deste processo por não haver necessidade de nossa participação. Se pensarmos, como Berdiaev, que a criatividade humana é manifestação de nossa natureza trágica e metafísica, a reprodução artística realizada artificialmente reduz nossa própria experiência diante do mundo, comprometendo os aspectos metafísicos que podem e devem permear a vida contemporânea, e cujos efeitos serão aterradores.
Frequentemente, ideias como as que defendo aqui são vistas como ultrapassadas, conservadoras e primitivas. De modo algum essa visão crítica tem como objetivo condenar o progresso material, que pode nos levar a conquistas inimagináveis. O cerne da visão defendida é a problematização da criatividade diante dos potenciais arranjos das máquinas. Historicamente, é possível perceber que o progresso material impõe uma via de mão dupla: de um lado, invenções que solidificam novas formas de trabalho e de adaptação; de outro, recuo da nossa condição natural e das nossas forças psíquicas. Isso porque há uma adesão desenfreada às inovações materiais e um esgotamento das nossas forças, que extrapolam os benefícios advindos do progresso e se afogam num mar de ocupações e de complexidades fortuitas. O desenraizamento de nossa condição natural é visível desde a infância, comprometendo aspectos essenciais da nossa existência, como concentração, autocontrole e autoconhecimento. De tanto aderirmos desmedidamente aos apelos do progresso e nos tornarmos dependentes das inovações materiais, estamos regredindo à infância da humanidade para redescobrirmos nosso organismo biológico: os estúdios de mindfulness estão lotados de pessoas que precisam reaprender a olhar para o espaço e o tempo presente, a sentir os movimentos da respiração e perceber seu próprio corpo físico. Existe algo mais primitivo do que ter de aprender novamente a respirar? Temos dificuldade para dormir porque nossos pensamentos não dão trégua e estamos (isso quando não aderimos à milionária indústria farmacêutica) reaprendendo a dormir, que é uma condição natural do nosso organismo. A cada passo dado para frente, dois são dados para trás na tentativa de resgatar justamente aquilo que em nós é mais primitivo. Questionar os limites da criação artificial é necessário para pensarmos numa nova metafísica contemporânea.
*Alexandre de Melo Andrade é professor do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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