Por GILBERTO LOPES*
Uma vitória de Lula cria a possibilidade de uma frente latino-americana capaz de abrir uma janela para fazer ouvir vozes hoje silenciadas
Já passava das duas da manhã quando os sete – sete! – candidatos terminaram o longo debate (outros quatro, por não terem representação parlamentar suficiente, não participaram). Era quinta-feira e, a três dias das eleições de 2 de outubro, a campanha eleitoral entra em silêncio obrigatório.
Com Lula beirando a maioria absoluta – o que lhe permitiria evitar um segundo turno em 30 de outubro –, muita coisa parecia estar em jogo. Poderia ter sido um palco propício para inclinar a balança, somando os votos indecisos necessários para consolidar a vitória.
Penso que isso não aconteceu. Se, para um importante jornal conservador de São Paulo, Lula ganhou por pontos de seu rival mais imediato, o presidente Jair Bolsonaro, para Valter Pomar, membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), “o debate contribuiu para que ocorra um segundo turno”. Ele explica assim: com o resultado dependendo de uma diferença tão pequena de votos (se nos basearmos nos resultados de quase todas as pesquisas), qualquer variação pode ser fundamental. E, no debate – cujo formato colocava os candidatos para debaterem uns contra os outros –, eram todos contra Lula.
Um formato de debate
Há muito tempo desisti de assistir a tais debates, aqui ou em qualquer lugar. Abri uma exceção para este, e fiquei decepcionado! Parece-me que a televisão não serve para isto. Se não me engano, essa moda começou nos Estados Unidos e hoje tentam convencer-nos de que são um exemplo de “democracia”.
Nos Estados Unidos, funciona. Há dois candidatos que partem da mesma visão básica e que discordam em questões bem determinadas. Aqui (e na América Latina em geral), com sete candidatos (na Costa Rica, por exemplo, houve 25 nas eleições de fevereiro desse ano), é impossível. Além disso, há uma divergência maior, impossível de analisar em três minutos.
De modo que, ao que me parece, pagamos um preço muito alto (e muito negativo) por transformar a televisão num palco político. Não é um palco para análises, é uma injeção direta na veia. No caso do debate de quinta-feira no Brasil, a mensagem mais clara (e mais cínica) veio de um partido que se intitula “Novo”, de uma fantasia liberal que apela para “tirar o peso do Estado das costas do povo”, privatizar tudo, e assegura-nos que a concorrência é o caminho para baixar os custos. Como se o mundo não estivesse nesse caminho desde o fim da Guerra Fria, com as consequências dramáticas da polarização econômica e social que levou ao caos político atual!
Mas, no minuto de televisão, a mensagem pode ser transmitida. De uma forma ou de outra, em versões diferentes, com matizes, era o mesmo para todos os seis candidatos, exceto Lula. Achei impossível terminar de assistir ao debate. Começou às 22h30 e terminou após as duas da manhã. Não valia a pena.
Mas não deixei de ficar impressionado com o bafafá entre Lula e um candidato disfarçado de padre, patético (que certamente não receberá 0,5% dos votos), que começou a provocar o ex-presidente. E ele conseguiu. Insultou-o, e Lula respondeu. Fiquei surpreso ao ver o Lula cair nesta provocação. Mas, num artigo inteligente sobre “Do que depende a eleição no primeiro turno”, a jornalista Maria Cristina Fernandes já nos tinha advertido que o melhor palco para o Lula era a praça pública, não o debate televisivo regulamentado.
Lula não falou ao público, falou para seu interlocutor, um de cada vez, todos contra ele. Para mim, foi um erro. Não assumiu seu papel como candidato vencedor, como franco favorito, não se diferenciou dos demais. Devia ter feito isso, podia ter feito isso. E algo mais: faltou-lhe o senso de humor. A todos eles. Uma certa alegria. Ninguém a apresentou.
A oferta política
Há menos de uma semana, Lula falou num ato chamado “Brasil da esperança”. Explicou a aproximação de seu hoje candidato a vice-presidente, Geraldo Alckmin, um tradicional adversário político. “É preciso unir os divergentes, para combater os antagônicos”, explicou. E fez isso de uma forma que parecia inimaginável, atraindo empresários e políticos, líderes das mais diversas áreas, até há pouco tempo inimigos do PT. Após quatro anos de um presidente não apenas corrupto, mas também cínico e totalmente despreparado para o cargo, o Brasil aspira ao retorno a uma certa “normalidade”.
Para alguns, o esforço de Lula nesse sentido é espúrio; mas, para a maioria, é necessário. “No início”, disse Lula, “éramos apenas três partidos. Agora somos dez!” Lembrou que, nos seus dois governos anteriores, foram gerados 22 milhões de empregos, que o Brasil era a sexta maior economia do mundo; que hoje 33 milhões de pessoas no país não têm nada para comer; dez milhões estão desempregadas e quase 40 milhões vivem na informalidade.
Um cenário pavoroso, insustentável! Prometeu voltar a investir em infraestrutura, retomar os programas sociais que Bolsonaro arruinou, renegociar as dívidas que afligem 70% das famílias brasileiras, corrigir as distorções do imposto de renda, reinvestir nos pequenos e médios produtores rurais e na agricultura familiar, além de muitas outras medidas. Entre elas, o fortalecimento das empresas estratégicas nacionais, como a Petrobrás, palco de enormes atos de corrupção que serviram de base para a chamada operação Lava Jato, uma operação judicial que, através de todo tipo de truques, mais tarde desqualificados pelos tribunais superiores, o levou à prisão e contribuiu para entregar estes recursos a investidores privados.
Como, em campanha, tudo está em debate, os adversários acusam Lula de ter concedido mais benefícios aos banqueiros do que às pessoas comuns durante seus governos anteriores. “É verdade que os empresários ganharam dinheiro”, disse Lula, que se reuniu em São Paulo com alguns dos empresários mais importantes do país, quase todos tradicionais adversários dele. Não será muito diferente num novo governo.
Mas um Brasil com uma política soberana fará toda diferença na América Latina. Com um mundo polarizado, com Washington empenhado em soluções militares nas frentes mais sensíveis da Rússia e da China, com a Europa silenciada e submetida a estas políticas, o mundo nunca viu de tão próximo a possibilidade de um conflito nuclear.
Uma vitória de Lula cria a possibilidade de uma frente latino-americana capaz de abrir uma janela para fazer ouvir vozes hoje silenciadas – incluindo as mais sensatas vozes europeias e norte-americanas – que ajudarão a orientar o novo cenário mundial. Um esforço que o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador já iniciou. Não será pouca coisa!
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves
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