Por ARTHUR OSCAR GUIMARÃES*
O exame da Nova Indústria Brasil revela o desafio de converter a recuperação cíclica em competitividade sistêmica, alertando para os riscos de um crescimento que não transborda para os setores menos dinâmicos e para a geração de empregos qualificados
1.
O presente artigo examina os limites de transbordamento inerentes à Nova Indústria Brasil (NIB), de maneira a avaliar em que medida seus efeitos poderão alcançar os setores menos dinâmicos da economia nacional, inclusa as denominadas tecnologias sociais (TS). Parte-se do pressuposto de que a Nova Indústria Brasil constitui o principal instrumento de combate à desindustrialização brasileira, apostando no progresso técnico (VIOTTI, E.B; 1997) e no adensamento das cadeias produtivas como vetores do desenvolvimento econômico.
Ao considerar como alvissareiro o processo de implementação de uma política industrial pelo Brasil, uma análise ex-ante das metas das seis missões – mais especificamente das cadeias produtivas prioritárias – o artigo busca responder se a Nova Indústria Brasil – baseada em instrumentos como P&D, conteúdo local, financiamento e compras governamentais – tende ou não a gerar impactos econômicos ampliados e sustentáveis. Metodologicamente, adota-se o método hipotético-dedutivo para formular o problema central, ou seja: o atual desenho da política promove, de fato, difusão tecnológica e geração de renda para segmentos mais amplos do tecido produtivo nacional?
Os resultados preliminares apontam avanços setoriais relevantes, especialmente nos denominados segmentos dinâmicos da indústria, em princípio beneficiados pela recente recuperação industrial, mas paradoxalmente também revelam um descompasso entre o dinamismo industrial corrente e os setores estratégicos priorizados pelas missões da Nova Indústria Brasil e, principalmente, para o que aqui se denomina setores menos dinâmicos.
É possível inferir reduzido efeito de transbordamento sobre os setores não intensivos em tecnologia, aparentemente ainda não alcançados pela Nova Indústria Brasil, particularmente na geração de maior número de empregos qualificados.
Conclui-se que, para evitar que o esforço atual resulte em frutos para os nichos de maior competitividade da indústria nacional, entendida como a capacidade de uma indústria ou empresa de se destacar no mercado, buscando manter ou aumentar a sua posição em relação aos concorrentes, propomos focar nos riscos do país gerar “competitividade espúria”, mas fortalecer instrumentos capazes de ampliar o alcance distributivo e inovativo da política industrial brasileira para que se possa falar em uma verdadeira “competitividade sistêmica”. [SUZIGAN, W. e FERNANDES, S.C.]
2.
O Nova Indústria Brasil é o plano governamental de implantação da nova política industrial criada e executada durante o atual mandato do presidente Lula da Silva, com o objetivo de contenção da desindustrialização brasileira, que vem ocorrendo desde o início da década de 1990 e de promoção de sua reindustrialização ou neoindustrialização. O debate central aqui proposto reside no alcance da inovação tecnológica, entendida como a introdução e difusão de produtos e processos novos e/ou aperfeiçoados na economia.[i]
Todavia, busca-se identificar os efeitos da Nova Indústria Brasil no denominado processo inovativo, ou seja, muito mais que a ideia inicial de inovação, o país deverá considerar que “as atividades de inovação tecnológica são o conjunto de diligências científicas, tecnológicas, organizacionais, financeiras e comerciais, incluindo o investimento em novos conhecimentos, que realizam ou destinam-se a levar à realização de produtos e processos tecnologicamente novos e melhores” (OCDE. Manual de Frascati).
Nesses termos, em boa medida os limites do processo indicado resultam do progresso técnico, cujo papel central está na alteração dos custos de produção, de maneira a induzir o crescimento da produtividade na indústria brasileira, entendida como a essência do desenvolvimento econômico.
Todavia, as barreiras ao cenário ideal encontram-se no processo de desindustrialização revelado no esgarçamento produtivo com a perda de densidade produtiva nacional, em contraposição ao desejável adensamento produtivo, que se explicita nas interdependências da malha produtiva que desencadeiam uma produção adicional de segmentos conectados na rede produtiva, aumentando o emprego, a massa salarial, o desenvolvimento tecnológico e a arrecadação tributária (MORCEIRO e GILHOTO, 2020).
3.
Lista-se, a seguir, as seis missões da nova política industrial do país, suas metas e setores definidos para o adensamento das cadeias produtivas. Vejamos:
| Missões e Cadeias Prioritárias | Metas para 2026 e 2033 |
| Missão 1: Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias ▪ Agricultura de precisão (drones e sensores) ▪ Máquinas agrícolas e suas partes e componentes ▪ Fertilizantes e biofertilizantes ▪ Têxtil | ▪ Promover o crescimento do PIB Agroindústria em até 3% ao ano no período de 2024 a 2026 e em até 6% ao ano de 2027 a 2033; e ▪ Ampliar para 28% a mecanização da agricultura familiar em 2026 e para 35%, em 2033, e ampliar a tecnificação da agricultura familiar para 43% em 2026 e para 66% em 2033. Obs.: incentivando o suprimento do mercado por máquinas e equipamentos nacionais, com promoção do desenvolvimento regional. |
| Missão 2: Complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias ▪ Medicamentos e princípios ativos biológicos ▪ Vacinas, hemoderivados e terapias avançadas ▪ Dispositivos médicos (equipamentos médicos) | Produzir, no país, 50% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde, em 2026, e 70%, em 2033. |
| Missão 3: Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias ▪ Sistemas de propulsão ▪ Baterias elétricas ▪ Metroferroviários e suas peças, partes e componentes | ▪ Contratar 2,0 milhões de moradias pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), dos quais 500 mil com fornecimento de energia renovável (painéis fotovoltaicos) até 2026 e 6,9 milhões moradias (1,4 milhão com painéis fotovoltaicos) até 2033; e ▪ Aumentar a participação de veículos eletrificados (elétricos e híbridos) com baterias nacionais na comercialização de veículos novos para 3% em 2026 e para 33% em 2033. |
| Missão 4: Transformação Digital da indústria para ampliar a produtividade. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias: ▪ Semicondutores ▪ Robôs industriais ▪ Produtos e serviços digitais avançados (Plataformas digitais e computação em nuvem; Audiovisual) | Transformar digitalmente 25% das empresas industriais brasileiras em 2026 e 50% em 2033, assegurando a participação da produção nacional nos segmentos de novas tecnologias. |
| Missão 5: Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas para garantir os recursos para as gerações futuras. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias ▪ Novas fontes de energia (SAF, diesel verde, hidrogênio) ▪ Equipamentos de energia verde (aerogeradores e painéis fotovoltaicos) ▪ Descarbonização da indústria de base (cimento, aço e química sustentáveis) | ▪ Promover a indústria verde, reduzindo a intensidade de emissões de gases de efeito estufa por unidade de produto em consonância com as metas setoriais do Plano Clima, ampliando em 27% a participação de biocombustíveis e elétricos na matriz energética de transportes em 2026, e em 50% em 2033; e ▪ Aumentar em 10% o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade até 2026 e em 30% em 2033. |
| Missão 6: Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacionais. Desafios de Adensamento das Cadeias Produtivas Prioritárias ▪ Veículos Lançadores ▪ Radares ▪ Satélites | ▪ Alcançar 55% de domínio das tecnologias críticas[i] para a defesa em 2026 e 75% em 2033. |
Fonte: MDIC/CNDI/NIB/1ª edição, revisada e atualizada.
Nas informações listadas acima, cabe verificar (a partir de dados do IBGE) se as metas e os setores listados como cadeias produtivas prioritárias produzirão os efeitos esperados para os próximos anos (2026/2033). Em outras palavras, se a estrutura definida – por meio do denominado transbordamento – será capaz de gerar emprego e renda aos segmentos sociais e econômicos mais amplos da sociedade brasileira, em boa medida distantes dos aumentos de empregos e rendas vinculados aos setores dinâmicos da economia brasileira.
4.
Um olhar preliminar sobre cada uma das missões da NIB permite afirmar que:
Cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais
A recuperação da indústria e o destaque de “máquinas e equipamentos” no crescimento recente do IBGE indicam oportunidade real para promover a produção nacional de tratores, colheitadeiras, insumos e equipamentos agrícolas – essenciais para aumentar a mecanização/tecnificação da agricultura familiar, conforme metas da Nova Indústria Brasil. Se essas cadeias forem priorizadas, o dinamismo atual do setor de bens de capital favorece o adensamento agroindustrial. Porém, será necessário reforçar políticas industriais específicas, financiamento e P&D para fertilizantes e bioinsumos, bem como para tecnologias de agricultura de precisão.
Complexo econômico-industrial da saúde
Embora a indústria tenha crescido em 2024–2025, os ramos que mais impulsionaram o crescimento foram bens de capital, veículos e bens de consumo duráveis – não há indicação forte, até agora, de que insumos de saúde ou dispositivos médicos estejam entre os principais motores. Isso sugere que para atingir a meta de produzir 50% (até 2026) e 70% (até 2033) das necessidades nacionais de medicamentos, vacinas e equipamentos médicos, será preciso um esforço deliberado de política industrial, investimentos em P&D, incentivos à biotecnologia, e fortalecimento de parques produtivos nacionais – além do impulso geral da recuperação industrial.
Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis
O crescimento recente em máquinas, bens de capital e equipamentos pode oferecer uma base para fomentar cadeias como baterias, componentes metroferroviários e sistemas de propulsão. Mas para atingir as metas ambiciosas de moradias, energia renovável e veículos eletrificados com componentes nacionais, tudo indica que será necessário intensificar (atrair) investimentos externos (infraestrutura, energia verde, logística) e implementar políticas de estímulo à industrialização regional – algo que o simples crescimento agregado da indústria não garante automaticamente.
Transformação digital da indústria
Os dados recentes não indicam ainda um boom em setores de semicondutores, robótica industrial ou serviços digitais avançados: os ramos que puxaram o crescimento foram tradicionais (máquinas, veículos, eletroeletrônicos). Isso revela um descompasso entre o impulso atual da indústria e a ambição de digitalização profunda da NIB. Para que 25% (em 2026) e 50% (em 2033) das empresas industriais se transformem digitalmente, será crucial adotar políticas de capacitação, P&D, incentivos à inovação e adoção de novas tecnologias – um esforço em longo prazo.
Bioeconomia, descarbonização e transição energética
De forma pública e consolidada, os dados não explicitam um crescimento robusto de cadeias verdes (painéis fotovoltaicos, biocombustíveis, tecnologia de baixo carbono) como motores da indústria. Para cumprir as metas de participação de biocombustíveis, descarbonização e uso sustentável da biodiversidade, será necessário mais do que recuperação industrial: é preciso redirecionar investimentos, fomentar a indústria verde, definir políticas ambientais-industriais e integrar incentivos climáticos com inovação. Esse parece ser um dos maiores desafios estruturais.
Tecnologias de interesse para a soberania e defesa nacional
Dados do IBGE (e presentes na mídia) referem-se ao crescimento generalizado da indústria, mas não apontam avanços claros na produção de tecnologias de defesa, satélites, radares ou veículos lançadores. Isso sugere que, sem uma mobilização específica de política industrial, financiamento e parcerias estratégicas, alcançar 55% (2026) ou 75% (2033) de domínio dessas tecnologias será uma meta ambiciosa e dependente de uma definição de Estado, não apenas do ciclo de expansão industrial.
5.
A título de observação final, o crescimento de 3,1% da indústria brasileira em 2024 (Pesquisa Industrial Mensal do IBGE, o terceiro maior registro dos últimos 15 anos) indica uma retomada significativa da atividade industrial. Esse desempenho foi impulsionado sobretudo pelos setores considerados dinâmicos: o segmento de bens de capital que apresentou crescimento de 9,1%, com destaque para máquinas, aparelhos e materiais elétricos, além de equipamentos de transporte e industriais.
A tendência permanece positiva em 2025, pois nos primeiros cinco meses do ano, a produção industrial acumulou alta de aproximadamente 1,8%, com contribuição relevante de máquinas e equipamentos, veículos automotores e produtos químicos.
Este cenário confirma a existência de uma janela de oportunidade para que as missões definidas na Nova Indústria Brasil ganhem concretude, sobretudo aquelas voltadas à modernização da estrutura produtiva e ao adensamento de cadeias industriais prioritárias. No entanto, o dinamismo industrial recente continua concentrado predominantemente em segmentos dinâmicos (bens de capital e outros), mas ainda não reflete de forma consistente os setores estratégicos definidos pela Nova Indústria Brasil – saúde, semicondutores, energias renováveis, biocombustíveis e tecnologias de defesa – ainda fora do núcleo de crescimento atual.
Dessa maneira, para que esse impulso se converta em um processo de competitividade estrutural (caracterizado por inovação contínua, diversificação tecnológica, sustentabilidade ambiental, autonomia produtiva e fortalecimento do complexo de saúde), suficientemente amplo, torna-se essencial uma articulação coordenada entre Estado e Sociedade, junto ao setor privado, mas em todo o seu leque.
Essa articulação deve envolver o uso consistente de todos os instrumentos da política industrial: financiamento público-privado, subvenções, incentivos à P&D, compras governamentais, conteúdo local, capacitação e apoio à adoção de tecnologias avançadas, mas incluindo a tecnologia social.
Na ausência desse direcionamento estratégico, existe o risco real de que o crescimento recente se limite a um ciclo conjuntural, centrado em setores consolidados, sem promover o transbordamento necessário para integrar os demais elos e setores da economia nacional, especialmente aqueles com menor intensidade tecnológica.
Somente mediante políticas de longo prazo e orientadas de forma deliberada será possível superar o padrão histórico de desindustrialização, permitindo alcançar uma reindustrialização que seja ampla, sustentável e socialmente justa, como deveria almejar a Nova Indústria Brasil.
*Arthur Oscar Guimarães é doutor em sociologia pela UnB.
Referências
FREEMAN, Christopher. La teoria económica de lainnovaciónindustrial. Curso de Economia Moderna. Alianza Universidad. Madrid, España. (1975; p. 33).
GUIMARÃES, A.O. Inovação tecnológica, mudança técnica e globalização –Conceitos Básicos. In VIOTTI, E. B. et al. Dimensão Econômica da Inovação. Curso de Especialização em Agentes de Inovação e Difusão Tecnológica. ABIPTI –SEBRAE –CNPq. Brasília/DF; 1997; pp. 23-54.
IBGE. PIM-PF Brasil | IBGE. PIM-PF – Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física. In https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/industria/9294-pesquisa-industrial-mensal-producao-fisica-brasil.html?=&t=series-historicas
MDIC/CNDI/NIB/1ª edição, revisada e atualizada. Brasília: CNDI, MDIC, 2025. 110p. In https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/plano-de-acao/nova-industria-brasil-plano-de-acao-2024-2026-1.pdf
MORCEIRO, P. C.; e GUILHOTO, J. J. M. Adensamento produtivo e esgarçamento do tecido industrial brasileiro. Economia e Sociedade, Campinas, v. 29, n. 3 (70), p. 835-860, setembro-dezembro 2020. In https://www.scielo.br/j/ecos/a/bXWQQNdkrCLPRgnK9CzRmVB/?format=pdf&lang=pt
OCDE. Manual de Frascati 2002 Medição de atividades científicas e tecnológicas. Tipo de metodologia proposta para levantamentos sobre pesquisa e desenvolvimento experimental. OCDE_ManualFrascati_2002_PT_BR.pdf In https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/indicadores/paginas/referencias/manuais-de-referencia/arquivos/OCDE_ManualFrascati_2002_PT_BR.pdf
SUZIGAN, W. e FERNANDES, S.C. (IE/UNICAMP). In https://www.abphe.org.br/arquivos/2003_wilson_suzigan_suzana_cristina_fernandes_competitividade-sistemica_a-contribuicao-de-fernando-fajnzylber.pdf
VIOTTI, E.B. Teoria Econômica, Desenvolvimento e Tecnologia – uma introdução (pp. 9-22). In VIOTTI, E.B. et al. Dimensão econômica da inovação. Brasília: SEBRAE, 1997.
Notas
[i] “Tecnologias críticas são aquelas cruciais para a garantia da soberania e da defesa nacionais, tais como as de radares, satélites, foguetes e turbinas.” MDIC/CNDI/NIB (2025) In: https://www.gov.br/mdic/pt-br/composicao/se/cndi/plano-de-acao/nova-industria-brasil-plano-de-acao-2024-2026-1.pdf.
[ii] “Considera-se inovação tecnológica a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado.” Cf. Lei nº 11.196/2005; Art. 17. § 1º (Lei do Bem).





















