Noventa anos do trotskismo no Brasil

Carmela Gross, série ENTRE PALAVRAS, Jornal, 2012, grafite e esmalte sobre folha de dicionário, 27,5 x 20,8 cm
image_pdf

Por VALERIO ARCARY*

A obra de Leon Trotsky e dos que desenvolveram o marxismo a partir de suas premissas foi a que melhor respondeu aos três maiores desafios teóricos colocados pelo século XX

Em 1930 saiu a público, no Brasil, o primeiro número do jornal A Luta de classes editado pelo Grupo Comunista Lênin no Brasil. Um nome discreto para um coletivo com personalidades extraordinárias. Desde então o fio de continuidade do trotskismo não se rompeu em nosso país, embora através de organizações muito diferentes umas das outras.

É verdade que os trotskistas nunca foram, em escala internacional, mais numerosos que umas poucas dezenas de milhares. Pareciam, no entanto, muito mais ameaçadores e influentes do que seu número poderia sugerir. Eles estiveram na linha de frente dos comunistas na China, com Chen Duxiu, contra a repressão de Chiang-Kai Chek na China em 1927, quando em muitos países já começavam a ser expulsos dos PC’s fiéis a Moscou.

Combateram o nazismo na Alemanha com a mesma coragem com que afrontavam o estalinismo na União Soviética. Lutaram contra o fascismo na guerra civil espanhola, de armas nas mãos, sem por isso ceder apoio político ao Governo de Frente Popular. Foram presos aos milhares durante os processos de Moscou, mas não hesitaram em se oferecer como voluntários para lutar no Exército Vermelho, quando Hitler invadiu a União Soviética em 1941.

Estiveram nas trincheiras de Saigon no Vietnã, liderados por Ta Thu Tao, ao final da Segunda Guerra Mundial, lutando contra o imperialismo francês, mesmo sendo muito perseguidos, e à frente da greve da Renault na França, lutando contra o governo de união nacional encabeçado por De Gaulle, que contava com a participação de ministros do PC.

Ajudaram a fazer marxista o vocabulário do movimento dos operários mineiros da Bolívia na revolução de 1952. Foram presos pelo macartismo nos EUA nos anos cinquenta, ao mesmo tempo em que resistiam nos campos de trabalho forçado de Vorkuta no Ártico.

Lutaram sem quartel contra o imperialismo na América Latina, sem por isso cederem às pressões nacionalistas-desenvolvimentistas que se expressaram através do peronismo na Argentina, do getulismo no Brasil e do aprismo no Peru.

Estiveram na primeira linha da solidariedade com a Argélia, mas não calaram diante da repressão nas ruas de Budapeste na Hungria em 1956. Fizeram de Cuba a sua bandeira, mas não traíram a esperança dos que cantavam a Internacional nas ruas de Praga quando os tanques enviados por Moscou invadiram a Tchecoslováquia em 1968.

A história encontrou os trotskistas nas barricadas do Quartier Latin de Paris em 1968 e, nos anos setenta em Lisboa na revolução portuguesa, na resistência ao franquismo na Espanha, e na primeira linha da luta para derrubar a ditadura militar na Grécia.

Mas sangue trotskista foi derramado às centenas, na luta contra as ditaduras latino-americanas enfrentando a mais feroz repressão no estádio nacional de Santiago do Chile, e nas prisões argentinas, uruguaias e brasileiras.

Eles estiveram na guerra contra Somoza na Nicarágua, na resistência ao apartheid na África do Sul, e nas greves de Gdansk na Polônia. Resistiram à restauração capitalista na ex-URSS no início dos anos noventa, e ajudaram a construir um novo internacionalismo impulsionando a campanha contra a invasão do Iraque. Sua integridade foi posta à prova, impiedosamente, em todas as latitudes e longitudes.

Os trotskistas divulgaram o marxismo em dezenas de idiomas. Estudaram e escreveram muito, mas não se deixaram reduzir a um círculo literário. Interviram nos sindicatos, mas não se embriagaram com as rotinas sindicalistas. Uniram seu destino ao movimento do proletariado, mas não diminuíram sua militância ao obreirismo. Espalharam sua mensagem à escala internacional.

Eles viajaram por toda parte, sacrificaram suas famílias, cruzaram continentes, mudaram de países, perderam empregos, falsificaram passaportes, trocaram de identidades, proletarizaram-se nas grandes indústrias, organizaram sindicatos, escreveram jornais, agitaram greves, impulsionaram a unificação das lutas, distribuíram boletins, fizeram campanhas, recolheram fundos, lideraram rebeliões, pegaram em armas, foram presos, e muitos pagaram com a vida a força de seu compromisso.

Contribuíram para que um marxismo aberto fosse útil para a compreensão das mudanças do mundo, escrevendo livros de teoria no campo da economia, da história, da sociologia, da geografia, do direito da política e das relações internacionais. Mas quadros educados sob sua influência estiveram presentes em muitos outros campos da ciência e nas artes em geral.

Mantiveram o fio de continuidade do programa marxista revolucionário e a independência da Quarta Internacional, ainda que muito fragmentados. Defender o marxismo sempre significou defender o programa da luta contra a propriedade privada, mas não é possível defender um programa sem construir uma organização, um coletivo disciplinado em torno a um projeto estratégico. E a construção de um movimento político exige, em primeiro lugar, a disposição de preservar a qualquer preço a sua independência das pressões sociais hostis aos interesses do proletariado.

Essa independência deve ser política e ideológica, mas, também, material. Destacaram-se pelo seu engajamento desinteressado e sua entrega despojada, uma prova de sua força moral. Erraram muito, também, quando os desafios táticos foram ficando mais complexos, mas não sacrificaram princípios. Viveram a mais grandiosa das aventuras contemporâneas: a luta pela revolução mundial.

Mas, a história lhes foi cruel e ingrata. O internacionalismo tinha sido derrotado, e os seus defensores tiveram o destino dos que não temem marchar contra a corrente: um terrível isolamento. Depois que a social democracia e o estalinismo se transformaram nas correntes mais influentes do movimento operário durante a reconstrução capitalista do chamado boom do pós-guerra, a divisão que se instalou no movimento socialista foi fatal para a causa internacionalista.

As lutas no Leste, no Ocidente e no Sul do planeta se desarticularam, e deram as costas umas para as outras. O internacionalismo se subordinou aos interesses diplomáticos de coexistência pacífica de Moscou, Belgrado, Tirana, e Pequim, e se transfigurou em nacionalismo dos Estados autoproclamados socialistas.

No Ocidente, a maioria dos que lutavam contra o capitalismo deram as costas para os que lutavam contra as ditaduras burocráticas na URSS e no Leste Europeu. Poucos foram os que, na esquerda, se levantaram em Paris, Roma ou Londres para denunciar a repressão na Hungria em 1956, ou mesmo em Praga em 1968. No Leste e na URSS, depois da destruição da Primavera de Praga, e pior ainda depois da derrota da revolução polonesa de 1981, diminuía a influência do marxismo entre os que resistiam às ditaduras burocráticas.

Os trotskistas ficaram, politicamente, sozinhos. Enquanto Internacional, a Quarta deixou de existir nos anos cinquenta. Prisioneiros na marginalidade dos grandes fluxos de opinião do movimento socialista, e submetidos às terríveis pressões dos grandes aparelhos socialdemocratas, nacionalistas e, sobretudo, dos partidos comunistas, sofreram as sequelas de uma corrente que soube preservar sua independência, porém, não superou sua condição muito minoritária.

Dividiram-se, dramaticamente, em várias tendências, cedendo às pressões políticas nacionais mais significativas em cada país. O “nacional-trotskismo”, ou seja, a ideologização da possibilidade de construção de uma organização revolucionária dentro de fronteiras nacionais, mesmo quando um “partido-mãe” estava associado a pequenos círculos que mimetizavam sua experiência – num mundo em que a contrarrevolução foi se globalizando, foi, em maior ou menor medida, o destino trágico das organizações trotskistas mais fortes.

Descobriram-se na mais severa solidão revolucionária.

Surgiram reflexos inflexíveis, impulsos sectários, mentalidades rígidas próprias de uma fraternidade de abnegados acossados. Ao longo dos últimos trinta anos, depois da restauração capitalista na URSS, não permaneceram incólumes às vicissitudes da imensa confusão ideológica e adaptação política que atingiu o conjunto da esquerda.

Não obstante, deixaram duas heranças de valor incalculável.

Os trotskistas foram politicamente derrotados, mas intelectualmente vitoriosos.

A obra de Leon Trotsky e dos que desenvolveram o marxismo a partir de suas premissas foi a que melhor respondeu aos três maiores desafios teóricos colocados pelo século XX: uma interpretação sobre a natureza da sociedade soviética depois dos anos trinta, uma interpretação para as revoluções sociais dos países coloniais e semicoloniais, e uma interpretação para o processo de restauração do capitalismo.

A segunda herança foi a inspiração militante: marcharam contra a corrente defendendo uma bandeira sem manchas. Deixaram um exemplo pela sua coragem, perseverança e integridade moral. Defenderam, quase sempre sozinhos, a tradição internacionalista do marxismo quando ela foi entregue nas suas mãos. Honraram a causa mais elevada do nosso tempo. Merecem ser lembrados.

Honra à memória do Grupo Comunista Lenin.

*Valério Arcary  é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
11
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
12
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES