O Aldolavismo

Imagem: Patricia McCarty
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Por LEONARDO SACRAMENTO*

Tanto Aldo Rebelo quanto Olavo de Carvalho representam a busca pelo tradicionalismo oitocentista de movimentos conservadores

No primeiro semestre de 2022, o PDT anunciou que expulsaria um grupo de direita dentro do partido, organizado desde 2015, denominado Nova Resistência.[i] Esse grupo fundamenta-se em Alexandr Dugin, filósofo russo que figura na tríade conservadora ao lado de Steve Bennon e Olavo de Carvalho. Não expulsou, como a entrevista de Ciro Gomes ao programa Pânico e a sua vinculação explícita a Aldo Rebelo, normalmente vestido de Santos Dumont, provam. Ao contrário, a organização, assim como outras organizações que a margeiam, assumiu grande protagonismo no partido.

Quando do ato da Revolução Periférica contra a estátua de Borba Gato, esses setores, em conjunto com o PCO, atacaram o Coletivo, classificando-o de identitário.[ii] Todos se declaravam nacionalistas e defendiam os bandeirantes como fundadores da nacionalidade, como a elite paulista de 1920 que se organizava na Comunhão Paulista (Júlio de Mesquita Filho), no Bandeirismo (Cassiano Ricardo) e no Integralismo (Plínio Salgado), todos movimentos protofascistas e fascistas.

À época fiz textos denunciando que eram grupos de direita dentro da esquerda. O principal quadro ideológico desses grupos é Aldo Rebelo, fundador de um movimento protofascista denominado Quinto Movimento. O grupo do PDT foi um grande publicista do manifesto do Quinto Movimento, o qual defende uma cruzada moral do Estado e das Forças Armadas para educar a população contra o identitarismo.[iii] Mistura misticismo do fascista mexicano José Vasconcelos, um dos quadros do fascismo latino-americano na década de 1920 e referencial de Plínio Salgado, com Alexandr Dugin, creditando de forma racista a todo o movimento negro e de nativos o “identitarismo invasor da nacionalidade mestiça brasileira”.

Como consequência dessa modelação ultranacionalista, os povos indígenas fariam parte de um complô globalista para impedir que o Brasil se enriqueça com extração de minérios e produção de alimentos. Nesse sentido, o movimento defende o agronegócio como se fosse uma linha auxiliar de sindicatos patronais. Se o agronegócio não paga impostos, se depende do fundo público, se praticamente não gera empregos, se não produz alimentos para uma população na qual metade está submetida a algum grau de fome (“insegurança alimentar”), se destrói biomas e se mata indígenas (genocídio),[iv] pouco importa. É um movimento, assim como o olavismo e o bolsonarismo, negacionista.[v] A posição acrítica de Aldo Rebelo ao agronegócio é diretamente proporcional à apropriação da interpretação histórica mitificada de movimentos conservadores sobre os nativos brasileiros e os africanos – é o que se propõe a analisar no presente texto.

Para que essas “conclusões” possam ser admitidas, um conjunto muito significativo de dados precisa ser negado. Alguns desses dados estão em visível interface com a extrema direita brasileira, a ponto de os autores das “conclusões” receberem elogios e serem de difícil distinção com a produção da própria extrema direita.

Em um debate em 2000, na USP, promovido pelo Instituto Mário Alves em comemoração aos 100 anos de Gilberto Freyre, Olavo de Carvalho ouvia a apresentação das teses de O Escravismo Colonial. Não discordou das contribuições estruturalistas da obra, mas discordou de Jacob Gorender quando se opôs à “descrição freyriana da sociedade patriarcal”, uma vez que uma não eliminaria a outra – o que é impossível na obra de Gorender, sobretudo o seu Escravidão Reabilitada, obra destinada a rebater as críticas memorialistas e freyrianas ao O Escravismo Colonial, com destaque para o livro de Kátia Mattoso, Ser Escravo no Brasil, uma tentativa política enfadonha de refundar o freyrianismo com dados exclusivos (e literalmente escolhidos a dedo) da Bahia – algo feito por Antônio Risério recentemente, objetivando provar que racismo estrutural contra negros não existiria, havendo, isso sim, um supremacismo negro alinhado ao que chama de identitarismo.

No caso, Kátia Mattoso possuía interesse familiar no freyrianismo. Grega, foi casada com Sylvio de Queirós Mattoso, descendente direto de Eusébio de Queiróz, cujo pai foi ouvidor-geral da comarca da Angola – a família Queiróz, junto com a família Mattoso (Catarina Mattoso de Queiróz da Câmara era a mãe de Eusébio), foram duas famílias escravocratas, a despeito do esforço de Eusébio de proibir o tráfico sob a baioneta dos ingleses sobre os navios mercantis brasileiros. O tráfico, exclusivamente. Havia um interesse familiar em romantizar a escravidão.[vi]

Em um determinado momento do debate, Aldo Rebelo assume a palavra e, segundo relato de Olavo de Carvalho, “enfrentou valentemente as pretensões de certos militantes do movimento negro, ali presentes, que, repetindo esquemas retóricos norte-americanos, procuravam menosprezar o valor cultural e ético da miscigenação brasileira e apresentar a nossa sociedade em termos estereotipados de um conflito inconciliável de raças”. Segundo o “filósofo” que se refugiou na Virginia, a poucos quilômetros do Pentágono, fugindo de vez dos esquemas retóricos norte-americanos, “o deputado, com muita acuidade, percebeu o forte elemento de imperialismo cultural presente nesses arrebatamentos de negritude um tanto postiça, tendentes a destruir a originalidade da cultura brasileira em proveito da adoção de um discurso ‘politicamente correto’ financiado por fundações estrangeiras”. Ao fim, Olavo afirma que ficou “ao lado de Rebelo contra os oponentes” (CARVALHO, 2001, p. 204).[vii]

Olavo de Carvalho ovacionou duas características essenciais do Aldolavismo: (i) o movimento negro é submetido a um imperialismo cultural; (ii) A negritude destrói “a originalidade da cultura brasileira”, pois reinaria o “valor cultural e ético da miscigenação brasileira”. Todos são brancos, e esse é um dado importante subjacente ao discurso conservador sobre a formação do brasileiro médio miscigenado. É uma teoria racial sobre o brasileiro que se embranquece. Nativos e negros transmitiriam características consideradas positivas, como a bondade e a força, respectivamente, sendo o resto depurado e excluído da formação do brasileiro médio.

Mas, antes de entrar no mérito da origem dessa teoria racial – o que será feito de forma mais detalhada na segunda parte –, tão fundamental à extrema-direita brasileira para negar o racismo sem negar a branquitude, deve-se compreender a repercussão dessa teoria para a projeto político dos movimentos arrolados. O Quinto Movimento, especificamente, redigiu um manifesto assinado por Aldo Rebelo, um longo manifesto que mistura proposição com análise sobre o que considera a essência do brasileiro.

Em seu prefácio, Aldo Rebelo reflete que o “problema é que a mestiçagem no Brasil é muito mais que a promessa da raça cósmica na feliz expressão do filósofo mexicano José Vasconcelos”. Para ele, “a mestiçagem é a manifestação plena de nossa identidade nacional”, ao passo que, “ao atacar a mestiçagem”, o “identitarismo mira o que há de mais profundo e permanente na identidade nacional brasileira e nos conduz a uma capitulação retardatária, ideológica e cultural à doutrina racista que separou negros e brancos nos Estados Unidos” (2021, p. 10).

A luta contra o que chama de identitarismo, conceito irmão da ideologia de gênero, encampada por movimentos neopentecostais, tem como premissa a defesa do escravismo civilizatório brasileiro, apreciação comum aos conservadores do século XIX para a defesa do escravismo, como será visto com a análise sobre José de Alencar, em Cartas de Erasmo (Parte II). Para Aldo, “no Brasil a abolição foi antes uma batalha social e não racial” em virtude “do elevado grau de miscigenação” (REBELO, 2021, p. 205), o que cumpriria constatar que o escravismo brasileiro teria sido democrático a ponto de escravizar brancos e o escravismo norte-americano antidemocrático o suficiente a ponto de não escravizar negros nascidos de estupros, justamente por serem miscigenados (sic!). Por isso, uma das principais formas “de enfrentar o racismo é a promoção social dos negros e mestiços via políticas de redução das desigualdades, principalmente com a educação pública e universal para todos os brasileiros, independentemente da cor da pele e da condição social” (REBELO, 2021, p. 206). E, desse encadeamento, considera que qualquer coisa que impacte ou critique a mestiçagem um ataque à natureza brasileira, à essência unificadora e sintetizadora de uma nova raça.

A mestiçagem seria natural, sem estupros, sem escravismo segregador, um escravismo democrático, mesmo que o Brasil tenha importado praticamente cinco milhões de africanos, principalmente depois de sua Independência, sendo responsável por metade do tráfico transatlântico mercantil ao continente americano, com uma mortalidade incrivelmente mais alta do que a dos EUA. Para ser mais preciso, enquanto os EUA importaram 305 mil africanos ao longo de sua história, e tenha registrado uma população negra de quatro milhões em 1870, o Brasil traficou cinco milhões e tinha, em 1872, uma população de escravizados de 1,5 milhão de escravizados em um total de 1,9 milhão de pretos. Enquanto os EUA aumentaram a sua população de pretos em 1.310%, o Brasil apresentou uma redução de 62%. O índice de mortalidade entre os negros brasileiros foi incrivelmente maior do que o dos EUA, justamente em função de o Brasil ter controlado o tráfico mercantil de escravizados.

Para conseguir ser autoinduzido à sua conclusão, Aldo Rebelo e todos os movimentos descritos negam a historiografia, principalmente determinados autores, como Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Luiz Felipe Alencastro, Décio Saes, Jacob Gorender e Manolo Florentino; e dados dos mais simplórios, como a quantidade de traficados, os capitais acumulados, as leis segregacionistas na República Velha, o eugenismo, a proibição da imigração de negros, o Código Criminal, a Lei do Menor e os auxílios e cotas para estrangeiros e brasileiros brancos. De tal modo, constrói uma análise memorialista e anticientífica da realidade, como qualquer movimento fascista.

Um exemplo pode ser retirado de seu capítulo “Nossa herança africana”, no qual conclui que Casa Grande & Senzala foi uma “obra definitiva destinada a demolir as teorias racistas e a erguer uma interpretação otimista e científica da mestiçagem e do povo brasileiro”. No mesmo ano, o de 1934, “Freyre organiza o Primeiro Congresso Afro-brasileiro, iniciativa que contou com o apoio do diretor do Museu Nacional, Roquette-Pinto, do influente psiquiatra Ulisses Pernambucano e do poeta Solano Trindade” (REBELO, 2021, p. 204).

O memorialismo continua sob a lógica do tenho amigos negros: “Em livro de memórias, o ex-ministro Serzedelo Corrêa conta que certa vez, ao buscar assinatura do presidente Floriano Peixoto no Palácio do Itamaraty, durante o horário do almoço, encontrou o marechal à mesa na companhia de um negro velho que Floriano apresentou como seu companheiro dos campos de batalha no Paraguai (2021, p. 205). Se Floriano Peixoto almoçava com negros, com certeza o Decreto nº 528, de junho de 1890, que proibia a imigração de “indígenas da África e da Ásia”, liberando exclusivamente para brancos, e o Código Criminal do mesmo ano, que proibia com prisão a vadiagem, a capoeira e religiões de matriz africana e reduzia a maioridade penal de 14 para 9 anos, devem ser relativizados. O almoço de Floriano entra no rol da influência africana para Aldo Rebelo. Uma prova irrefutável de que, se existe racismo no Brasil, é agregador, ao contrário do que chama de birracialidade norte-americana.

Roquette-Pinto foi um eugenista que se fundamentava na frenologia. Participou do Congresso Mundial das Raças, em 1911, em Londres, com passagens financiadas por Hermes da Fonseca (financiamento estatal). Ali apresentou um estudo de mil páginas, em inglês, denominado Impressões do Brasil no século XX, no qual concluía que o embranquecimento da população era uma marcha inevitável, pois “a massa branca que chegava ao Brasil era praticamente anulada pela onda negra que os portugueses vinham movendo da África havia mais de 300 anos”.

Além do erro de vincular estritamente os portugueses ao tráfico de africanos, pois o Brasil traficou 1,3 milhão de africanos a partir de 1824 e 2,5 milhões a partir de 1800, registrando ainda uma população, como já dito, de apenas 1,9 milhão de pretos em 1872, Roquette-Pinto defendeu abertamente um processo de substituição. A obra no Congresso foi usada para atrair investimentos e mão de obra europeia e branca, a fim de acelerar o processo de construção do brasileiro branco ou embranquecido. Para o eugenista, “a união dessas três ‘raças’ teria, em sua opinião, formado uma variada população mestiça (mulato, caboclo, cafuzo), que tenderia sempre à reversão ao tipo branco, impulsionada pela seleção natural e pelo aumento constante de novos imigrantes vindos do continente europeu”.[viii] Com João Baptista de Lacerda, concluiu que, em 2012, o Brasil se livraria, definitivamente, de negros.

Aldo Rebelo citar o eugenista e omitir elementos mínimos e essenciais é um dado epistemológico e político do movimento conservador. José Vasconcelos também é citado com deferência como uma grande referência para Aldo Rebelo, sobretudo quando discorre sobre a mestiçagem. O ideólogo compreende que “o problema é que a mestiçagem no Brasil é muito mais que a promessa da “raça cósmica” na feliz expressão do filósofo mexicano José Vasconcelos”; é, a bem da verdade, “a manifestação plena de nossa identidade nacional” que “modelou a imagem que fazemos de nós perante o mundo” (2021, p. 10). O fascista mexicano também é citado no Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo, documento modernista que resultaria em duas dissidências importantes para os movimentos conservadores brasileiros: o Bandeirantismo e o Integralismo.

A raça cósmica é o cerne da questão, pois a mestiçagem seria uma promessa maior do que a propalada pelo movimento protofascista Verde-Amarelo em 1929. Assim como os verdeamarelistas e os conservadores, Aldo inicia a história do Brasil pela chegada da colonização, em que, a partir desse momento, tudo é Brasil. A colonização teria sido um processo de depuração do brasileiro. Para Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida, redatores do manifesto, “a descida dos tupis do planalto continental no rumo do Atlântico foi uma fatalidade histórica pré-cabralina, que preparou o ambiente para as entradas no sertão pelos aventureiros brancos”. Assim, “os tupis desceram para serem absorvidos”, para “se diluírem no sangue da gente nova” (MANIFESTO VERDE AMARELO, 1983, p. 361).

Em movimento semelhante, para não dizer idêntico, Aldo Rebelo sintetiza o seu capítulo “A Questão Indígena” por um roteiro que se inicia em sua cidade natal, Viçosa (AL), a qual, segundo ele, todos teriam uma “avó indígena” e exibiriam “a ascendência indígena como uma espécie de atestado de brasilidade legítima e autêntica” (REBELO, 2021, p. 209). Porque todos seriam ascendentes e, portanto, não tinham parentes indígenas vivos, não se preocupa. Não se preocupa porque no movimento conservador o desaparecimento do indígena é um elemento da formação do brasileiro médio, branco como Aldo, pois “em uma população de 34 milhões não contamos meio milhão de selvagens”. Contudo, “é a única das raças que exerce subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos exóticos” (MANIFESTO VERDE-AMARELO, 1983, p. 363).

Ao iniciar a questão indígena relatando que toda a sua cidade descenderia de indígenas, reproduz um elemento estruturante da simbologia conservadora, sobretudo integralista. A miscigenação tendo os indígenas como os parteiros na nacionalidade, mesmo que Plínio Salgado confesse que foram exterminados, para o bem da formação do brasileiro médio (no pensamento conservador brasileiro é o branco), é usado por Aldo como a premissa ontológica e epistêmica. Por ele supostamente descender de indígenas, é brasileiro. Por ser brasileiro, luta contra pensamentos, teorias e “nacionalismos exóticos”. O exotismo da vez é o que chama de identitarismo.

Logicamente, para naturalizar a espiritualidade indígena depois da morte de milhões, naturaliza não somente a morte, mas também os estupros: “Sem renegar a ascendência materna, mas buscando também com ela a sua semelhança, e sem negar a origem paterna portuguesa, mas colhendo dela a outra parte da sua identidade, foi o tipo predominante na primeira geração de filhos da terra. Aí nasce o mestiço, mesclado no sangue, na psicologia, na sua cosmogonia, o mestiço completo, na alma, na cultura, na visão de mundo” (REBELO, 2021, p. 192-193). E, lógico, como a primeira geração decorre da paternidade portuguesa e da maternidade indígena, a paternidade e a maternidade indígenas que ocorriam antes da chegada dos portugueses não se constituem em brasilidade.

Da mesma forma, os indígenas ao redor dos portugueses, ou lutando contra os portugueses, não seriam brasileiros; tornar-se-iam se participassem, voluntariamente ou não, da “miscigenação”, da “incorporação”. Portanto, assim como movimentos conservadores, Aldo Rebelo e o Quinto Movimento negam a existência histórica e a vinculação de povos indígenas com a brasilidade antes de 1500, antes da chegada do colonizador, ou melhor, do pai europeu (português). O Quinto Movimento nada mais é do que uma teoria supremacista reciclada, cuja origem remonta o Manifesto Verde-Amarelo, o Integralismo e movimentos oitocentistas.

A história do Brasil é americana porque a mãe é indígena; e é europeia (civilizada) porque o pai é português. A sociabilidade e a história indígenas são secundárias, para não dizer irrelevantes, porque são antinacionais ou o que os verdeamarelistas chamavam de tapuias (indígenas “selvagens” não colonizados). É exatamente essa a grande dedução do agronegócio e do neopentecostalismo, que, ao contrário dos grupos paramilitares, que compreendem o indígena na perspectiva da eliminação física, transformariam os indígenas em brasileiros por meio da evangelização – Damares Alves é o melhor exemplo dessa relação, principalmente sobre as suas adoções de crianças indígenas.[ix]

Essa naturalização fora feita pela narrativa verdeamarelista. Para Plínio Salgado e companhia, “não há entre nós preconceitos de raças”; “não conhecemos preconceitos religiosos”. Como o Brasil é um “pais sem preconceitos, podemos destruir as nossas bibliotecas, sem a menor consequência no metabolismo funcional dos órgãos vitais da Nação (MANIFESTO VERDE-AMARELO, 1983, p. 364). Coerente com a ideologia verdeamarelista, assim como os bolsonaristas, Aldo Rebelo propõe uma cruzada educacional, pois, “diante da ofensiva contra a mestiçagem por parte do mercado, da mídia e da academia, cabe ao Estado a tarefa de defendê-la difundindo-a e valorizando-a no sistema educacional, nas Forças Armadas e nos espaços públicos ainda não dominados pelo identitarismo” (REBELO, 2021, p. 197-198). O encontro do homem branco português com a indígena primeiramente e, depois, com a africana, teria sido o nascimento do Brasil. Aldo Rebelo se considera um verdadeiro brasileiro quando remonta a sua suposta genealogia dos ascendentes indígenas já desaparecidos – por isso, a ladainha de Viçosa (AL), uma espécie de passaporte identitário branco. Qualquer conhecimento científico contrário a essa narrativa oitocentista consiste em diversionismo.[x]

A explicação fantasiosa sobre a gênese dos brasileiros, historicamente criados e defendidos por movimentos conservadores brasileiros, é o seu método. Sobre o Exército, conclui que “o intenso trabalho que envolveu a formação do Exército Brasileiro contou com mestiços, indígenas e negros como mentores das nossas Forças Armadas junto com Duque de Caxias (REBELO, 2021, p. 16). Se os africanos foram à Guerra do Paraguai como troca para que os proprietários brancos não fossem, e que tenham morrido algo em torno de 150 mil (batalhas e doenças),[xi] contribuindo para que o número de negros tenha diminuído em 40% entre 1850 e 1872, pouco importa. O negacionismo estatístico, historiográfico e científico é um método, assim como o é nos movimentos abertamente conservadores da extrema direita, inclusive monarquistas.

Esse método tenta justificar toda ordem de barbaridades. Para Aldo Rebelo, a carnificina de Canudos teria ocorrido por obra da índole de um homem, o coronel Antônio Moreira César, que teria sido nomeado por Manoel Vitorino Pereira, médico baiano que substituiu Prudente de Morais. Segundo Aldo, “a tragédia de Canudos se deu porque o governo Vitorino mandou para lá um homem desequilibrado, o coronel Antônio Moreira César, que terminou sua vida nessa campanha, vítima de suas ambições e de seus próprios erros políticos e militares”.

O coronel era “um linha-dura, remanescente da repressão às revoltas dos federalistas do Sul do País e foi o responsável pelas execuções de Anhatomirim, em Santa Catarina, fuzilando os civis apoiadores do movimento em represália ao fuzilamento de partidários da República pelos rebeldes monarquistas”. Contudo, “a bem da justiça, diga-se que Floriano nunca promoveu Moreira César a general (REBELO, 2021, 100). Ufa, ainda bem. O Marechal de Ferro não era linha-dura, que diga Florianópolis, capital de… Santa Catarina. Os culpados são um coronel e um médico. Por óbvio, a informação é falsa. Moreira César fuzilou 298 pessoas em 1894 sob ordens de Floriano Peixoto. Aldo Rebelo é um florianista.

Essas conclusões absurdas à luz da historiografia mais banal também explicam a sua proximidade com os militares contemporâneos. Ocorre que a interpretação oficial e oficiosa das Forças Armadas ainda trata a sua participação em Canudos como um acerto, assim como a Marinha para com a repressão contra João Cândido e o restante dos revolucionários negros. Segundo o desfecho da análise oficial em portal do Exército, “a participação do Exército na defesa das instituições” enfrentou “o fanatismo e o banditismo que durante alguns anos trouxeram a intranquilidade ao interior baiano”.[xii] Banditismo é um conceito bem definido na historiografia. Vinculá-lo a Canudos, com um significado moralista, tem função bem óbvia.

A regressão continua até a reprodução mecânica do conservadorismo alencariano, segundo o qual os conservadores salvaram o Brasil da fragmentação política. Assim como José de Alencar, Aldo Rebelo defende que “a Regência encontrou o Brasil mergulhado na anomalia de ser uma monarquia sem monarca e um império sem imperador”, onde reinavam “a anarquia e quatro guerras civis simultâneas”, ameaçando “a unidade do País e a integridade do território: a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no Pará”. Para Aldo Rebelo, “apenas duas instituições estavam acima das aspirações dos caudilhos e dos regionalismos radicalizados: o Exército e a Marinha, portadoras por vocação e por natureza da única consciência nacional capaz de refrear o ânimo incendiário dos interesses locais e impor pela força a razão nacional”, para que “a maioridade conferida ao jovem imperador restabelecesse a referência da autoridade e da unidade do país (2021, p. 149).

Aldo ignorou propositadamente a Revolta dos Malês, citada em menos de uma linha no capítulo “Nossa herança africana”, segundo o qual fora uma revolta de cunho “religioso e cultural”. No mesmo parágrafo, a questão política, ou como disse, “a luta política dos escravos”, foi delegada aos “mulatos” e “mestiços de ori­gem africana que ascenderam social ou politicamente, como Teodoro Sampaio, André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama”, que expuseram “todas as formas utilizadas no combate contra a escravidão” (REBELO, 2021, p. 203).

Assim, Aldo coroa objetivamente a sua conclusão segundo a qual “a abolição foi antes uma batalha social e não racial” em virtude “do elevado grau de mestiçagem” (REBELO, 2021, p. 205), pelo visto, conforme o seu entendimento de incorporação e assimilação destituída de uma dada africanidade antibrasileira – para tanto, transforma uma revolta de africanos escravizados em algo de cunho “religioso e cultural”, mas não econômico e político, elementos restritos aos “miscigenados” (Por que Olavo de Carvalho não concordaria? Por que Aldo Rebelo concordaria com Jacob Gorender?). Além do mais, citar a Revolta dos Malês consistiria em impor uma áurea escravista “ao jovem imperador”, ao Exército e à Marinha. Que se omita em nome da coerência conservadora. Constata-se, também, que omitiu a palavra golpe à maioridade do “jovem imperador”.

Diante de tal novelo narrativo, “as Forças Armadas têm a atribuição de aprofundar seus laços com a Nação como um todo, com sua história, sua me­mória e identidade, desviando-se das armadilhas ideológicas e políticas que dividem a população e o país”. As armadilhas ideológicas e políticas são aquelas que retiram o país da “centralidade da questão nacional”, que “é seu destino”. Aqui, enfim, aparece a teleologia do Brasil, que ontologicamente e historicamente é miscigenado. Para os quinto-movimentistas, “se há uma reforma curricular a ser promovida nas suas instituições de ensino não é para introduzir o contrabando da agenda identitária infelizmente já infiltrada em nossas escolas públicas e privadas, mas ao contrário, é para valorizar o estudo da história e dos intérpretes da formação social brasileira”, pois “um oficial superior das Forças Armadas tem a obrigação de conhecer a obra de Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, por exemplo, sem os quais é impossível compreender verdadeira e profundamente o Brasil (2021, p. 154).

A identidade negra ou a identidade indígena, enquanto movimentos políticos que questionam a brasilidade naturalizada de Aldo Rebelo, são as “armadilhas ideológicas e políticas” que atentam contra a “centralidade da questão nacional”. Para defender essa teoria social, os movimentos de direita, sobretudo os dentro do PDT, lutam arduamente contra os movimentos negros e indígenas que denunciam as falsificações memorialistas de Aldo Rebelo, o branco descendente de tupis, para usar o jargão verdeamarelista.

Para Plinio Salgado, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida, o brasileiro descenderia dos tupis dizimados, que seriam os indígenas catolizados e colonizados, construtores da nacionalidade. Os tapuias seriam os indígenas “selvagens”, os inimigos, como lembrou José de Alencar em Iracema. O tapuia “isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos alcabuzes e pelas flexas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça”. Quando Aldo Rebelo discorre sobre a mulher indígena ante o branco, naturalizando o estupro por meio da omissão pura e simples, refere-se ao tupi verdeamarelista, como fica demonstrado pelo seu suposto memorial genealógico.

O tapuia é o jacobino, uma vez que “todas as formas do jacobinismo na América são tapuias”. Mas o que é o jacobinismo? É “isolamento, portanto desagregação” (MANIFESTO VERDE-AMARELO, 1983, p. 362). Aldo e o seu movimento consideram os movimentos negro e indígena tapuias jacobinistas, destruidores da nacionalidade verdeamarelista. São expressões da atual extrema direita no campo da centro esquerda, como oportunamente expressou Olavo de Carvalho quando apontou Aldo como opositor a estudantes negros “tendentes a destruir a originalidade da cultura brasileira”. Tanto Aldo Rebelo quanto Olavo de Carvalho representam a busca pelo tradicionalismo oitocentista de movimentos conservadores, assim como de segmentos e instituições da classe dominante brasileira.

*Leonardo Sacramento é professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A Universidade mercantil: um estudo sobre a Universidade pública e o capital privado (Appris).

 

Notas


[i] Disponível em https://revistaforum.com.br/politica/2022/6/3/pdt-diz-que-vai-expulsar-grupo-de-extrema-direita-infiltrado-no-partido-118316.html.

[ii] À época, escrevi um texto sobre a simbiose entre as falas de Aldo e de Rui Costa Pimenta com grupos de extrema-direita, inclusive neonazistas. Esse artigo resultou em um longo debate com um membro do O Bonifácio, grupo nacionalista e conservador vinculado ao Quinto Movimento. O primeiro texto está disponível em https://aterraeredonda.com.br/borba-gato-aldo-rebelo-e-rui-costa-pimenta/.

[iii] Disponível em https://novaresistencia.org/2021/11/08/aldo-rebelo-e-a-necessidade-de-um-quinto-movimento/

[iv] O mito do agronegócio como setor fundamental ao país é um mito produzido pelo próprio agronegócio, hoje imbricado com o mercado financeiro e a imprensa, reproduzido por Aldo e sua atuação como parlamentar, sobretudo quando foi relator do Código Florestal, quando se aproximou de vez da pauta dos grandes ruralistas. Para uma análise do impacto do agronegócio brasileiro, ver https://ojoioeotrigo.com.br/2021/10/os-numeros-mostram-agronegocio-recebe-muitos-recursos-e-contribui-pouco-para-o-pais/.

[v] Sobre a posição positiva de Aldo Rebelo sobre o agronegócio, sobretudo aquele produto das políticas bolsonaristas, ver https://www.youtube.com/watch?v=bx7ndZHisSo.

[vi] Para uma crítica sobre as conclusões de Katia Matoso, ver Como era Gostoso ser Escravo no Brasil: a Apologia da Servidão Voluntária de Kátia de Queirós Mattoso, de Mário Maestri. In: Revista Crítica Histórica, Ano VI, nº 12, dezembro/2015.

[vii] CARVALHO, Olavo. Gilberto Freyre na USP. In: O imperador das ideias: Gilberto Freyre em questão. Joaquim Falcão e Rosa Maria Barbosa de Araújo (orgs.). Fundação Roberto Marinho, Rio de Janeiro: 2001, p. 204.

[viii] Souza. Vanderlei Sebastião de; Santos, Ricardo Ventura. O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 7, n. 3, p. 745-760, set.-dez. 2012, p. 756. Citações das páginas 53 e 54 da obra Impressões do Brasil no século XX: sua história, seo povo, commércio, indústrias e recursos. Londres: Lloyd’s Greater Britain Publishing Company Ltd., 1913. p. 52-58.

[ix] Ver https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/direitos-humanos/damares-e-acusada-de-sequestrar-e-criar-ilegalmente-crianca-indigena/.

[x] Esse discurso pode ser visto em entrevista concedida ao Brasil Paralelo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=of8CevF1BEY.

[xi] CHIAVENATTO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 204-207.

[xii] O Exército, como dito, possui posição completamente distinta da desculpa fantasiosa de Aldo. Para uma análise completa da posição do exército, ver o texto Campanha de Canudos, publicado em página oficial. Disponível em: http://www.eb.mil.br/exercito-brasileiro?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=1542044&_101_type=content&_101_urlTitle=campanha-de-canudos&_101_redirect=http%3A%2F%2Fwww.eb.mil.br%2Fexercito-brasileiro%3Fp_p_id%3D3%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dmaximized%26p_p_mode%3Dview%26_3_keywords%3Dcampo%2Bgrande%26_3_advancedSearch%3Dfalse%26_3_groupId%3D0%26_3_delta%3D20%26_3_assetTagNames%3Drepublica%26_3_resetCur%3Dfalse%26_3_andOperator%3Dtrue%26_3_struts_action%3D%252Fsearch%252Fsearch&inheritRedirect=true

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