O ataque à democracia na UFSCar

Imagem: Hamilton Grimaldi
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por ANA CAROLINA SOLIVA SORIA*

Não ao oportunismo, aos fatos impostos e à ruptura dos processos democráticos!

A Universidade Federal de São Carlos tem uma tradição de engajamento e luta em prol da democracia. Ela foi criada no conturbado ano de 1968, como a primeira Universidade Federal no interior de São Paulo. Até o momento, é, aliás, a única que não se encontra nas imediações da grande São Paulo. Enraizado nas lutas políticas pela anistia e pela redemocratização do país, o espírito libertário, vanguardista e democrático presente em sua história e de fundamental importância para a autonomia e excelência da pesquisa acadêmica, transborda para a região na qual ela se encontra e deixa sua marca inconfundível e indelével na sociedade. Não é raro acontecer de pessoas com papel proeminente na Universidade assumirem também um papel político de destaque, cujos exemplos máximos são os reitores Newton Lima e Oswaldo Barba, que se tornaram prefeitos de São Carlos e estão presentes na vida política da região.

Um dos signos democráticos e de modelo de autonomia universitária está presente no processo eleitoral de escolha de reitor e vice-reitor da Universidade. Ao contrário do que acontece em muitas Universidades Federais, em que os indicados para a lista tríplice (que é apreciada pelo presidente da república e de onde saem os regentes universitários) coincidem com os três primeiros candidatos da sondagem direta à comunidade acadêmica, na UFSCar, a indicação dos componentes da lista é feita pelo Colégio Eleitoral. Explico-me: realiza-se uma sondagem prévia à comunidade acadêmica, com ampla divulgação para inscrição de chapas e para participação de toda comunidade (entenda-se: docentes, técnicos administrativos e discentes), a partir da qual se indica uma das chapas como vendedora. Sem desconsiderar esta decisão, o Colégio Eleitoral, no âmbito do Conselho Universitário, forma uma Comissão Eleitoral que ouve os votos nominais dos membros do Colégio. Os três primeiros indicados nesta votação nominal figuram, segundo suas colocações, na lista tríplice.

Em agosto deste ano a UFSCar passou pelo processo de indicação de reitor e vice-reitor, processo, vale dizer, bem regimentado e em vigor há muitos anos na instituição. Três chapas se inscreveram na consulta prévia à comunidade, que elegeu com quase 70% a chapa 2, representada pelos docentes Adilson de Oliveira (candidato a reitor) e Maria de Jesus dos Reis (candidata a vice-reitora). Em reunião do Colégio Eleitoral, seguindo todos os ritos previstos pelo regimento da Universidade, os professores Adilson e Maria de Jesus tiveram também maioria nas indicações pelo colegiado e encabeçaram a lista tríplice. Outros membros da chapa 2 também foram indicados e figuraram na lista, segundo a ordem de classificação na votação nominal; os membros da chapa 3 e 1, que ficaram respectivamente em segundo e terceiro lugares na sondagem preliminar, não receberam indicações pelo Colégio Eleitoral.

E eis que aconteceu um fato inédito e gravíssimo de ataque à autonomia e liberdade universitárias: os professores Fernando Manuel Araújo Moreira e Fernanda de Freitas Anibal, que concorreram pela chapa 1 à consulta prévia (obtendo 9% do total de votos) e que não receberam indicação pelo colegiado, entraram com uma ação judiciária para anulação da confecção da lista tríplice. Afinados ao discurso de Weintraub, o ex-ministro da Educação que tentou impor a obrigatoriedade para todas as Universidades Federais de feituras de listas a partir dos resultados de sondagens diretas à comunidade acadêmica, desconsiderando o papel regulamentado do Colégio Eleitoral, os professores Fernando e Fernanda requerem a realização de novas listas, nas quais possivelmente seus nomes figurariam. Como resultado disto, o processo eleitoral na UFSCar está suspenso, até que se decida judicialmente sobre o mérito da questão. Esses fatos criam uma expectativa terrível: a da nomeação de um interventor para os cargos máximos da universidade.

Diante do clima harmônico e da integração entre as diferentes instâncias que tomaram parte no processo eleitoral, desde sempre reconhecido e respeitado, a tentativa de conturbá-lo ao se pretender diluir normas regimentais causa repulsa à comunidade acadêmica, pois fere todo um processo construído coletivamente e tenta calar a decisão dos 20.018 docentes, técnicos-administrativos e alunos que viram nos professores Adilson e Maria de Jesus os representantes de suas vontades. Fere também a decisão em maioria do Colégio Eleitoral e do Conselho Universitário. Que essas vozes não sejam caladas! Que a história dessa Universidade não seja maculada por esses ataques! Essa situação não é condizente com o espírito que norteou a criação da Universidade Federal de São Carlos e com o papel democrático que ela vem tendo nas cinco décadas de sua existência. E que se diga em alto e bom tom: Não ao oportunismo, aos fatos impostos e à ruptura dos processos democráticos!

*Ana Carolina Soliva Soria é professora Departamento de Filosofia da UFSCar.

 

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
A fragilidade financeira dos EUA
Por THOMAS PIKETTY: Assim como o padrão-ouro e o colonialismo ruíram sob o peso de suas próprias contradições, o excepcionalismo do dólar também chegará ao fim. A questão não é se, mas como: será por meio de uma transição coordenada ou de uma crise que deixará cicatrizes ainda mais profundas na economia global?
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O ateliê de Claude Monet
Por AFRÂNIO CATANI: Comentário sobre o livro de Jean-Philippe Toussaint
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Donald Trump ataca o Brasil
Por VALERIO ARCARY: A resposta do Brasil à ofensiva de Trump deve ser firme e pública, conscientizando o povo sobre os perigos crescentes no cenário internacional
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES